Para Além dos Muros escrita por Grayscale


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Nem tudo é o que parece.



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Nada indicava que Adaline ia se matar.

Ela estava sempre radiante, sorridente, levava alegria para onde ia. Estava sempre empolgada para tudo, de forma quase contagiante. Estava sempre fazendo companhia para alguém, sempre falando sobre tudo, nunca mantinha segredos.

Mas ela se matou.

Era inquestionável. Era a letra dela na carta de suicídio, então não era um assassinato disfarçado. Depois de todas as suas explicações, ela escreveu: Não procurem meu corpo. Vocês não vão encontrar. Provavelmente essas eram as frases mais Adaline do texto todo.

Naturalmente, eu estava abalada com a morte da minha irmã. Eu não sabia se era pela morte em si ou se era pela culpa, por não ter conseguido fazer nada para impedir. Eu sabia que era irracional me penalizar por algo imprevisível, porém era inevitável. Eu não tinha feito nada para impedir a morte da minha irmã.

No entanto, ainda havia uma questão maior que eu não conseguia processar: com a morte de Adaline, eu me tornava a herdeira do trono.

Essa deveria ser a parte mais perturbadora, adquirir toda a responsabilidade que ela estava me transferindo, só que eu não conseguia entender. Não parecia real. Eu, futura rainha? Isso nunca tinha passado pela minha cabeça e eu ainda não conseguia visualizar isso. Essa função era de Adaline, não minha. Não, eu não estava me esquivando da responsabilidade. Eu só... não me preparara para isso.

Uma batida na porta do meu quarto me tirou dos meus pensamentos.

— Emmeline — chamou a Sra. Villentieu, a governanta, abrindo timidamente a porta do meu quarto, ciente de que, no meu estado de espírito, eu não gostaria de ser incomodada. Imaginei que ela também não queria ter que ir falar comigo, porque a morte de Adaline a afetava também. — Você já está pronta? O enterro ocorrerá em breve.

Sequei minhas lágrimas e me levantei da minha cama. Na infância, eu iria correndo abraçar a Sra. Villentieu para ela me reconfortar, mas agora me sentia velha demais para isso. Eu tinha que lidar sozinha com as minhas emoções.

Olhei-me no espelho. Logo de manhã, já me arrumara, ansiosa para que tudo acabasse logo. O normal seria que eu desse uma retocada, porém não me importava com a minha aparência naquele momento. O vestido preto não estava amassado e o meu cabelo castanho-escuro estava preso em uma trança simples, então eu imaginava que não era necessário refazê-la. Não usava maquiagem alguma, porque é idiotice se maquiar para ir a um enterro. Calcei minhas sapatilhas pretas e saí do meu quarto.

— Sra. Villentieu — comecei, enquanto atravessávamos o corredor —, eu preciso mesmo fazer isso?

— Todos nós estamos sofrendo, minha querida — entristeceu-se ela. — Mas não podemos fugir.

Olhei para ela e ela me olhou de volta, carinhosamente. Ela tinha olheiras sob os olhos, devia ter passado a noite chorando. Isso a fazia parecer mais velha. Não estava acostumada a vê-la assim. Mesmo que ela tivesse mais de cinquenta anos, eu não conseguia ver a passagem do tempo para ela. Seguimos nosso caminho juntas, mas sem dizer nada.

♦•♦•♦

O reino estava de luto. Meus pais não paravam de chorar. Evangeline, minha irmã mais nova, não entendia o que estava acontecendo, e Rosaline, a segunda mais nova, tentava explicar.

O corpo de Adaline não fora encontrado; o enterro era simbólico. Ela tinha se matado em algum lugar da floresta que rodeava o castelo, então colocaram algumas folhas de cedro junto ao maior arranjo de flores da lápide. Era cruel ver o povo sofrendo por uma princesa morta. Contudo, eu ignorava suas dores, pois a minha era maior; eles perderam sua princesa, eu perdera minha irmã.

Ouvi uma vozinha doce e hesitante.

— Vai ficar tudo bem com a Ada?

