E eu ouvi o mundo em carvão e sombras escrita por Senhorita Ellie


Capítulo 2
Capitulo 2


Notas iniciais do capítulo

o Nyah infelizmente ferrou com a formatação que eu tinha colocado pras mensagens de texto. Espero que tenha ficado compreensível ;-;



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A última aula de hoje é física, e o professor parece tão ou mais desanimado que seus alunos enquanto dispõe as anotações sobre o quadro negro. Às vezes, sinto pena dele: dar aula no último tempo de uma sexta feira para uma turma de adolescentes não é algo que eu colocaria no topo da minha lista de coisas motivadoras, e meus colegas parecem concordar comigo enquanto babam sobre as suas carteiras. Eu mesmo não posso me isentar da culpa hoje. Geralmente, faço um esforço para pelo menos parecer que estou prestando atenção, mas o celular de Camilla, bem seguro no meu bolso, vibrando de tempos em tempos, simplesmente não me deixa relaxar.

Sei que não tenho culpa de nada — não é como se eu tivesse roubado o telefone ou algo do tipo —, mas não consigo evitar sentir o peso de um crime sobre os meus ombros. Cada vez que o aparelho vibra, sinto o desconforto que me acompanha desde o momento em que acordei se tornar algo mais e mais parecido com uma agonia e até mesmo a simples presença do celular em meu bolso parece queimar. Essas pessoas bem que podiam parar de mandar mensagens, não? Quer dizer, já faz quase vinte e quatro horas que o aparelho está desaparecido, tempo mais do que suficiente para que todos os amigos mais próximos sejam avisados sobre a tragédia. Camilla parece ter dormido nesse ponto.

Assim, quando as luzes vermelhas se acendem, não me dou tempo para ficar enrolando; jogo todo o material na mochila e saio voando pelos corredores, dessa vez efetivamente tropeçando na bengala do menino do segundo ano e, como desgraça pouca é bobagem, correndo como uma galinha por mais uns bons metros antes de me estrebuchar no chão. A força do impacto me desestabiliza e, por um momento, me esqueço do porque eu estava correndo tão desesperadamente. 

“A pressa é a inimiga da perfeição”, já dizia LOURDES, SENHORA, uma sábia pensadora contemporânea. Eu bem que devia tê-la ouvido.

Quando consigo me sentar, vejo o menino do segundo ano soltar um palavrão enquanto os outros o ajudam a se levantar, alguns me encarando como se eu fosse doido. Bem, não vou dizer que eles estão errados. Um pouco constrangido, esboço um pedido de desculpas, mas me sinto ainda mais ridículo ao lembrar que o menino não pode vê-lo e decido que minhas desculpas mentais terão que servir. Espero que ele me perdoe em seu coração. Volto a correr.

Quando chego ao IVENTEC, os portões ainda não se abriram, e suspiro em alívio enquanto me posiciono do outro lado da rua, logo em frente ao portão, de forma a conseguir ter uma boa visão de todos os alunos que o atravessarem. Não quero nem sequer pensar na hipótese de não conseguir devolver este telefone e, então, ter que esperar o final de semana todo para ter uma nova chance de fazê-lo. Não mesmo, obrigado.

A adrenalina esfria em meu corpo, dando lugar a uma espécie de expectativa e, junto com ela, um sopro de realidade. Começo a me perguntar se Camilla chegou bem em casa — só a vi entrar no maldito ônibus, como poderia ter certeza de que nada aconteceu no caminho? — e, caso tenha chegado, se teve alguma disposição para se levantar da cama e vir estudar. Os efeitos de um pós-surra nunca são muito legais, posso dizer por conta própria. Nas primeiras vezes, além da dor física, há uma dor psicológica, do tipo que pinica lá no orgulho e demora eras para passar. Camilla não me parece o tipo de pessoa acostumada a lidar com esse tipo de situação.

Decido então que, se Camilla não tiver mesmo vindo para as aulas ou se ela tiver se escafedido no caminho de casa, mesmo assim entregarei o celular a qualquer um de seus amigos. Eles que lidem com a responsabilidade, porque responsabilidade é coisa de adulto e eu sou um jovenzinho recém-saído da adolescência segundo a legislação do meu país.

Amém, Brasil.

Contudo, quando os portões se abrem e a multidão de alunos começa a se dispersar, percebo que não devia ter me preocupado. Primeiro porque não há a menor possibilidade pela qual Camilla pudesse ter passado despercebida — como se o corte de cabelo raspado de lado e as camisetas com estampas excêntricas já não fossem o suficiente, ela ainda está com hematomas em todo o rosto, que, inchado como uma pequena bola, chama a atenção a ponto de fazê-la parecer-se com uma celebridade. Todos os alunos que passam por ela não conseguem evitar olhar.

Menina de coragem. Eu, nesse estado, não teria me disposto nem a levantar da cama. Mas aqui está ela, tentando sorrir com suas bochechas inchadas enquanto seus amigos riem consigo, abraçando-a como se fossem capazes de protegê-la de tudo e todos. Sinto algo como um aperto na garganta ao ver essa cena e a reação que isso me traz é corrosiva. Em um segundo, tudo o que era alívio por ver Camilla bem e ter a oportunidade de devolver o celular se congela em minhas veias e, numa consequência paradoxal, sinto meu corpo inteiro ferver. Odeio Camilla e odeio mais ainda seus malditos amigos, todos muito bonitos como modelos de TV e ainda estudantes do maldito IVENTEC, instituto de luxo mais caro dessa porcaria de cidade. Quero ir embora, desesperadamente, mas o celular em meu bolso me ancora no mesmo lugar. E quando o olhar de Camilla encontra o meu, o aparelho parece pesar uma tonelada.

Assim, neste um segundo em que eu e ela nos encaramos, o reconhecimento nos acorrentando, estou tão preocupado em sentir raiva que me esqueço de ver, o que é um erro terrível. No momento seguinte, Fábio e Marcos estão partindo pra cima de mim como dois cachorros de rua e minha reação demora tanto pra chegar que pode ser considerada inútil; em um piscar de olhos, estou imobilizado por Marcos, Fábio arma um soco, desses certeiros que podem fazer uma pessoa vomitar, e eu honestamente começo a me perguntar se tenho outra função nesse mundo além de sofrer como um condenado.

Encaro Fábio nos olhos, esperando, o que de alguma forma parece desconsertá-lo. Ele hesita por um segundo e isto é suficiente para que outra coisa chame sua atenção, fazendo-o desviar o rosto, seus braços caindo pelas laterais do corpo. Sigo seu olhar e vejo Camilla manquitolando para atravessar a rua, a postura corporal denunciando irritação. Ela está gritando, consigo notar, mas o inchaço das bochechas mal permite que abra a boca e, assim, não consigo identificar o que está dizendo. Não tento, também; quando Marcos solta meus braços e acaricio meus punhos doloridos, toda a raiva que senti há um minuto se converte em um desconforto generalizado. Só quero ir embora.

Quando eu era criança, mamãe gostava de cantar para mim a canção do querer — uma história sobre um menino que tinha nos olhos o poder de conseguir tudo o que queria e que pagava um preço alto por isso no fim — e, enquanto me levanto e encaro Camilla nos olhos, sinto que poderia ser esse garoto. Quero que Camilla cale a boca e ela o faz quando estendo seu smartphone rudemente em sua direção. Quero que Marcos e Fábio se arrependam de terem me tratado como um criminoso e, ao olhar para eles, vejo ambos se retraírem numa quase timidez. Quero ir embora sem que ninguém me siga e, assim que caminho para longe deles, só me lembrando de olhar para trás vários minutos depois, percebo que estou sozinho.

