Memória Evanescente [Fic de fantasia] escrita por KenFantasma


Capítulo 1
Capítulo Único - Cidade Inóspita


Notas iniciais do capítulo

Esta escrita é misteriosa e tudo nela descrito possui um significado implícito.
Com que olhos você a vê?



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A jovem mulher abriu com lassidão a porta rangente. Suspirou sem forças antes de fechá-la mergulhando o quarto em uma fraca negritude, cortada somente pela luz trêmula do astro minguante à fora. Seus trajes fúnebres pingavam gotas gélidas no assoalho escuro. Rose andou lenta até sua cama, seu olhar era o de alguém cuja alma fora levada na noite em que a lua desapareceu do céu. Jogou-se na cama sem se importar em retirar seus sapatos sujos de terra. Com movimentos cansados de seu braço, acendeu o abajur e pegou seu pequeno caderno da cabeceira, um "D. R." era tudo que existia naquela capa roxa. A menina cujas costas molhavam a cama o apoiou em uma de suas coxas e escreveu uma única frase garranchosa para depois voltar a descansá-lo ao lado. Olhou alguns segundos para o teto de cores sem vida, respirou trepidante e então sentou-se para melhor tomar sua pílula. Não dormiria direito não fosse ela. Deixou-se cair novamente sobre o colchão que colocava em disputa a absorção térmica do corpo de Rose com os filetes de ar frio que sopravam pela fresta da janela. A última coisa que ouvira antes de seus olhos enegrecerem foram as gotas pesadas de chuva no vidro e o sibilar sinistro do vento quando lutava para adentrar seu quarto. Refletiu pelos últimos segundos daquela madrugada, se valia realmente a pena acordar na manhã seguinte.

...

Eu abri meus olhos e tudo o que vi fora o meu materno cemitério. Como de praxe, é aqui onde minha jornada começa. Ergui-me da posição de meditação e estiquei braços e costas. Inspirei fundo aquele ar que se condensava em uma fina névoa ao redor dos meus pés, deveria ser uma noite realmente fria. Mas como eu poderia saber? Não sinto tal sensação. Poderia ficar horas ali admirando uma lua tão bela em seu estado minguante, mas se eu acordei, significava uma coisa: ela me despertou e, por causa, precisava de mim. Busquei minha espada sobre a cripta, o artefato que sempre acorda junto a mim, e me pus a correr para fora daquele cemitério. Chamo-o assim por lembrar esteticamente com um. Mas é estranho, só existe a ‘minha’ cripta naquele grande pedaço fúnebre de terra, grama e árvores sem folhas. Minhas vestes se resumiam a duas peças de roupa, uma calça jeans preta bastante larga e um uma capa também negra que começava de um capuz sem muita serventia, mas que eu não ousava tirar por motivos irracionais. Não importava o quanto se rasgassem, eu sempre acordava com eles por inteiro. O mesmo se valia para o meu corpo. Corri pela floresta com a espada em mãos, ela gemia em vários tons diferentes de ameaça. Mas por mais ‘viva’ que parecesse, jamais vi qualquer existência que não fosse a minha. E é claro, a das sombras. Cheguei à estrada de terra, pouco à frente pude ver a pequena cidade. Um pedaço de metrópole que parecia ter sido abandonada pelo tempo, onde mesmo assim a natureza não conseguia imperar. Nada vive naquela atmosfera sombria por muito tempo.

O concreto das ruas era flagelado com rachaduras e buracos, as casas e lojas pareciam ter sido abandonadas no meio de um pandemônio, seus vidros e portas eram lacrados com pedaços de madeiras e incontáveis pregos de forma bastante imperfeita. O mais estranho, porém, era o que havia no exato centro desta cidade fantasmagórica. O chão se elevava numa angulação onde parecia-se mais fácil escalar, invés de andar. A uma altura de um prédio de 4 andares, partes quebradas da rua formavam uma trilha disforme até o cume largo desta elevação térrea. Lá em cima, era visível uma pequena casa de cores gastas, uma árvore nascia torta pouco à baixo, e o mato morria conforme se afastava de seu perímetro.

