Our Own Cold War escrita por Ikarus


Capítulo 1
Prólogo


Notas iniciais do capítulo

nessas brincadeiras, me falaram pra mandar os personagens de YOI pro gulag

e foi assim que essa fic nasceu

dsclp



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Em seus sonhos, havia sempre um rio. Um rio que corria um morro abaixo e dava em um lago. Às vezes chovia, às vezes nevava. Às vezes fazia sol, às vezes nublava. Às vezes era manhã, dia, tarde ou noite. Mas era sempre um rio que descia e se unia a um lago. À beira dele, uma raposa o aguardava para que ele a seguisse água adentro. O animal caminhava por sobre a superfície do lago, como se estivesse congelado. Ela continuava indo cada vez mais em direção ao centro do grande vale d’água, mas ele só afundava cada vez mais; e ainda que soubesse que se afogaria se continuasse a seguir a raposa, ele nunca parava. Nunca conseguia deixar de seguir a raposa.

E toda vez, ele se afogava.

§

“Viktor. Ele apareceu de novo.”

O jovem soldado podia parecer focado, mas sua mente com certeza não estava presente durante a explicação da pequena missão à qual fora designado para aquela semana.

“… Quem?”

Yakov Feltsman, o major responsável pela força militar estacionada ali, rosnava quieto em seu lugar diante da falta de interesse de seu subordinado. Era sempre um parto passar ordens para Viktor, o capitão de um pequeno (mas habilidoso) grupo de soldados. Mas ainda que fossem ótimos homens, havia pouco a ser feito naquele lugar isolado, no meio do deserto de gelo que era aquele gulag, em algum ponto da Rússia siberiana. Patrulhar, separar eventuais brigas entre os detentos, fiscalizar a entrada e a saída de carregamentos… às vezes, até aplicar punições.

Quase todos os soldados da tropa de Viktor eram jovens, o mais novo deles sendo um adolescente que vivera e crescera sob a guarda de seu avô, também soldado (e amigo pessoal de Yakov). Jovens, órfãos pela guerra e pela violência do conflito que abalou o mundo há quase seis anos agora.

O ano era 1951. O mundo lentamente tentava se reconstruir e apagar as memórias ainda frescas de uma barbaridade internacional, a Segunda Guerra Mundial; mas tudo que presenciavam era a formação de uma nova ordem mundial, dessa vez com dois polos de poder: Os EUA e a URSS, o Oeste e o Leste.

Para as pessoas que sentiram na pele o sofrimento da guerra, seria como assistir ao mesmo pesadelo novamente. Mas para as pessoas que cresceram no meio do conflito, guerra era apenas rotina.

“Viktor. O prisioneiro que fugiu no fim do ano passado.” Yakov já tinha uma das mãos sobre a testa, tentando extravasar sua irritação na forma de algum gesto. Respirou fundo para recomeçar a conversa, endireitando as costas e buscando os olhos azuis do outro. “Estamos em estado de alerta. Aparentemente ele ainda está vivo…” O tom do major de repente ficou mais baixo, quase preocupado. “E já feriu um dos nossos na noite passada.”

O jovem capitão parecia interessado agora. “E o que faremos a respeito disso?” Ele esperava alguma ordem, finalmente uma missão na qual ele pudesse usar suas habilidades. Viktor era bem conhecido como o melhor e mais jovem franco-atirador de seu pelotão durante a 2ª Guerra Mundial. Com quase 50 abates confirmados sob a mira do telescópio de seu rifle, o garoto recebera o codinome “Volk” de seus companheiros, o nome russo para “lobo”. Aos 27 anos, era quase uma celebridade no exército, condecorado por inúmeros feitos heroicos ou apenas por sobreviver, que em si já era um feito extraordinário naquela época. Mas tudo que sabiam sobre ele não passava disso. De onde vinha, quem foram seus pais, todo o seu passado ainda vivia sob a sombra do incerto.

“Estudaremos os entornos com mais cuidado. Dobraremos a quantidade de vigias à noite. Se não conseguirmos pegá-lo, ao menos poderemos evitar baixas.”