Não é um preço assim tão alto a se pagar.

Olho no relógio do celular e percebo que vou perder o ônibus das seis e meia, mas isso não me abala como normalmente faria. Meu corpo reage a algo que primeiramente parece ser tristeza, mas que depois concluo que não é; tudo o que sinto, na verdade, é uma tremenda decepção com os meus amigos platônicos. Não tenho esse direito e sei disso, mas também não tento me impedir de sentir.

Pelo menos devolvi o telefone, penso, e é verdade, mas isso não é nenhum consolo. Meus bolsos estão vazios, mas o peso da culpa não foi embora.

Que saco.

Decido não deixar que isso me abale, porém; faço um esforço para não pensar a respeito. Pego o ônibus, chego em casa, faço uma gororoba, janto a minha gororoba, durmo. Acordo tarde no sábado, faço a faxina nos cômodos, tiro a poeira, lavo os banheiros, faço outra gororoba, almoço essa gororoba, dou um cochilo. Acordo mais tarde e me dedico então a fazer coisas das quais gosto, como mexer no tumblr, mexer no pinterest e bostejar no twitter sobre qualquer coisa que pareça relevante.

Por mais ordinário que pareça, gosto de desperdiçar meus finais de semana fazendo esse monte de nada; é bom. Quando me canso do tumblr e sua profusão de posts sobre o novo anime de esportes que está sendo transmitido e seus protagonistas muito gays e também do twitter, onde minha timeline está completamente preenchida por uma guerrinha entre fandoms — o que é EXO e BTS afinal de contas? —, decido largar tudo de lado e pintar alguma coisa.

Depois de semanas utilizando apenas o carvão, é uma sensação agradável, mas estranha, tirar meus potinhos de guache e pincéis do armário para poder me dedicar ao meu tipo de arte favorita: a abstrata. Minha mente sempre tende à psicodelia quando a deixo vagar e as cores fortes do guache me ajudam a traduzir isso para o papel; tenho uma coleção de peças abstratas guardadas em algum canto do meu quarto, as melhores delas devidamente digitalizadas e postadas no pinterest para minha incrível legião de zero fãs poder salvar em suas galerias individuais.

Felizmente, meu fracasso não me faz nem cócegas.

Me sujo todo pela falta de prática e, quando o relógio anuncia as dez horas, tenho em mãos uma peça toda trabalhada em tons de vermelho que mais parece um absorvente sujo do que qualquer outra coisa. Dou risada do meu resultado, me entrego ao prazer de rasgar tudo pela metade sucessivamente até que as dezenas de papeizinhos picados se espalhem pelo chão do quarto e então suspiro, me sentindo entediado novamente.

Não há nada de novo no twitter e também não há nada de novo no tumblr — só pessoas como eu ficam em casa num sábado à noite ao invés de beberem pra cacete e acumularem ótimas histórias para contar — então pego meu travesseiro e vou para a sala assistir a algum filme ruim, provavelmente uma das milhares de comédias românticas que mamãe tem vergonha que dizer que adora, mas que também chora em todas as vezes em que assiste.

Eu não a culpo; eu teria vergonha também.

Estou num estado vegetativo pelo excesso de glicose causado por Querido John quando meus pais chegam, pouco antes do relógio bater a meia-noite, acendendo as luzes azuis e me causando um sobressalto. Ambos riem de mim e do estado bobo em que me encontro, piscando várias e várias vezes enquanto olho em volta como uma criança babona, antes de virem em minha direção e me darem um abraço coletivo com cheiro de suor e cansaço.

— Nos atrasamos um pouco hoje — diz mamãe, atrapalhando-se com a sacola que tem em mãos antes de me entregá-la, sorrindo. — Tínhamos comprado isso de presente pra você, mas acabei esquecendo para trás e tivemos que voltar no meu serviço para pegar.

Franzo o cenho, ainda não completamente desperto do meu estado vegetativo. O delay dura por quase cinco segundos antes que eu consiga entender que preciso estender a mão e pegar a sacola, o que eu faço enfim, sorrindo fronte o conteúdo: um estojinho de tintas aquarela e pincéis novos.

Abraço meus pais novamente. Eles querem me mimar, mas estão cansados, e pouco depois de mamãe desabar em meu colo durante a sua cena favorita do filme — aquela em que John diz para Savannah que jamais a esquecerá —, meu corpo também começa a dar sinais de desistência, as piscadas durando cada vez mais tempo que os milissegundos de hábito. Estou quase dormindo quando minha mente me entrega uma cena para uma pintura — consigo ver um rosto indefinido adornado por copos-de-leite enquanto cores e mais cores aquareladas explodem no fundo — e constato, grogue de sono, que esta é uma ótima ideia.

Me agarro a ela. Não posso me esquecer — irei pintá-la amanhã, prometo a mim mesmo, amanhã...

Mas eu durmo. E me esqueço.

>>

Estou sentado em frente ao IVENTEC, como de hábito, levando meu desenho um pouco mais a sério para variar. Fomos liberados mais cedo do colégio hoje por causa de um conselho administrativo e, assim, tive bastante tempo para me concentrar no meu trabalho, o que trouxe como recompensa um progresso até razoável. Agora meu rascunho do IVENTEC realmente se parece com o IVENTEC e fico tão empolgado com isso que faço a besteira de tirar meu celular da mochila, ligar o 3G e mudar meu nome para Pablo Picasso em todas as redes sociais.

Já é tarde demais quando me lembro que o facebook só permite mudanças de nome de dois em dois meses e estou quase me sentindo triste quando me lembro que não tenho praticamente ninguém adicionado nessa rede social.

Amém, Twitter. Amém.

Admiro minha obra de arte neném, passando o carvão com carinho pelos contornos que já fiz de forma a torná-los mais nítidos, sorrindo para a folha de papel como uma mãe sorri pro seu recém-nascido e, assim, não vejo Camilla se aproximar. Em um momento, estou sozinho, eu e o novo amor da minha vida, em um momento de flerte intenso e, no outro, ela brota no meu campo de visão, escorrendo pela árvore na qual estou apoiado até estar sentada do meu lado. O sobressalto é inevitável. Além da própria aparição súbita, o rosto de Camilla parece uma pintura inacabada, o hematoma assumindo diferentes tons de roxo, verde e amarelo, e apesar de eu jurar que ela está tentando sorrir, o rosto inchado traz para si uma expressão que faria qualquer serial killer morrer de inveja.

Tiro um segundo para normalizar minha respiração e pensar em como exatamente vou fugir daqui. A ideia de estabelecer qualquer contato com Camilla me traz um cansaço que está além do físico — sinto-me espiritualmente exausto antes mesmo que ela abra a boca e mais cansado ainda quando ela o faz, o inchaço das bochechas limitando o movimento de forma que ele se torna ilegível. Não consigo entender o que ela diz e, para o meu desgosto, isso transparece; Camilla repete a sentença várias vezes, meus olhos se cerrando gradualmente em cada uma delas até que eles praticamente se fechem, em vão.