Caminhei sem pressa por uma das ruas. Eu conhecia muito bem quase todos os becos e vias daquele lugar amaldiçoado, mas jamais soube o que se escondia atrás daquela porta. Sabia, porém, que alguém lá dentro é quem me acordava todas as noites. Ela me chamava de Fantasma, e então passei a chama-la de Necromante. Tudo o que sei sobre mim, é o livro quem me conta. Ele diz que eu devo defende-la, do contrário o mundo desabará. E desde então eu o faço com tudo de mim. Ainda que ele não me contasse, sinto mesmo dentro de mim esse fardo de protetor. As trovoadas anunciaram que logo mais viria o temporal, a chuva não tardaria a sobrepujar a cidade. Enquanto caminhava, percebi uma placa de "pare" cortada em duas sobre a calçada, ao lado do extenso ferro que um dia fora seu corpo... quando o sino da cidade tocou.

—Vieram cedo dessa vez. – Sussurrei em tom de decepção enquanto guiava minha visão ao grande sino da catedral.

Em um único salto, alcancei o teto precário de uma das casas onde teria visão para o além dos domínios urbanos. Avistei os invasores logo mais. Eu os chamo de Sombras. Criaturas muitas vezes humanoides, sem cor, sem rosto. Mais parecem as próprias trevas solidificadas em uma tentativa falha de parecerem humanos.

Saltei de telhado em telhado enquanto era capaz de ouvir os berros se aproximando, parei sobre uma placa de neon pifada pouco acima de uma loja de bebidas, a primeira construção de encontro às sombras. Elas pararam imediatamente ao me notarem, e como predadores selvagens, emitiam uma mistura de grito e rosnado. Estipulei uns 40 desses diabretes. Nada com que eu já não tivesse lidado.

—Queria tentar acabar com isso em tempo recorde. Será que vocês me ajudam? – Caçoei em pé 6 metros acima deles. Berros surgiram na tentativa falha de intimidação. – Ah! Obrigado. Como sempre, tão legais.

E então começara, a batalha de mais uma noite inexplicável. Dei um forte impulso na direção do bando, cortei três em pleno ar durante a rápida descida e pisei na cabeça de um quarto fazendo-a esfumaçar-se na hora. Uma vez no solo, me pus cada vez mais à dentro do grupo sombrio cortando-os sem deixar cair uma única gota de meu sangue no chão. Àquela altura eu já sabia usar muito bem meus poderes e as ferramentas que a cidade me presenteava para o combate, no entanto, três problemas me inquietavam a autoconfiança. À cada noite, pareciam surgir sombras em maiores números. Posso ter dado conta de muitas levas, mas se continuasse assim, uma hora eu cederia. Embora meu corpo voltasse sempre ao estado inicial, a cidade não contava com tal dom, sendo passível de feridas que se gravariam em todas as noites vindouras. Mas o inédito é que mais me preocupava. Exclusivamente naquela noite, eu sentia algo estranho. Ou melhor... a falta de algo.

A reflexão preocupada me custou alguns cortes superficiais no braço e costas. Me fiz esquecê-los e voltei minha concentração na frase que me manteve vivo na primeira de todas as noites. "Vocês não encostarão nela enquanto eu estiver de pé, seus vermes. ".

Saltei para longe do centro concentrado e corri para dentro da cidade. Como esperado, alguns simplesmente desistiram de me seguir e foram direto à sua caça principal, a Necromante. Me aproveitei da descondensação do grupo e os despistei ao entrar e sair em becos aleatórios para ser revisto somente quando fatiei, entre saltos e corridas, os que rumavam à casa no topo da elevação. Parei pouco abaixo da casa em destaque e assumi que minha preocupação era fundada. Eu não sentia mais a minha necromante clamando por proteção alguma. Um calafrio trilhou meu corpo, eu precisava de uma resposta para aquilo e só havia um artefato que talvez pudesse dá-la a mim. O livro. Eu me preparava para ir de encontro ao pequeno grupo remanescente antes de buscar o livro, quando o sino voltou a ressoar pela cidade.