Embora muitos vissem Viktor como um homem de grandes feitos, Yakov ainda via um jovem, despreparado, perdido, órfão; preso ao peso das medalhas e condecorações de seu histórico como soldado. O velho major nunca tivera filhos, mas não podia deixar de se sentir responsável pelos garotos do pelotão.

Então sua última ordem era quase como um pedido desesperado de “não quero que morra para um criminoso perigoso à solta”, por mais que soubesse que Viktor fosse plenamente capaz de abater a ameaça que rondava o gulag.

“Entendido,” foi tudo que o capitão respondeu, levantando-se de sua cadeira e caminhando de volta para o refeitório para jantar.

§

“E daí? Sou bem capaz de acabar com esse fugitivo, se quiser.”

“Uma mira boa não te impediu de virar uma vara bamba quando deu de cara com um urso no meio da floresta.”

“Cala essa boca, Mila.”

O refeitório todo cheirava a sopa. Não era lá uma refeição completa já que os mantimentos andavam escassos fazia dois meses; mas era o suficiente para mantê-los vivos durante as patrulhas sob as baixas temperaturas do fim do inverno.

“Ei, vocês dois.” O eco da voz de Viktor foi o suficiente para fazer os dois soldados que discutiam — Mila e Yuri — baterem continência e congelarem no lugar. Os outros se entreolhavam, olhavam para o capitão, olhavam para os dois adolescentes e tentavam engolir a comida fazendo o máximo de silêncio possível, como se qualquer som pudesse desencadear alguma reação do superior. Depois do silêncio prolongado, Viktor continuou, com um sorriso nos lábios: “Está meio tarde para vocês ficarem trocando insultos, não?”

“Estávamos falando sobre ir atrás do fugitivo e finalmente trazer ele de volta pra cá.” Mila expôs o plano. “Mas o Yuri disse que seria capaz de fazer todo o serviço sozinho, quando na verdade mal consegue parar de tremer quando vê um alce.” A garota ruiva ria estridentemente, tentando não se engasgar com a sopa.

“Já disse pra calar a boca, Mila.”

“Vocês não vão atrás de ninguém.” Viktor disse, enquanto sentava-se ao lado de Yuri. “Georgi já se machucou e eu nem preciso dizer como o major está se sentindo.”

“E você espera que fiquemos sentados aqui enquanto o inimigo tenta nos matar um a um, Viktor?” O garoto loiro quase se levantou de supetão, indignado.

E mesmo diante do gesto que poderia ser entendido como desacato, o capitão continuou tomando sua sopa. “Ordens do major. Por enquanto, vamos redobrar a segurança ao redor dos muros, fazer mais rondas e aumentar nossa área de controle. Não falei que deixaria que o inimigo nos cercasse.”

“Está com medo, Viktor?” E, de repente, a temperatura pareceu descer no refeitório inteiro. A cena toda congelou de novo sob uma nova tensão. Uma tensão verdadeira, dessa vez. Yuri estava de pé, olhando Viktor, seu capitão, de cima. “Georgi foi ferido e poderia muito bem estar morto se eu e Mila não estivéssemos por perto para cobrir ele. Onde você estava quando nós estávamos lá fora tomando bala do prisioneiro que você deixou escapar?” Yuri gritava na direção de Viktor agora, mas ainda não havia esboço de resposta nenhuma vinda do outro. “Se alguém se feriu, a culpa é toda sua. Você é o capitão dessa bosta.”

E, embora Yuri estivesse claramente desafiando seu superior, claramente expondo-se sob o risco de ser punido gravemente pelo desacato, ninguém ousava corrigi-lo. Viktor Nikiforov era um ótimo atirador, mas não era raro ele se ausentar das missões de patrulha.

Viktor então empurrou sua tigela para longe e ergueu-se. Yuri até recuou diante da ação, mas surpreendeu-se quando sentiu duas mãos pousarem sobre seus ombros.