Estou exaurido por esse simples esforço, então desisto. Volto meus olhos para a folha de papel onde meu rascunho do IVENTEC me encara, já não mais tão atraente quanto há alguns minutos, e viro a página, rabiscando qualquer coisa no papel branco só para tentar me esquecer de que Camilla está ao meu lado, tentando iniciar uma comunicação que sou incapaz de manter. Aperto o carvão com força, sentindo-o começar a se desfazer por entre meus dedos enquanto rabisco sem parar nem enxergar o que estou fazendo, os olhos apertados no desejo de que Camilla vá embora, vá embora, vá embora...

Quando os abro novamente, estou sozinho, e o carvão esfarelado manchando a copo-de-leite que inconscientemente desenhei na folha de papel. Suspiro. Deveria estar aliviado, porque é isso o que eu queria, mas só sinto um vazio estranho no peito, para o qual não dou muita atenção.

Camilla volta no dia seguinte. Sinto sua presença ao meu lado, mas não me dou ao trabalho de notá-la; me concentro em meu desenho, os pedaços de carvão quebrados denunciando o meu desespero, mas não sei se Camilla nota. Acho que não, porque ela volta no dia subsequente e me vejo obrigado a comprar uma nova caixa de carvões para desenho, gastando o meu dinheiro reservado para financiar os doces do final de semana. Sem meus doces e ciente de que é muito possível que Camilla continue a aparecer, minha vida parece muito amarga. Pondero procurar por um lugar melhor e mais escondido para que eu possa terminar meu desenho em paz; meu antigo esconderijo já não me traz nenhuma segurança.

Coloco isso em prática na quinta-feira. Ao sair do colégio e levar a surra nossa de cada dia, faço uma caminhada rápida em torno do IVENTEC para encontrar um lugar que me permita uma boa observação, um olho na rua e outro no relógio; hoje é dia de MMA e eu não posso me atrasar. Me sento, olho pro meu trabalho, analiso o estrago que fiz na minha obra de arte enquanto tentava ignorar Camilla e faço uma careta.Nada impossível de ser consertado, mas nada simples também. O que eu fiz pra merecer esse tipo de castigo? Minha borracha, esta amiga fiel que um dia já foi branca e bonita — eu acho, pois já faz muito tempo — me encara de dentro do estojo, parecendo ciente e resignada com seu destino.

E eu honestamente acho que vou conseguir ter um pouco de sossego para consertar meu próprio estrago, é sério que acredito nisso, mas quando enxergo alguém caminhando em minha direção e se sentando ao meu lado pelo canto do olho, concluo que castigo de pobre é ter alegria pouca, mesmo.

Este seria um bom ditado para a senhora Lourdes colocar no quadro negro. Pelo menos ele não falha em ser verdadeiro.

Sei que não é Camilla — ela usa perfume de lavanda, um cheiro que eu particularmente desprezo — e a pessoa ao meu lado usa algo que me parece uma versão de camelô do Malbec. É homem. Imagino quem seja e, apesar da sensação que tenho de que não vai funcionar desta vez, tento usar a mesma tática com a qual venho lidando com Camilla durante os últimos dias: indiferença. Continuo apagando os erros do meu desenho, suavemente deslizando a borracha pelas linhas intrometidas que não deviam estar ali, ciente de que ele não foi embora, e começo a me sentir nervoso.

Por fim, Fábio me cutuca na barriga, com força suficiente para espalhar um arrepio de dor, e eu me sobressalto, fazendo com que o caderno e todos os meus materiais se espalhem pelo chão. Me viro para encará-lo, desgostado, e o olhar que recebo de volta é duro. Ele não está sorrindo; sua postura corporal é agressiva.

— Você anda deixando a Milla um bocado frustrada, menino. Se fingindo de surdo, ignorando ela toda vez que ela tenta te agradecer por não ter feito mais do que a sua obrigação como cidadão ao ajudá-la e devolver o telefone. Qual é o seu problema?

Não consigo saber o tom com o qual ele pronuncia as palavras, mas só o mover dos lábios já soa como um ataque.

Por que tão nervosinho, gracinha?

Dou de ombros e viro a cara para Fábio novamente, não mais prestando atenção no desenho, mas fingindo que sim, e vejo-o tremer de raiva pelo canto do olho. Um segundo depois, ele segura meu braço com força o suficiente para que doa e força meu tronco a se virar, suas sobrancelhas formando uma taturana logo em cima dos olhos, e nem mesmo sua beleza consegue neutralizar a vontade que a cena me faz ter de rir. Mordo o lábio e desvio os olhos, sentindo a risada contida reverberar em vibrações engraçadas por todo o meu corpo.

— Eu perguntei qual é o seu problema — ele repete, aumentando o aperto. As pontas dos meus dedos começam a adormecer. — Responde, cacete.

Eu deveria devolver a pergunta. Eles que enchem o raio do meu saco quando eu claramente demonstro que não quero conversar e no fim sou eu a ter algum problema? A risada que faz meu corpo vibrar morre e encaro Fábio tão duramente quanto ele me encara de volta, querendo parecer ameaçador com seu peito largo e taturana franzida enquanto é, na verdade, apenas um idiota com a defesa aberta.

Deixei mais do que claro que não quero conversa, digo enfim, ignorando o formigamento nos dedos, e a expressão que ele faz quando percebe é maravilhosa; seus olhos se arregalam, seus dedos afrouxam em torno do meu antebraço e seu corpo se inclina para trás num gesto quase instintivo, como se eu fosse portador de alguma doença contagiosa.

Quem me dera.

Durante um segundo, Fábio apenas me encara, seus dedos escorregando até que seu braço também o faça, caindo pelas laterais do corpo, completamente sem reação. No instante seguinte, ele está rindo, não apenas com a boca, mas com o corpo inteiro. Suas costas se arqueiam quando ele joga o pescoço para trás, num contorcionismo ao mesmo tempo bizarro e belo, e não preciso ouvir sua gargalhada para saber que ele está fazendo um escândalo; o olhar dos passantes diz isso por mim.

— Não acredito — tosse Fábio entre suas risadas. — Sério. Não acredito.

Fábio se levanta, corre para fora do meu campo de visão e volta um momento depois, arrastando Camilla pelo braço. Está gritando algo, eu consigo notar, mas seu movimentar inquieto e constante balançar de cabeça não me permite tentar qualquer tipo de leitura, então apenas abraço meus próprios joelhos e me pergunto o que fiz para merecer isso. A ideia da interação é tão exaustiva que eu simplesmente não faço nada para evitá-la; só fecho os olhos e aguardo pacientemente pelo meu destino cruel.

Quando os abro, Camilla está sentada na minha frente, as pernas cruzadas como as das crianças do fundamental. Não me olha nos olhos e o seu nervosismo, ao espelhar o meu próprio, se estabelece como uma forma de consolo — ela parece querer estar aqui tanto quanto eu quero que ela esteja. Como num pedido de socorro, Camilla cutuca o joelho de Fábio, de pé ao seu lado e zero porcento interessado na conversa, e, quando não recebe resposta, o segura para balançá-lo com força no mesmo lugar. Vejo-o xingar.