Olhei para baixo, na minha esquerda, para o rosto confuso de Evangeline. Eu não imaginava que Adaline tivesse a intenção de fazê-la conhecer a morte com apenas cinco anos de idade, mas foi o resultado. Pensei, pela primeira vez, em como Adaline tinha sido egoísta. A reflexão despertou uma cadeia de sentimentos em mim: raiva, culpa, tensão, tristeza, preocupação, pânico. Era tanta coisa que parecia que elas se anulavam, me tornando apática.

Não. Eu não estava apática. Eu estava profundamente triste, com tudo. Triste com a ausência de um ente querido. Triste com o impacto que isso traria para minha família. Triste com a perda da futura governante da Ambrândia. Não importava; eu não era boa para demonstrar meus sentimentos.

— Nada vai acontecer com Ada — reconfortei-a, afagando os fios finos de seu cabelo, dourados como seu vestido. Ela não tinha nenhum vestido preto (quem faz vestidos pretos para crianças?) e se recusou a usar o azul-marinho que suas criadas lhe recomendaram. Ela parecia um raio de sol surgindo após uma tempestade em meio àquela multidão de vestes escuras. Não queria estragar essa alegria que ela transmitia contando-lhe que Ada não existia mais.

Ela abraçou minhas pernas, por não conseguir alcançar meu tronco. Sorri pela primeira vez naquele dia. Esse fato era até estranho. Um dia ensolarado como aqueles, mas também fresco e bem ventilado, ao ar livre, com o céu da tarde livre de nuvens, não era um bom dia para se entristecer. Eu não conseguia imaginar Adaline se suicidando em nenhuma condição, mas naquelas, especialmente, era totalmente impossível. Esse era um dos dias em que ela estaria transformando os corredores do castelo em caos com suas corridas de lá para cá, gritando e cantando apenas por achar que isso era divertido, batendo à porta do meu quarto o tempo todo só para me irritar; e eu ficaria realmente irritada, mas essa irritação seria melhor do que o que eu sentia naquele momento.

Eu já estava impaciente para voltar para casa. Não entendia a necessidade de sepultar símbolos e toda aquela tristeza em um dia que não deveria ser triste começava a me dar agonia.

E finalmente acabou. Meus pais, minhas irmãs e eu entramos na limusine, de volta ao castelo. Estava sentada de costas para o banco do motorista com Rosaline e Evangeline, sendo obrigadas a ver nossos pais se abraçarem, melancólicos, no banco mais ao fundo do carro. Para elas – principalmente para Evangeline, eu imaginava –, aquilo era simplesmente um momento muito triste para nossa família. Contudo, eu, assumindo o posto de irmã mais velha que eu ainda não conseguia aceitar muito bem, entendia que o impacto era muito maior: aqueles à nossa frente eram a rainha e seu consorte mergulhados em profunda tristeza, doando sua dor involuntariamente para o povo.

Em uma das paradas do carro no sinal vermelho, Evangeline decidiu ir para o outro lado do carro, com nossos pais. Ela se sentou entre eles, como se exigisse abraços. Aquilo pareceu animá-los um pouco – conseguiram, ao menos, abrir um sorriso fraco.

Rosaline, ainda do meu lado, apoiou a cabeça no meu ombro. Passei meu braço pelos seus ombros. Não tinha parado para pensar em como ela se sentia até o momento. Era tão madura para uma garota de onze anos que parecia que nunca se abalaria com nada, mas essa era uma situação extrema. Eu tinha que reconhecer que a expressão impassível dela era apenas de fachada.

Chegamos ao palácio após aquela viagem silenciosa e eu corri para o meu quarto. Já passara do pôr do sol e havia um risquinho de lua minguante no céu. Joguei-me nos lençóis brancos da cama de baldaquino sem nem tirar os sapatos. Não queria chorar, apenas esgotara-me emocionalmente.