—O quê!? Só pode ser brincadeira.

Nunca o sinal da aproximação de criaturas contou com um intervalo tão pequeno quanto o daquela noite. Alguma coisa parecia de fato errada com ela. Avistei um grupo que julguei contar 80 ou 90 integrantes. Pensei em combate-los da mesma forma que os anteriores mas temia um outro pequeno intervalo entre ataques, e não seria nem um pouco favorável caso a terceira leva fosse ainda maior.

Por cantos aleatórios da cidade descansam estátuas. Se eu alcançar alguma delas, posso melhorar de alguma forma minhas capacidades em combate, mas a um custo. Essas estátuas acordam, tornando-se inimigos realmente problemáticos. Decidi que assumiria o risco. Eu nunca despertei uma estátua com tantas sombras ainda de pé, mas eu não tinha escolha, era hora de fazê-lo.

Com os movimentos mais rápidos que minhas habilidades eram capazes, eu me joguei nas 12 criaturas restantes da primeira leva, mas com a preocupação em acabar o mais rápido possível, sofri um corte no ombro por descuido. Uma vez abatidos todos os inimigos, fechei meus olhos e tentei sentir a direção por onde minha alma relutava em querer prosseguir, uma trilha de sangue escorreu do ferimento. Enquanto as pequenas gotas evaporavam ao contato com o chão, achei a localização de uma delas. Fora justamente para onde disparei meu corpo. A encontrei em frente a uma praça circular de cadeiras enferrujadas. Era a estátua de uma senhora idosa com um semblante amargo e cabelos aparentemente descuidados. As figuras sempre seguram em sua mão algum tipo de rocha lisa com símbolos diversos por todo seu corpo. O livro as chama de "fragmentos". Sem que tivesse tempo para repensar a ação, pude ouvir o anúncio sonoro do caos iminente. Eles já haviam adentrado a cidade. Olhei para o fragmento com atenção. Eu era incapaz de interpretar uma simbologia tão estranha, mas meu corpo parece fazer isso por si só. No transe que se segue à visão da pedra, minha boca se meche sem meu consentimento e lê em uma linguagem que minha consciência ainda não aprendeu. E assim aconteceu. Após o meu retorno a mim mesmo, percebi meu corpo muitas vezes mais leve. Minha espada, então, transmutou-se em duas katanas pouco menores. A estátua começava a trincar deixando escapar fracos feixes rubros, mas antes que estourasse, eu corri o mais rápido que pude direto às sombras invasoras. Minha velocidade deveria ultrapassar a de um guepardo em menos de 2 segundos. As criaturas sequer me viram chegando quando cortei 4 delas. Eu corria de um lado para o outro aturdindo-as e arrancando suas cabeças sem que pudessem me ver com absoluta nitidez. Ouvi uma risada aguda e extremamente irritante ecoar de onde estourara a estátua. Uma espécie de bruxa cuja pele extremamente flácida e descolorida que escorria pela carne magra, levitava sobre o desenho de uma runa misteriosa ao ar. Ela elevou-se para acima das casas até me avistar, e quando o fez, invocou o que pareciam ser potes de vidro com uma substância aquosa em verde-musgo. Os potes eram lançados na minha direção, mas tirando proveito de minha soberana movimentação, eu os fazia acertarem algumas das sombras ao meu redor que desmanchavam ao contato. Era sabido que o aprimoramento na esquiva me fazia um alvo difícil para a asquerosa mulher, mas em contraponto, me aproximar pelo ar me deixaria completamente vulnerável aos ataques à distância dela. O cansaço começava a dar suas caras. As criaturas negras passavam a arranhar o ar na tentativa de me atingir, e algumas vezes de fato conseguiam. Tendo cada vez mais dificuldade de locomoção, decidi me preparar para sair dali quando a terra estremeceu fazendo-me tombar desajeitado. Da fissura crescente do solo erguia-se uma estátua tal qual as em posse de fragmentos, mas neste caso, um pequeno gato é que posava em cima da plataforma de ostentação. Mal deu tempo de eu rolar no chão e me por novamente em pé antes de a estátua estourar em um brilho rubro. As criaturas ao redor se desengonçaram com a pequena onda de choque que antevira a figura de um furioso leão branco de pedra. A pele do animal era revestida de um mármore alvo com fendas que permitiam sua locomoção. O monstro de mármore rugiu ferozmente, alarmando-me da eminente caça. Minha situação tinha acabado de virar de ponta cabeça. A fera, a bruxa e mais 30 irritantes sombras estavam à minha cola. Corri para o seio da cidade numa tentativa inútil de despistar o animal de pedra, mas ele parecia ter um ótimo faro além de uma locomoção fora do comum dado o quanto seu corpo devia pesar. A bruxa mal conseguia me acompanhar, usava então sua mascote para calcular onde deveria mirar sua solução fétida. Minhas pernas começavam a dolorir quando percebi um beco à frente. Entrei de súbito por ele fazendo a criatura quadrúpede arranhar as garras no chão a fim de não deslizar para muito longe. Fora o suficiente para me perder novamente de vista. O animal entrou pelo mesmo beco, ao final uma bifurcação o deixaria confuso, não fosse a trilha de cheiro mais forte levando-o à direita. A bruxa vinha logo a cima pronta para me cercar com seu vidro em mãos, mas ficou confusa ao ver a sua fera com somente um pano negro na boca. Se deu conta de que era a minha capa ali e antes que pudesse entender o engano, eu já estava às suas costas, em um salto direto. Cravei minhas espadas em seus ombros e, sem larga-las, despencamos juntos no chão. Seu sangue quase negro borbulhava enquanto se espalhava pela calçada quebrada, o leão tornara-se uma estátua imóvel e meu corpo demonstrava-se bastante avariado. As armas retornaram à forma da espada original e o meu corpo já não estava mais tão leve. Tombei no chão sentindo os músculos latejarem.