— Ai, Camilla, você tem 22 anos nas costas, se vira, não tenho filha desse tamanho não — resmunga ele, sem desviar os olhos da tela do próprio celular. — Faz mímica para ver se ele entende ou, sei lá, um desenho, tenho certeza que ele sabe como interpretar um desenho. Ou talvez você só deva criar vergonha na cara e ir embora, porque tá realmente na cara que ele não quer papo.

Como ser inteligente e bastante estúpido na mesma frase: Fábio parece dominar essa arte.

Camilla põe a língua para ele, mas Fábio não vê e ela não chama sua atenção novamente. Ao invés, se vira para mim, seu olhar se alternando entre meu rosto e suas próprias mãos. Quero mesmo acreditar que ela não levou a sugestão da mímica a sério, porque eu gosto de dizer para mim mesmo que ainda tenho fé nas pessoas, mas ao ver Camilla mexer os dedos, pensativa, percebo que ela levou sim.

A que ponto chegamos, cobrador?

Minha ânsia de nos poupar dessa vergonha supera meu desconforto com qualquer interação social amigável. Assim, rabisco uma frase no meu caderno de desenho e exibo-a para Camilla, expirando com alívio quando a vejo concordar. Alcanço meu celular no bolso da frente da mochila quase ao mesmo tempo em que ele vibra, a notificação de nova mensagem do whatsapp surgindo no display, vinda de um número que não está na minha lista de contatos.

9400X-XXXX: Ótima ideia

9400X-XXXX: Realmente achei que ia ter que apelar pra mimica pra você entender.

Lusca: Felizmente, eu sou surdo, mas sou inteligente

Lusca: Pode inclusive falar pro guarda costas aí que bem rude ficar insinuando que sou um tipo de mongol.

Lusca: E que eu sei interpretar um desenho muito melhor do que ele

Ela levanta os olhos para mim, a pergunta escancarada nos olhos, e não consigo conter um risinho.

Lusca: Leitura labial, sou bom nisso. Menos quando a pessoa tá com a cara inchada parecendo uma bolacha, desculpa

Camilla contorce o rosto no que acredito ser um sorriso.

9400X-XXXX: Ah. São ossos do oficio, ne? Nem os meninos têm entendido muita coisa do que eu falo nos últimos dias, tô realmente com uma cara de bolacha aimoré

9400X-XXXX: Enfim. Você me fez de boba todos esses dias. Custava ter feito um sinal de fumaça pra avisar que você não tava ouvindo? Fiquei achando que tava sendo ignorada

Lusca: Mas você estava sendo ignorada

9400X-XXXX: Isso é mal-educado de se dizer

Lusca: Nada mais do que a verdade

Lusca: achei que se eu te ignorasse por tempo o suficiente, você desistiria. Não tava contando com o seu guarda-costas/namorado ae

Apesar do hematoma, as bochechas de Camilla conseguem a incrível proeza de ficarem mais avermelhadas.

9400X-XXXX: Não é meu guarda-costas nem namorado

9400X-XXXX: É só que ele não aguentava mais me ver reclamar por sua causa

9400X-XXXX: você é um tipo de revoltado ou o que? Só queria te agradecer por ter me salvado e por ter devolvido o telefone

Lusca: Não te salvei, realmente, só te dei uma mãozinha

Lusca: Na hora que a luta ficou justa, você se virou muito bem

Lusca: Além disso, como o guarda-costas/namorado disse, não fiz mais do que a minha obrigação, então pode guardar a estrelinha dourada pra você

9400X-XXXX: Não queria te dar nenhuma estrelinha, até porque estrelinhas não matam a fome

9400X-XXXX: tava pensando em coisas mais reais, como por exemplo uma barra de chocolate

 Ela tira cinco barras de chocolate da mochila e as abre em sua mão como num leque. Cinco. Barras. Meu Deus.

9400X-XXXX: comprei de todos os tipos, não sei se você gosta aí se você não gostar eu não vou ficar triste porque vai sobrar mais pra mim

9400X-XXXX: Se você gostar, tem opção de escolher, sério, o que é uma estrelinha perto disso?

Se eu não gosto de chocolate? Eu amo chocolate. Camilla estende as barras na minha direção e penso em não aceitar, porque em uma lista de maneiras para se evitar contato social, o item “aceite um chocolate” não está nas primeiras posições, posso garantir; mas ela comprou chocolate ao leite, desses tão leitosos que derretem até com o calor da mão, e, me sentindo como um prostituto, aceito.

Tenho que admitir que já me valorizei mais, mas quando abro a embalagem e mordo uma pontinha do chocolate, isso não parece um problema tão grande assim. Camilla me observa devorar a barra, satisfeita, e volta a atenção para o próprio celular.

9400X-XXXX: Chocolate nunca falha, essa maravilha dos tempos modernos

Lusca: você fala como quem está acostumada a comprar pessoas com chocolate

9400X-XXXX: mas eu estou acostumada a comprar pessoas com chocolate. Só falha com o Fábio, ele não gosta de doce, essa ridícula

Lusca: Acho que entendo, não tem como fazer cara de mal comendo chocolate, ele deve ter medo    

9400X-XXXX: pra uma pessoa que não escuta você tira umas conclusões muito boas

Lusca: felizmente, sou só surdo, não burro, Camilla

Ela envia um coração, sozinho, desses que o whatsapp teve a ótima ideia — e estou sendo irônico — de fazer pulsar.

Lusca: enfim

Lusca: você já me agradeceu, já fui devidamente pago por fazer minha obrigação social de ser um cavalheiro

Lusca: agora pode ir embora e levar o guarda-costas junto, obrigado, de nada

Lusca: por que você ainda tá aqui mesmo?

9400X-XXXX:: qual é o seu problema?

Lusca: Sou surdo, ignorante e tenho alergia a pessoas que enviam esse maldito coração que bate sozinho

9400X-XXXX: Se o problema é o emoticon...

Ela envia outro coração.

Que afrontosa.

Lusca: Fica com seu namorado barra guarda costas e seu coração que bate sozinho que eu tô indo embora.

Lusca: Deus te abençoe, que você seja muito feliz, que a sua cara volte à cor normal, amém, eu te abençoo também,

Lusca: não me incomoda de novo.

Camilla não responde com palavras, e sim com outra tentativa do que eu penso ser um sorriso, e não diz mais nada. Junto minhas coisas, guardo o celular na mochila e saio sem me despedir, primeiramente disposto a andar sem rumo por aí, mas tendo meus planos cults e conceituais frustrados pela súbita lembrança de que hoje tem aula de MMA. Meus pés mal tocam o chão enquanto voo até o ponto de ônibus e, nessas pequenas alegrias que nós, pobres, temos o prazer de experimentar de tempos em tempos, ele termina de estacionar bem na hora em que piso na parada.

Meu lugar favorito, aquele que fica no fundo, próximo à janela, está vazio, o que é ótimo. Não quero pensar em nada e deixo que a vibração do ônibus sob meus pés seja, da sua própria maneira, uma canção de ninar. Embalado por ela, pego minha lapiseira e deslizo o grafite por uma das folhas brancas do meu caderno, sem realmente prestar atenção no que estou fazendo; minha mente se esvazia através dos movimentos da minha mão, descarregando na folha o sentimento estranho que me domina neste momento.

Quando o ônibus faz a minha parada, a conversa de algum tempo atrás parece tão desbotada quanto o gosto macio do chocolate na minha boca.

No caderno, desenhei uma copo-de-leite.