O peso do meu corpo contorcido caía sobre mim mesma. Após longos minutos, decidi que a posição estava desconfortável demais e levantei meu tronco. De repente, meu olhar caiu sobre a cômoda barroca do outro lado do quarto, deixando-me fortemente desconfortável: Capinzinho estava lá. Aquele gato de pelúcia horroroso do dia em que Adaline decidiu que ia aprender a costurar. Eu amava aquele gato com todas as minhas forças, mas seria tóxico deixá-lo lá. Eu devia tirar tudo o que fosse referente à minha irmã morta da minha vida.

Ainda fraca, saí da cama e fui em direção à pelúcia. Peguei-a. O gato era exageradamente macio, muito mole, inconsistente em seu conteúdo, leve demais para seus três palmos de altura. Fazia quase dez anos que eu o tinha, porém me lembrava daquele dia como se fosse um evento recente. Adaline, depois de passar a manhã inteira trabalhando, se aproximou de mim, com semblante orgulhoso e mãos cheias de furos de agulha, e disse: “Eu ia dar de presente para a Rosaline, mas ela vai deixá-lo todo babado e rasgado. Então é melhor ficar com você.”

As lágrimas escaparam dos meus olhos sem que eu tivesse tempo para impedi-las. Abracei Capinzinho como se eu tivesse oito anos de novo. Solucei de tão forte que era o choro. Deixei-me escorregar para o chão. Era realmente necessário me desfazer dele?

Abriram a minha porta sem bater.

— Emma, você... — Evangeline ia entrando, saltitante como sempre. Empalideci e olhei para ela, esperando não assustá-la. Falhei. Ela parou onde estava e me fitou, curvando a cabeça para a esquerda como sempre fazia quando ficava preocupada. — Você está bem?

Rosaline entrou logo depois, apressada, com uma expressão aflita. Percebi que nenhuma das duas vestia as roupas do funeral: Rosaline vestia um vestido com suspensórios com camisa social e sapatilhas pretas com meias três-quartos brancas, no estilo quase escolar que ela tanto adorava; e Evangeline vestia uma bata verde-água com calças legging e galochas vermelhas, apesar de não haver nenhum sinal de que choveria.

— Não é um bom dia para falar com a Emmeline. — Rosaline pegou a mão dela e tentou puxá-la, para tirá-la do meu quarto. — Vem.

— Não, Rosa, está tudo bem — intervim. — Eu gostaria que vocês duas ficassem aqui, na verdade.

Rosaline soltou a mão de Evangeline e esta veio correndo sentar-se ao meu lado. Rosaline se aproximou mais calmamente, incerta sobre essa ser a atitude correta a ser tomada. Era impressionante como ela, ainda tão nova, conseguia entender sentimentos complexos. Por fim, sentou-se do meu lado esquerdo.

— Você não vai dizer nada? — perguntou Evangeline, aflita após apenas alguns instantes de silêncio. Eu entendia sua necessidade por agitação; era o que eu mais precisava naquele dia, para me distrair.

— Foi você que entrou aqui para me dizer algo, lembra? — Sorri, sentindo-me mais leve.

Os olhos verdes dela perderam-se no ar.

— É — disse ela. — Mas... Eu não lembro.

Rosaline segurou o riso.

— Você estava procurando um lápis laranja. — Ela se voltou para mim e disse: — Acho que você não tem.

— Não desenho há anos — confirmei.

Evangeline, lembrando-se de sua preocupação anterior, murchou-se.

— Eu nunca vou encontrar...

Coloquei Capinzinho ao lado do meu corpo, ainda segurando-o com uma mão, e pus-me a pensar numa forma de ajudar Evangeline.

— Já tentou usar açafrão? Vai fazer uma bagunça enorme, mas vale a pena tentar, não?

— Isso não é de comer? — questionou ela, franzindo o cenho.

— E só por isso você não pode usar pra pintar?

Os olhos dela brilharam. Não havia nada que ela gostasse tanto quanto descobrir coisas, e aquela parecia ser uma descoberta bastante útil para ela. Ela entrelaçou seus dedinhos, entrando num estado quase caricato de devaneio.