—Levante-se seu frouxo! Ainda não acabou.

Peguei a espada e corri o quanto pude até me deparar com as 3 dezenas de sombras dedicadas a tentar pôr abaixo as janelas e porta revestidas de correntes e cadeados. Por infelicidade, a mesma que eu devia proteger. Um pequeno pedaço da porta caiu antes de eu degolar a última criatura, cuja fumaça corporal se esvaiu junto ao vento. Deixei-me cair sentado. Diversos cortes por todo o corpo derramavam gotas de um sangue que sequer sujava o chão.

A chuva começava fina para rapidamente tornar-se densa. Eu a sentia limpar meu corpo manchado. Levantei-me em um combate contra a tontura e andei duas ruas até parar de costas a uma escola rigorosa, ao que se aparentava. À minha frente, a estátua de uma mulher que parecia ostentar grande fúria em suas feições. Podia sentir desde a primeira noite, aquela era a figura que mais sobrepujava qualquer coragem em minha alma. Mas eu não estava ali por coragem, eu estava ali por medo. Eu e a estátua trocamos olhares, a chuva preenchendo a curta distância entre nós, quando o sino se fez ouvir por mais uma vez. Fechei os olhos e falei em um tom calmo e fraco.

—Vocês não encostarão nela enquanto eu estiver de pé... vermes.

O fragmento vibrou assim que me concentrei em seus detalhes. A estátua se rompeu.