À noite, Camilla me manda uma mensagem novamente.

Estou deitado na minha cama, bem alimentado após uma maravilhosa porção do que eu costumo chamar de jantar — aquela gororoba desgraçada — e, graças ao típico sono que sucede um bucho cheio, não reajo com o mesmo choque com o qual gostaria, admito. A solicitação pipoca na parte de cima do visor, juntamente com uma prévia do conteúdo da mensagem, e minha surpresa de manifesta no pequeno erguer de sobrancelhas dado antes que eu deslize meu dedo pela janela da notificação, fazendo-a desaparecer.

Muito fácil.

Ou não.

Alguns minutos se passam e, de repente, meu celular simplesmente surta: trava no meio do vídeo sobre técnicas de contorno usando nanquim, vibrando de um jeito que faria qualquer Magic wand morrer de inveja, e eu solto o negócio no colchão como se ele estivesse pegando fogo. Sai, satanás. Faço o sinal da cruz e tudo, apesar de não ser muito religioso, e fico encarando o monstro vibrar em cima da minha cama igual a um idiota até me lembrar da existência da técnica ultra-secreta e milenar de desmontar o telefone e tirar a bateria — recomendo a todos, inclusive. Isso é a mesma coisa que o xarope da vovó, conserta qualquer coisa.

Ao ligar meu celular novamente, está lá a notificação de que existem cem mensagens de duas conversas aguardando leitura no meu whatsapp, sendo que, destas, três são do grupo da minha família que já nasceu morto e as outras noventa e sete são de Camilla .

Valha-me Deus.

Penso em ignorar esse surto, mas a curiosidade é uma praga e eu me pego descendo a conversa, passeando os olhos pelo maremoto de mensagens, pescando entre elas as sentenças mais relevantes.

9400X-XXXX: Oi, boa noite, tudo bem?

9400X-XXXX: Você disse pra eu não te incomodar mas

9400X-XXXX: Ah

9400X-XXXX: Eu gosto de encher o saco

9400X-XXXX: Sabe, eu sei que você tá online, aparece na barrinha ali em cima

9400X-XXXX: Você é estranho

9400X-XXXX: O Fábio disse que você tem um quê de Morticia Adams

9400X-XXXX: Desculpa concordar

9400X-XXXX: Eu num devia ta aqui mas sabe como é você meio que salvou minha pele

9400X-XXXX: e o Fábio ficou me zoando dizendo que você me deu um fora

9400X-XXXX: ele não acredita mais no meu poder de sedução

9400X-XXXX: então eu to aqui provando pra ele que já que o meu poder de sedução não funciona

9400X-XXXX: pelo menos o de floodar ta firme e forte

9400X-XXXX: eu sou meio doente ne

9400X-XXXX: espero que seu celular aguente essa enxurrada que eu to fazendo

9400X-XXXX: desculpa queria star morta

Eu não devia rir, porque Camilla está correta quando diz que é doente, mas é exatamente isso que eu faço: jogo o corpo para trás numa gargalhada que faz o meu corpo inteiro tremer, dessas que a gente só dá de vez em nunca, porque ninguém fica gargalhando aleatoriamente enquanto apanha da vida, e sinto algo dentro de mim amolecer um pouco. Quando pego o celular para responder, os resquícios da crise de riso ainda se fazem presentes na minha respiração descompassada e no sorriso que ainda não morreu em meus lábios.

Lusca: Você é mesmo doente, mas não dá pra esperar nada de alguém que tem

Lusca: duas pererecas se beijando como foto de perfil e uma frase da Lana Del Rey como status

Lusca: você travou meu telefone, achei que ele tinha sido possuído pelo demo mas era só você mesmo, então tá tudo bem, eu acho

Lusca: E tenho certeza que seu poder de sedução tá bem firme e forte

Lusca: é que não funciona comigo mesmo sabe

9400X-XXXX: Você curte garotos?          

Lusca: nas horas vagas, sim

9400X-XXXX:e nas suas horas ocupadas?

Lusca: curto redes sociais. Isso não é nenhuma orientação sexual, é?

9400X-XXXX: Num sei, em tempos de facebook você bem que pode ser faceboquesexual

Lusca: Me chame de twittersexual então. Tumblrsexual. Ou de pinterestsexual, sei lá

9400X-XXXX: Você gosta do Pinterest???

Lusca: Eu respiro pinterest, é bem diferente

9400X-XXXX: meu Deus, não sou a única retardada nesse mundo

Lusca: Fale por você, sou bastante inteligente

9400X-XXXX: Me passa seu usuário. Ooh! Você gosta de mandalas?

Lusca: São relaxantes

9400X-XXXX: E de Harry Potter?

Lusca: Não, só as fanarts que são maneiras mesmo

Ela envia uma risada e, sem me perguntar se quero saber, começa a falar — digitar — desgovernadamente, ao mesmo tempo em que faz meu aplicativo do pinterest quase pifar de tanta notificação. Talvez o problema não seja o pinterest e sim o meu telefone, afinal — o MotoG ainda era parâmetro de qualidade em termos de celular quando eu o comprei há três séculos atrás.  Camilla conta sobre sua faculdade, sobre seu amor com exatas, sobre sua paixão por Percy Jackson — fico constrangido em dizer que acho a série horrível — e também por uma banda coreana de nome esquisito, além de muitas outras coisas que, no meio do tsunami de informações, passam despercebidas para meus olhos.

Sua animação me contagia, de certa forma; me vejo genuinamente interessado no que ela tem a dizer e, pior, começo a contar coisas sobre mim também. Falo sobre meu amor por padrões geométricos — não apenas mandalas —, minhas frustrações pessoais a respeito da continuação de As Crônicas do Matador de Reis e também sobre a adaptação em série das Crônicas de Gelo e Fogo. Discutimos sobre o significado das flores e ela me pergunta o porquê das mais de duzentas fotos de copo-de-leite que tenho salvas; digo-lhe que não sei. Duas horas depois, quando finalmente se cansa, sua despedida traz em mim um sentimento morno que não sei descrever muito bem

Camilla: Menino Lucas, decore minhas palavras: vamos nos tornar ótimos amigos

E, não sei se para o bem ou se para o mal — isso é uma coisa que se descobre com o tempo —, ela está certa: nós nos tornamos mesmo.

>> 

Nossa amizade é curta, mas posso dizer que já aprendi algumas coisas sobre Camilla: ela é uma pessoa barulhenta — em tal grau que consegue perturbar até o meu silêncio, supostamente eterno —, um bocado infantil — é absurdo pensar que é quatro anos mais velha que eu — e também muito, muito iludida. Comprovo minha afirmação com argumentos sólidos: Camilla pensa que, só porque ela foi doida o suficiente para puxar papo — e gostar — com um menino surdo, caretudo e quatro anos mais novo, todos os seus amigos bonitos também são obrigados a fazerem a mesma coisa. E ainda tem a audácia de achar que não vou perceber o que está tentando fazer.

Tudo começa na segunda seguinte à nossa amigável conversa por whatsapp. Estou no esconderijo de sempre, aproveitando a gostosa etapa do desenho que é preenchê-lo de detalhes, quando Camilla me encontra. Seu rosto já não está mais inchado e o hematoma desbotou em tons de verde e amarelo, de forma que quando ela me puxa pela mão, consigo ler com clareza o que ela diz e provavelmente acha que não vou entender:

— Vou apresentar você pros meninos.