“Você está certo.” Viktor olhou firme em seus olhos verdes com os seus azuis. Definitivamente havia culpa naquele olhar, mas não significava necessariamente que concordava com tudo que o adolescente acabara de lhe dizer. “Eu vou atrás de quem atirou no Georgi.” As mãos relaxaram e uma delas foi em direção à cabeça de Yuri, bagunçando seu cabelo. “E quando eu voltar com um corpo morto, você vai cobrir o meu posto de vigia durante três meses seguidos, ok?” E Viktor estava sorrindo apesar de toda aquela acusação feita aos berros naquele pequeno refeitório. Finalmente, todos os outros puderam terminar suas sopas em paz.

§

A noite seguinte era noite de patrulha, mas por decisão de Viktor, aquela seria uma patrulha “mais agressiva”.

“Aonde estamos indo?” Mila sussurrou por sob o cachecol que cobria a parte inferior de seu rosto. Já caminhavam por uma hora e meia sob a neve.

“Só me sigam.” Veio a resposta de Viktor, rápida e curta, enquanto desviavam-se da rota costumeira e entravam em meio à vegetação. O gelo chiava sob os coturnos dos três soldados que subiam um morro com certa dificuldade, o peso do equipamento atrapalhando a subida. “Terminem essa subida e sigam pela vegetação. Encontro vocês daqui a uns 20 minutos lá em cima.” O capitão do grupo rapidamente instruiu, dando meia volta e perdendo-se entre os arbustos.

Os dois soldados entreolharam-se, estranhando o comportamento pouco usual e ligeiramente abrupto de seu superior.

“Não sei você, mas estou desconfiado.” Yuri confessou à companheira de equipe.

“Confie no Viktor. Vamos pegar esse fugitivo, pelo Georgi.”

Ao chegarem ao local indicado, sob a proteção de uma pedra, puderam perceber que, do outro lado e morro abaixo, havia uma pequena construção de concreto, um pequeno depósito aparentemente abandonado. Mas as luzes estavam acesas e um carro jazia estacionado, mal coberto por uma lona.

“Pegue os binóculos.” Yuri sussurrou, apressando-se a procurar pelo seu equipamento na mochila. Mila fazia o mesmo, encontrando-o antes e logo estudando os arredores do achado.

“O que é isso…?”

“Parece um depósito. Mas tem alguém lá dentro-“ De repente, o farfalhar dos galhos dos arbustos por detrás deles denunciou a presença de alguém. Rapidamente, Yuri sacou sua pistola em direção à fonte do som, para encontrar Viktor… carregando um corpo?

“Alguém vai ter que cobrir meu posto por 3 meses, hein, Yura?” O capitão sorriu, jogando o corpo para o lado, revelando um homem vestido com o mesmo uniforme que o deles, para o espanto dos dois soldados.

“C-Capitão! Ele não é um dos nossos?” Mila perguntou, tentando manter o tom de voz baixo apesar da surpresa.

“Mais ou menos.” Murmurou, tomando os binóculos de Yuri e jogando algo em direção dela. Uma moeda americana.

“Um espião? O que ele veio fazer aqui na Sibéria?” O mais novo perguntou, nem ligando para o breve furto de seus binóculos.

“Lembra quando reclamaram sobre a diminuição dos recursos que chegam pra gente nesses últimos meses? Parece que parte deles estava sendo extraviada pelos americanos.”

“Sabotadores.”

“Basicamente.”

“Então… O fugitivo ainda está à solta.” Yuri murmurou mais para si.

“Ou morto.”

Viktor devolveu o equipamento para Yuri, puxando seu rifle e observando o depósito pela mira de sua arma. “Tem mais lá dentro.”

“Quantos são?”

“Uns… dois, três.”

“Não deveríamos voltar para o quartel e avisar o Yakov?” Mila sugeriu, um pouco preocupada com o número de inimigos. Se fossem espiões americanos, então eram soldados com mais preparo do que um monte de jovens órfãos de guerra, ainda em treinamento.