Quando dei por mim, estava em cima de uma espécie de serpente titânica. Sua cabeça devia ser facilmente maior que um carro, e o corpo, se esticado, poderia ganhar por alguns metros do raio da pequena cidade. Meu pesado machado com a base pontiaguda forçava a narina da criatura para cima, fazendo-a colidir bruscamente contra um alojamento. O animal rastejava nervoso pelas ruas, esbarrando em casas, carros e pontos de ônibus. O machado era tudo o que ainda me segurava naquele corpo inquieto. Com o impulso da perna eu o desprendi de seu focinho, deixando jorrar o sangue do animal, e pulei em um terraço consideravelmente alto. A criatura deu a volta em meio quarteirão antes de se voltar contra mim. Seus olhos demonstravam o quanto queria me despedaçar, e então sua mandíbula abriu a fim de me engolir por inteiro. Girei para o lado fazendo-a passar direto e com o impulso do giro enterrei meu machado em seu ouvido. Mas a serpente não cedeu, invés disso levou-me junto enquanto partia o superior da casa em dois. Em 3 movimentos com a cabeça o monstro rastejante me lançou uma quadra inteira de distância. Quebrei uma parede junto a alguns ossos.

Eu sentia a força me abandonando. Ouvi os berros da mais nova multidão de sombras ecoar pelas ruas da cidade. Enquanto lutava contra a serpente, pude vê-los. Deviam somar 3 centenas. Não podia vencer aquela noite, mas eu não estava com medo de ‘morrer’ ali pela primeira vez, desde que isso os impedisse de chegarem até ela. E então, com a visão embaçada eu percebi contra o que me chocara. Era a parede da catedral, a mesma cujo sino badalava sem intervenção humana, era também, onde o livro se guardava. Refleti sobre a diferença que faria saber um pouco mais sobre mim ou este lugar infernal. Nenhuma que me fosse salvar daquela situação, concluí. Minha existência estava a ponto de se extinguir junto a ele, mas ainda assim, o livro chamava por mim, como nunca o fizera antes. Manquei para dentro do grande salão. A catedral era o único lugar que parecia não ter sofrido a mesma maldição que todo o resto. Suas cortinas eram vívidas e os bancos perfeitamente enfileirados. Embora camadas de poeira se espalhassem pelo local, não era como a estética degradante do mundo fora dele. O livro deitava-se em um pedestal de madeira, o qual alcancei enquanto cuspia sangue nas mãos. Eu me ergui sobre braços quase desfalecentes, o peguei e então caí de costas ao pedestal. Apoiei o artefato de capa roxa em minhas mãos e o folheei até a última página escrita. Não pude compreender quando notei que ao invés das usuais palavras, a página exibia mais daqueles símbolos tais quais os dos fragmentos....

E então tudo ficou claro.

Em dois movimentos de asas esfumaçantes, eu sobrevoei o interior da torre e saí por seu topo chacoalhando o sino de bronze. Desenhei um arco no ar até aterrissar abruptamente em frente à elevação sob a casa. Na onda de choque do pouso, algumas criaturas tombaram ao chão. Irritadas, meia dúzia delas rumaram suas garras a mim. Todas as outras desistiram de me ameaçar quando com um gesto simples de braço na horizontal, eu desintegrei as sombras de um raio de 5 metros. Reuni toda a evaporação das sombras desintegradas em um único ponto próximo à minha mão. A fumaça negra moldou-se à forma de uma foice cujo cabo eu tomei para mim. Tanto minha nova arma quanto as asas que minhas costas sustentavam pareciam emanar infinitamente o mesmo vapor escuro aos quais se reduziam os diabretes quando mortos. Era irracional a forma como aqueles materiais gasosos pareciam maciços em meu porte, ainda que se abalassem ante a perturbação da chuva. Inspirei ares de impaciência quando ouvi o monstro rastejante alvoroçar em minha direção. Dobrei as pernas antes de saltar para alçar voo. Uma vez próximo à minha desafiante, eu mergulhei veloz no ar mirando meu corpo diretamente a ela, pude ver as gotas celestes descendo à mesma velocidade, era como se tudo ali tivesse se voltado à minha causa. A cobra abriu sua bocarra a fim de me engolir, e o fez. Mal consegui contar o número de cortes que fiz enquanto descia o interior alongado de seu corpo, mas pude ver, assim que saí através de suas costas, que as feridas internas alcançavam as escamas externas, fazendo espirrar seu sangue grosso por todas elas. Toquei o chão antes da falecida cabeça do animal-monstro.