Sou arrastado até o portão do IVENTEC, onde uma mulher com cara de pastel está entregando panfletos sobre bolsas em curso de informática para estudantes de baixa renda, e o olhar que trocamos por um segundo mostra que ela se sente tão ou mais desanimada com a vida como eu. Como forma de cumprimento — ou talvez seja só desespero para acabar logo com a pilha de papéis —, ela me entrega um bolo de vinte panfletos de uma vez só e sorri quando eu os guardo na mochila, tudo sob o olhar atento de Camilla, Marcos, Amanda e Fábio, os três últimos me encarando como se eu fosse uma espécie de doido.

Camilla joga os braços por cima do meu ombro. Imagino que esteja falando algo, porque os outros três a encaram por um minuto antes de virarem o olhar para mim e dar, cada um, sua respectiva resposta:

— Ah. Oi.

— Olá, menino!

— Acho que interagimos o suficiente para dez anos na última vez, não é mesmo?

E é só isso. Ninguém diz mais nada, e sinto o peso de Camilla sobre meus ombros aumentar. Novamente, os três respondem à outra pergunta que não pude ver:

— Por mim...

— Bem, qual o problema? Claro que pode.

— Não sei, Milla. Só se ele realmente quiser.

E assim, sinto meu rosto sendo virado na direção de Camilla, que olha bem nos meus olhos para perguntar:

— Nós vamos no shopping, nós quatro. Quer vir conosco?

Olho para Camilla, que consegue sorrir até com o reflexo da luz nos olhos, e para seus amigos, que se encaram entre si, braços cruzados e lábios crispados me contando tudo o que eu preciso saber. Sinalizo para Camilla que não, não quero ir, me despeço com um sorrisinho e me encaminho para o ponto de ônibus.

Ela faz a mesma coisa durante toda a semana e também durante a semana seguinte: me leva até seus amigos com pretextos ridículo ou usa dos mesmos pretextos ridículos para trazê-los até mim, tentando ressuscitar diálogos mortos em esforços que beiram o vergonhoso, como por exemplo:

— Sabia que o Lucas gosta de padrões geométricos, Amanda?

— Ah. Massa.

— Amanda quer fazer uma tatuagem, Lucas, e ela tava olhando por um desses padrões para colocar na coxa.

Ah. Massa.

E também:

Lucas, Lucas, o Fábio também é apaixonado com o Rothfuss, sabia?

Ah. É mesmo?

Aham. O Lucas tem a edição especial de colecionador, Fábio!

— Que legal, Camilla.

Enfim. Fico me perguntando por que ainda dou trela para Camilla e não corto logo esse broto de amizade, mas a verdade é que, ao mesmo tempo em que me irrito por ela tentar me enfiar goela abaixo em seu grupo de amigos diariamente, sem desanimar com seus sucessivos fracassos, me pego gostando da sensação de esperar que ela me chame todas as noites. Temos poucos gostos em comum, mas isso não é um grande problema quando transformamos todos os assuntos em debates existenciais, andando em círculos com nossos argumentos até que finalmente desistamos, admitindo que não estamos indo a lugar nenhum.

E é bom.          

Duas semanas e alguns dias depois da primeira tentativa fracassada de Camilla, estou assistindo um tutorial no youtube sobre aquarelas realistas, nem tanto porque precise dele, e sim porque está legendado em português. A falta de vídeos legendados no youtube é perturbadora e, graças a ela, desenvolvi a habilidade de deduzir, em linhas gerais, o significado de um vídeo com base nas imagens — foi assim que aprendi a pintar com guache, a usar tinta a óleo e também a fazer a gororoba de sempre, que era suposta, pelo título do vídeo, a ser um macarrão à bolonhesa.

Inclusive, gosto de culpar a falta de legenda por não conseguir fazer essa lambreca ficar gostosa.

Assim, quando um vídeo interessante sobre um tema que você curte aparece legendado em português, sua língua natal, com uma letra que não seja comic sans e uma sincronização invejável entre os lábios da moça e o subtítulo, não tem jeito: você assiste. O tutorial nem é dos melhores — um pouco superficial demais, talvez —, mas já me desperta uma coceirinha nos dedos para logo colocar em ação as aquarelas que ganhei de meus pais, cuidadosamente guardadas para um momento em que eu possa me dedicar de cabeça a alguma arte nova. Ou para quando uma ideia fulminante aparecer. O que vier primeiro.

Quando meu celular vibra, não olho de primeira. Provavelmente é um dos meus trocentos aplicativos me avisando sobre alguma que não interessa, porque é agora o momento do vídeo em que a moça demonstra tudo o que ela ensinou e, mesmo que lhe falte alguma didática, é inegável que tem a técnica. Ela pinta um fundo que realmente se parece com um céu ao crepúsculo, construído em tons de laranja e roxo, e dá para as nuvens uma profundidade que eu não conseguiria nem nos meus melhores sonhos. Quase como se fosse uma foto — quase como se elas estivessem realmente ali, ao alcance de um dedo.

É uma imagem bonita e me causa uma coceira mental gostosa; aquela vontade que te assoma quando você vê alguém fazendo uma coisa muito legal e percebe que dá conta de fazer também.

O vídeo termina com um joinha da moça, o que seria condenável se este e todos os outros vídeos do canal também — percebo com alguma alegria — não estivessem legendados em português. Como eles estão, porém, perdoo o gesto, dou meu like, me inscrevo no canal e fecho o notebook, estendendo a mão para alcançar meu celular e ver todas as notificações ignoradas durante a última hora de tutorial.

E aí está: Camilla me adicionou num grupo de whatsapp. O nome é IVENTELOUCOS, a foto do grupo é o teorema de Pitágoras e os únicos integrantes, além de mim e Camilla, são Amanda, Marcos e Fábio. Juro que não sei pelo que fico mais bravo: se pela coragem de Camilla ao me adicionar, uma vez que eu já disse que odeio grupos de whatsapp e que só fico no grupo da família porque ele está morto, ou se pela coragem de Camilla ao adicionar eu, um cara tão de humanas que tá quase escrito na cara, num grupo tão exatas que chego a temer que eles conversem entre si usando código binário.

Camilla: gente vamo dar boas vindas pro Lusca

Camilla: ele é um cara do bem, hominho da porra e um mascotinho em potencial

Bem... Desse susto acho que não morro.

Ninguém responde e não fico esperando, também. Em três toques, já estou fora do grupo, um segundo depois sendo adicionado novamente por Camilla.Reviro os olhos, vou lá e saio do grupo novamente, mas Camilla não dorme no ponto e já estou adicionado de novo antes mesmo que possa piscar. Saio, sou colocado de volta, saio, sou colocado de volta.

Bota casaco, tira casaco.

Camilla: qualé, Lusca, qual o seu problema?

Lusca: odeio grupos e você sabe disso tão bem quanto eu, já te contei

Lusca: além disso, sou de humanas, seu grupo é muito exatas pra mim

Lusca: há sempre o risco de eu me intoxicar

Camilla: haha, engraçado, mas você não sai não

Lusca: qual o SEU problema?