Senti Rosaline me encarando e a encarei de volta.

— Que foi?

— Sabe que é você quem vai dar assistência se ela decidir que realmente vai fazer isso, não sabe? — Rosaline era sempre responsável e não admitia erros. Geralmente, Adaline e eu fazíamos nossas merdas e era Rosaline a voz da nossa consciência que nos aconselhava a consertar tudo. — Seria injustiça com os empregados deixá-los limpar. E você sabe que a Eva sempre consegue destruir tudo.

— Ei! — protestou Evangeline, sendo arrancada de seus sonhos à luz do dia.

— Você sabe que é verdade — disse ela com firmeza, cruzando seus braços.

— Não é, não! — insistiu Evangeline. — Sabe aquele canteiro no jardim que vai ficar lindo? Sou eu que estou fazendo! E não vai ficar destruído.

— Você só está fazendo isso porque sabe que vai se sujar. — Rosaline sempre queria ter a última palavra. Para ela, valia a pena até discutir eternamente com uma criança teimosa para conseguir isso.

Evangeline fechou a cara.

— Emmeline! Ela está me descermercendo!

Franzi a testa.

— Você o quê? — sussurrei para Rosaline, curvando-me ligeiramente para ela, embora soubesse que isso não passaria batido por Evangeline.

— Eu estou a desmerecendo — sussurrou de volta.

— Ah.

Então eu comecei a rir. Tentei segurar, com medo de ofender Evangeline, e, ao perceber que isso era inútil, permiti-me rir livremente. E percebi, naquele momento, que meu rosto tinha ficado grudento pelas lágrimas de antes, mas eu não as sentia mais, muito menos sentia sua necessidade. Não estava feliz; estava alegre, e isso me bastava por ora.

Evangeline parecia irritada.

— Se me dão licença, vou procurar um lápis com açafrão — anunciou e se retirou.

— Não, Eva, volta aqui — pedi. No entanto, ela já saíra do quarto.

Rosaline revirou os olhos.

— Vou tentar avisá-la de que ela não vai encontrar um lápis com açafrão. — Levantou-se e saiu, deixando-me novamente sozinha.

Capinzinho ainda estava na minha mão direita. Percebi que poderia tê-lo entregado a Rosaline, como Adaline planejara. Não, não era uma boa ideia. Se não era para ficar comigo, não ficaria com ninguém. A ideia era colocá-lo em um lugar que ninguém pudesse ver.

Passou pela minha cabeça que ninguém entraria no quarto de Adaline. Ele deveria ficar intocado até que eu assumisse o trono – ainda era tão estranho pensar nessa possibilidade –, quando me seria recomendado remobiliar o quarto para usá-lo como quarto de hóspedes ou algo do tipo.

Ergui-me do chão e abracei Capinzinho uma última vez, dando adeus à lembrança da minha irmã a qual eu era mais apegada. Apertei meus olhos; eu não choraria de novo naquele dia.

Atravessei meu quarto e abri a porta, indo para o corredor. O quarto de Adaline ficava na frente do meu – um lembrete cruel que me atormentaria para sempre. O corredor era largo, com uma distância de onze passos normais, ou oito passos grandes, entre seus lados. Era de um branco puxado para o creme, com piso de mármore branco e alguns vasos de porcelana cheios de peônias em pedestais. Optei por cruzá-lo com passos normais e cheguei à porta do quarto recém-abandonado de Adaline. Abri.

Olhei para dentro do quarto e, antes de dar o primeiro passo, paralisei. Todo meu sangue se correu para o meu tronco, meus olhos se arregalaram e eu deixei Capinzinho cair no chão, silencioso como meu pavor.

Lá estava Adaline, mexendo em seu baú como se estivesse viva.


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Notas finais do capítulo

Eu sei que esse capítulo ficou um pouco bagunçado, com narrações embaçadas por causa de sentimento de mais e descrições de menos. Eu não sabia exatamente como começar, estava indecisa sobre várias coisas, mas prometo que melhora no próximo capítulo.
Opiniões sinceras, hein?



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