—Naja insuportável.

As sombras preenchiam todas as ruas à minha vista, mas se afastavam conforme percebiam minha presença. Gritavam sem ousar atacar em uma mistura aguda de fúria e medo. Eu pude sentir. Dentre todas as criaturas daquele mundo, eu era o soberano. Alcancei a frente da casa e, com outro movimento simples de mão ao ar, arranquei a porta e suas correntes do lugar. Do lado de fora era impossível ver algo dentro, uma densa negritude tomava conta do âmbito interno, quando trespassei onde antes havia uma porta, foi como mergulhar no abismo. E então, pela primeira vez, eu pude sentir o que era calor.

—Precisamos conversar! Diga-me que você não sabia disso desde o início. Não... Pensando bem, acho que também está surpresa. Do contrário teria tentado fazer isto aqui antes. Mas como você pôde? Como pôde decidir isso sozinha!? Eu passei cada noite da minha existência me dedicando a combater as sombras, os monstros, a te proteger de qualquer coisa que a ameaçasse. E nenhum de nós sabia, não é? Que eu é que era o responsável pelas ameaças. Tão diferente das minhas convicções. Você não me despertava para derrotar as sombras, mas... eu é que era a causa da vinda delas. Sim, eu sei que fui um maldito tolo. Porém, ainda mais tola foi você, ao achar que eu concordaria em te deixar desaparecer dessa maneira. Você pode me fazer parecer como um deles agora, pode me dar o poder que eles não têm para te derrotas em um estalar de dedos. Pode até tentar me convencer de que é meu destino final ser o seu carrasco, mas tem algo que você não pode me convencer do contrário, e que eu sabia desde a primeira vez que me chamou. Minha natureza é amar a sua! Por isso eu não quero que sofra mais, também não quero que chore mais, amada necromante. Peço que pare de me tirar do meu túmulo. Não se preocupe, pois eu ainda serei parte deste seu mundo enquanto meu nome estiver gravado naquela cripta. Preciso que entenda. O dia em que esta chuva não tiver mais onde cair, eu também não poderei mais estar aqui para me lembrar do que sinto por você, minha progenitora, minha deusa. Vai demorar um tempo para reconstruir este lugar, eu sei. Sei que as plantas nascerão lentas, a neblina se condensará em gotas aos poucos, o sol dispersará a maldição que corre nas veias desta cidade. E sempre que uma nova escuridão ameaçar infesta-la, eu quero que se lembre destas minhas últimas palavras... as palavras que finalizam as páginas daquele livro: ...

...

A primeira coisa que Rose ouvira naquela manhã foram os pássaros que rodeavam algumas árvores da rua enquanto sua vizinha idosa expulsava alguns gatos de seu jardim. Abriu os olhos sentindo a cama e as roupas ainda úmidas, deslizou o dedo no rosto e descobriu duas largas trilhas de lágrimas quase secas. Não se conteve quando voltou a chorar abraçada ao travesseiro. Após as últimas fungadas, a jovem respirou fundo e, passados alguns minutos, abandonou o travesseiro. Rose sentou-se ainda sem muita energia na borda da cama, pegou o lápis e abriu o caderno em seu colo. Observou a última folha escrita por alguns segundos e então rabiscou a frase ali contida, pulou algumas linhas para em seguida escrever novas palavras, as últimas palavras da última página. Observou o conteúdo grafitado com o coração em deleite e então a fechou novamente. Ouviu os roncos do carro de sua mãe, que o estacionava ali perto. Uma vez em pé, Rose passou a mão por baixo do colchão e de lá retirou uma gilete escondida. Os raios solares entravam pela fresta da janela ajudando a aquecer o interior do quarto. Sua luminosidade amarelada refletia em um porta-retratos onde um jovem posava com seu gato branco de tons pardos em braços. A menina descalça atravessou o quarto até chegar à porta, guardou a gilete no bolso e saiu. A porta rangeu antes de se fechar pela primeira vez naquela manhã.

...

"Enquanto viver, eu vivo junto a você"


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