Camilla: meu problema é você bancando o teimoso, fica quieto no grupo aí

Lusca: eu sei q você ta tentando fazer seus amigos ficarem meus amigos também

Lusca: Até acho louvável

Lusca: mas Camilla você é doida e deve saber disso

Lusca: pessoas normais não saem fazendo amizade com meninos surdos e feios por aí

Lusca: principalmente se esses meninos surdos e feios forem quase dez anos mais novos e

Lusca: bastante antipáticos

Camilla: você tem uma ótima imagem de si mesmo

Camilla: um dia eu limpo seus espelhos

Camilla: e não estou tentando fazer meus amigos ficarem seus amigos

Lusca: ah, sim, e você chamando eles para perto de mim para falar bosta todo dia é tudo coincidência né

Lusca: pelo amor de deus você passou meu twitter para esse povo agora nem me sinto mais confortável pra retuitar minhas merda gótica conceitual em paz

Lusca: agora me mete num grupo de whatsapp qual o seu problema??????????????

Camilla: meu problema é que o ep de twd legendado no torrent tá demorando eras pra sair

Camilla: já fazem 84 anos

Lusca: faz bem, essa série é horrível

Camilla: O QUE

Camilla: CE TA LOCO     

Camilla: meu Deus por que eu sou sua amiga

Lusca: me faço a mesma pergunta todos os dias e ainda não achei resposta, desculpa

Camilla: e do é que o crítico cineasta das séries gosta mesmo?

Lusca: Steven Universe

Camilla: isso não é desenho de criança? você bem que é criança mesmo

Lusca: seguindo a lógica, você é uma zumbi por assistir twd

Camilla: universitários são zumbis por natureza, seu argumento é inválido

Camilla: AI SAIU VO LA

Camilla: não se atreva a sair do grupo que eu te coloco de volta, demonho

Só de pirraça, vou lá e saio novamente, mas sou adicionado de volta quase ao mesmo tempo e suspiro. Definitivamente, Camilla é infantil, barulhenta e muito iludida, mas descubro que talvez não tivesse graça se fosse de outro jeito. Assim, silencio as notificações do grupo pelos próximos 365 dias e não mais saio, sabendo que Camilla vai pensar que venceu esse cabo de guerra e me sentindo ok com isso. Se vai deixá-la feliz, qual é o problema, afinal?

Levanto da cama e vou fazer minha gororoba.

>>

Novembro está na metade, mas meu desenho está praticamente completo. Agora, com todos os detalhes pintados em carvão, finalmente se parece com a fotografia em preto e branco do IVENTEC que mentalizei da primeira vez. Com toda a felicidade do mundo, deslizo o carvão pelo papel pelas últimas vezes, preenchendo um espacinho em branco aqui, consertando umas sombras tortas acolá, escurecendo sem necessidade esse ou aquele detalhe antes de sim, finalmente, dois meses e meio depois, dar meu trabalho como pronto.

Levanto os braços pro céu. O mundo não mudou de cor, o tempo não parou, não está chovendo — e a gente bem que está precisando —, ainda não consigo ouvir um barulho que seja, mas dane-se, meu desenho está pronto e está lindo. Tive até o trabalho de assistir a um tutorial sobre como colorir nuances usando carvão — cortesia da moça que faz joinha no final do vídeo e tem o canal inteiro legendado — e, assim, como complemento para o prédio do IVENTEC, consegui simular um pôr-do-sol perfeito, com a luz atravessando as nuvens e tudo.

Se não vier pelo menos um oito nesse trabalho, espero que a senhorita Lourdes aprenda como usar os pés para escrever frases motivacionais no quadro, porque dedos ela já não vai mais ter. Sem pressão.

O mundo é um lugar feliz. Não importa se as provas finais estão aí, se sou um lixo em matemática, se não lembro direito da matéria de história das últimas quatro aulas dadas — estava dormindo em todas elas — ou se os meninos do segundo ano continuam me batendo religiosamente às terças e quintas. Fomos liberados mais cedo do colégio hoje novamente, é sexta-feira, são quatro horas da tarde e eu terminei o meu trabalho de artes.

O que fazer com tanta liberdade?

Checo meu bolso, feliz por encontrar nele algum dinheiro, o suficiente para pagar a passagem de volta e também alguma outra coisa que eu queira comer. O dia está quente como se espera que sejam os dias de novembro, porque o inferno nunca se contenta em mandar uma amostra grátis apenas do seu poder, e decido que vou tomar um sorvete. Há uma sorveteria em frente ao portão dos fundos do IVENTEC, se bem me lembro, e ainda é self-service, o que é ótimo.

Em minha defesa, digo que, quando tomei essa decisão, estava protegido pela sombra da minha árvore favorita, e a ideia pareceu ótima. A árvore, que com certeza já estava aqui quando os bandeirantes assentaram a cidade, pinta uma sombra que cobre a rua inteira, trazendo uma sensação de frescor que não condiz com a realidade, o que descubro logo. Onde o sol bate, brilha tão forte que consigo ver o calor ondulando a partir do chão, o asfalto fervendo, e na metade do caminho, meu corpo já começa a me dizer que não, parceiro, não foi uma boa ideia, você é burro para cacete.

Moro em Ventos desde sempre — estou acostumado com suas ondas de calor seco, com a sensação térmica de cinquenta graus, com a impressão de que o asfalto vai rachar a qualquer momento, incapaz de suportar o calor — mas isso não me impede de sentir a sede. Quando finalmente chego à sorveteria, nem a imagem apelativa dos sorvetes dentro dos freezers consegue me seduzir. Antes que eu me dê conta, já morri todo o meu dinheiro na água mineral mais gelada que o refrigerador tem a me oferecer, bebendo em grandes goles, tentando me consolar com o fato de que sempre haverá uma outra sexta onde serei liberado mais cedo da escola com cinco reais no bolso.

Na próxima passagem do cometa hayley, talvez.

Decido não chorar sobre o dinheiro já gasto em água mineral, embora seja exatamente essa a minha vontade. Ao invés, agradeço a atendente com um menear de cabeça e saio da sorveteria sem lançar um segundo olhar para os sorvetes no freezer, tentando tornar a despedida menos dolorosa. O ponto de ônibus mais próximo não é longe, mas dez minutos de caminhada debaixo de sol parecem algo fora de cogitação no momento — só há meia garrafa de água restante e tenho intenção de sobreviver até o fim do dia, obrigado — então fico feliz ao notar que uma das árvores do jardim do IVENTEC é grande o suficiente para que sua copa faça sombra na parte de fora do muro. Não é exatamente o mais confortável dos lugares — vou ter que me sentar no asfalto — mas tudo bem, é melhor do que nada.

Mexo no twitter para passar o tempo, dizendo algumas merdas e retuitando outras, até que meu celular atinge vinte por cento de bateria e eu decida guardá-lo para poupar energia. O que fazer para matar o tédio? Acabei de terminar meu desenho e meus punhos sentem o esforço — preciso começar logo a consertar minha postura ao desenhar ou vou acabar me arranjando uma tendinite —, mas não consigo pensar em nada melhor para fazer, então guardo meu desenho do IVENTEC com carinho na mochila e encaro a folha em branco, tentando parir alguma ideia.