Mas Viktor já estava descendo o morro, obrigando Mila e Yuri a acompanharem-no. Permanecendo nas sombras, três figuras caminhavam às pressas sob a proteção do escuro, um atrás do outro. Mila era a última da fila, empunhando sua pistola TT-33 e vigiando as costas dos outros dois companheiros. Yuri ficava atento a possíveis ordens de Viktor, que andava à frente empunhando uma M1911, uma pistola de fabricação americana, e uma faca de combate. Franco-atiradores também costumavam ser letais à curta distância. Era impossível usar um rifle de precisão contra um alvo a 3 metros.

O pequeno grupo estava encostado à parede, com Viktor colado à porta da construção e reconhecendo duas vozes diferentes conversando em inglês vindas do outro lado do concreto.

O que eles falharem em notar era que havia um último soldado do lado de fora da construção, que percebera a movimentação e já estava pronto para anunciar a presença dos intrusos quando Mila foi mais rápida e puxou o gatilho. Mas o barulho do disparo também alertara os inimigos de dentro da construção.

“Droga! Abortar missão! Voltem para a base imediatamente!” Viktor bradou, enquanto corria em direção aos arbustos. Os outros dois, tomados pelo choque repentino da situação demoraram a obedecer às ordens, mas finalmente puseram-se a correr.

O som de uma porta se abrindo seguido de gritos e disparos apenas estimulou os três russos a correrem mais rápido, mas naquele ritmo alguém seria baleado. Foi quando perceberam que Yuri havia tropeçado e caído, provavelmente por olhar para trás e não prestar atenção por onde pisava. Mila voltou para ajudá-lo e Viktor viu-se forçado a usar seu rifle.

Os alvos estavam em movimento, aproximando-se demais dos dois companheiros de equipe. Eram três, no total. Viktor tinha tempo e precisão para acertar no máximo dois deles. Suas opções não eram boas e o tempo cavalgava contra as suas chances. O capitão respirou e prendeu sua respiração; mirou na testa de um deles e atirou a primeira vez.

Mas sua mão vacilara e percebera que não acertaria o tiro na metade da ação: o tiro acertou o ombro do alvo. Ainda segurando a respiração, estabilizou sua mão e mirou na testa do segundo homem. Puxou o gatilho novamente e…

Um acerto; o segundo homem morreria antes que seu corpo tocasse o chão por completo. Entretanto, o terceiro homem ainda estava intacto e o primeiro, baleado, já se recuperava rapidamente do tiro graças à intensa carga de adrenalina da situação.

Viktor já sentia o peso das responsabilidades das vidas de seus soldados pesarem em seus ombros quando ouviu um som poderoso, como um trovão irrompendo do pico morro. Era um tiro, e apenas um tipo de arma poderia causar um estrondo daqueles. Um rifle de precisão. Faltava saber se o atirador era aliado ou inimigo. Os olhos azuis de Viktor agora estavam nos dois americanos… E um deles já estava caindo morto; o tiro do outro sniper acertou o segundo americano. Viktor aproveitou a deixa e respirou fundo novamente, mirando no terceiro, dedo no gatilho e…

O último alvo agora jazia imóvel no chão. Estavam finalmente a salvo. Yuri e Mila correram em direção a Viktor, desesperados. O capitão foi ao encontro deles, checando por ferimentos em ambos.

“Estão bem?!”

“Por muito pouco. Não fosse a sua mira, seríamos nós os mortos nessa história.” Mila sorria afobada, congratulando seu capitão. “Se bem que essa sua ideia foi uma merda, como todo o respeito.”

Yuri ainda lutava para recuperar seu fôlego, um misto de susto com raiva inflando em seu peito. Estava prestes a gritar com o seu capitão quando percebeu que os olhos de Viktor estavam fixos em um único ponto no topo do morro sobre eles.

Nikiforov pôs a mira para poder enxergar a estranha figura que acabara de auxiliá-lo em meio à rápida ação de abate e percebeu que o outro atirador também mirava em sua direção; entretanto, o misterioso sniper abaixou sua arma, deu as costas para o grupo abaixo e sumiu em meio à vegetação.

“Mila, Yuri. Voltem para a base e comuniquem o ocorrido para o Yakov.”

“E você, Viktor?”

“Acho que achei nosso fugitivo.”


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Notas finais do capítulo

é uma cilada



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