Gosto de desenhos com muitas cores, que me permitam trabalhar com contrastes e usar a psicologia das cores para passar sentimentos, e o carvão, com sua extensa paleta em tons de cinza, parece muito restritivo nesse ponto. Termino apelando ao lugar-comum dos últimos dias, deslizando o carvão pelo papel até formar a imagem de uma copo-de-leite, e começo a trabalhar em sombreamento e profundidade, o naturalismo do trabalho de artes ainda fresco em meus dedos, me impedindo de me aventurar por qualquer coisa mais fantasiosa.

Já passou das cinco quando termino o desenho. Levanto a cabeça, retornando à realidade, e ela é cruel: o sol ainda castiga o asfalto sem misericórdia e minha mente faz o favor de me lembrar que estamos sob horário de verão. Até dá para mofar aqui até as sete horas da noite, quando o crepúsculo começar a cair, mas não tenho toda essa disposição; com o dinheiro da passagem contado no bolso, meia garrafa de água e nada para comer, é bem provável que eu desmaie antes de chegar em casa.

Estou sendo dramático, só para constar.

Com felicidade, noto que sol girou no céu, desenhando uma faixa de sombra rente ao muro do IVENTEC. Sigo por ela, fugindo do sol como o diabo foge da cruz, contente com o pensamento de que, nesse ritmo, conseguirei pegar o ônibus de quinze para as seis (que não fica tão lotado quanto o de seis e quinze), mas a vida, independente de trabalhos terminados, sextas-feiras onde você é liberado mais cedo e o caralho a quatro, é uma maldita. Ao virar a última esquina que me separa do meu objetivo, dou de cara com Marcos e Amanda conversando entre si, suas posturas denunciando uma discussão acalorada, e estou prestes a passar direto quando vejo meu nome ser mencionado.

Nenhum dos dois me vê. Amanda está de costas para mim e Marcos, embora de frente para nós dois, não percebe minha presença, seu olhar cravado no rosto da mulher com tal força que me surpreende ela ainda não ter se desintegrado. Graças à minha posição, não consigo ver o que Amanda diz, apenas o que Marcos responde, e considero que a citação do meu nome seja mera coincidência — quantos Lucas existem nesse mundo, afinal de contas? Contudo, antes que eu saia de perto, sou mencionado novamente, dessa vez sob alcunha que não deixa dúvidas:

— Ela está ocupada demais tentando nos enfiar o surdo-mudinho goela abaixo para prestar atenção, Amanda, e você sabe disso tão bem como eu!

Desisto de me mover — talvez precise pegar o ônibus de seis e quinze hoje — e me esforço para entender o tópico da conversa tendo apenas as respostas de Marcos como referência. As frases parecem soltas, sem um fio lógico que as conecte, e procuro encontrar algum sentido pelas entrelinhas, sem muito sucesso

— Ah, não brinque comigo.

— Você não a conhece o suficiente para isso!

— Se isso te incomoda tanto, então por que não diz para ela?

— Amanda, independente de quem ela gosta ou deixa de gostar, isso não vai mudar os meus sentimentos, você devia saber.

— Não seja mesquinha, eu fiz um monte de coisas por você que eu não faria por mais ninguém!

— Você quer que eu liste, agora? Tem doze anos que somos amigos, Amanda, achei que você me conhecesse melhor do que isso!

— Amigos, sim, Amanda, e está mais do que na hora de você aceitar isso.

— Não ligo para onde ela coloca a bosta da boca dela, eu já sei que eu não tenho a menor chance, tudo bem?

— Você tá querendo me dizer que Camilla, assumidamente sapata, tá apaixonada por aquele surdo mirrado? — Quantos apelidos carinhosos para mim em uma mesma conversa, que lisonja. — Amanda, não faça piada comigo. Nós dois sabemos que ela tá de quatro por você desde o início dos tempos e você não tem a coragem de rejeitá-la para que ela possa seguir em frente! Você pode me chamar de mesquinho, machista, do que você quiser, mas eu pelo menos tenho a cara de pau de dizer para você os meus verdadeiros sentimentos e não deixar que você se iluda por pouca bosta. E também tenho a vergonha de saber que não, ela não vai se apaixonar por mim, e que meus sentimentos são da minha responsabilidade. Eu pelo menos não saio por aí colocando a culpa nos outros por causa da minha própria frustração pessoal!      

Até mesmo eu, mero observador desse MMA verbal, perdido aqui em alagoinha, reconheço que essa foi pesada o suficiente para nocautear. Me pergunto se Amanda vai aguentar a pancada e, um segundo depois, tenho minha resposta. Virando de costas para Marcos, ela atira seu olhar mortificado em mim por um segundo, todo o sangue fugido de suas faces, abaixa a cabeça e marcha para longe de nós, passando por mim como se eu fosse um pedaço da paisagem. Ela está chorando. E eu não estou entendendo nada.

Marcos franze as sobrancelhas para mim.

— Você estava aí o tempo todo? — Nego com a cabeça. — Ah. Não te vi chegar. O que exatamente você viu?

Alcanço meu celular dentro da mochila, sinalizando para que Marcos também pegue o seu, e procuro o contato dele na lista de membros do IVENTELOUCOS, digitando uma breve resposta:

Lusca: peguei a parte onde você me chama de apelidos carinhosos repetidas vezes, como surdo-mudinho e surdo mirrado

Lusca: inclusive obrigado

9XXXX-8922: de nada

9XXXX-8922: te xinguei tantas vezes na conversa que não sei exatamente o quanto você viu

Lusca: vi uma suruba emocional

Lusca: Amanda é apaixonada por você que é apaixonado pela Camilla que é apaixonada pela Amanda (??????)  

Lusca: achei que isso só acontecesse em filmes

Lusca: e também vi você esfregando a cara da Amanda no chapisco, bem bonito da sua parte, parabéns

9XXXX-8922: obrigado

9XXXX-8922: você é bem intrometido hein, e isso sendo surdo

9XXXX-8922: imagina se ouvisse alguma coisa

Lusca: não faria a menor diferença, vale lembrar que você está no meio da rua e que meu nome foi citado na conversa

Lusca: to nem aí se você gosta de mim ou não

Lusca: eu pelo menos não saio esfregando verdades na cara das pessoas de propósito para magoa-las

9XXXX-8922: o que você sabe sobre mim?

Lusca: nada, mas você também não sabe porra nenhuma sobre mim e já aí fazendo mil suposições e me chamando de surdo mirrado

Lusca: por favor, eu tenho um e setenta de altura, n tenho culpa se você levou o sonho de ser um bambu a sério demais

Marcos visualiza, mas não responde de imediato, e, ao levantar a cabeça, percebo que ele está rindo. Seu sorriso é cheio de dentes e muito amigável; sem querer, me pego sorrindo timidamente de volta.  

9XXXX-8922: acredite, não pedi para ter um metro e noventa e sete de altura, foi uma coisa que só aconteceu, sabe

9XXXX-8922: e em minha defesa, a Amanda disse coisas horríveis pra mim também, você não viu?

Lusca: ela tava de costas pra mim, então não, não vi

9XXXX-8922: ah, mas ela disse

9XXXX-8922: você não precisa se preocupar, depois de doze anos a gente nem se preocupa tanto com essas brigas

9XXXX-8922: ela não ta apaixonada por mim mesmo, só acha que sim

9XXXX-8922: ela vai voltar

Lusca: mesmo apaixonada por você e tendo ouvido toda essa desaforada? Eu nem passaria na mesma calçada que a sua depois dessa

9XXXX-8922: e é por isso que nós não somos amigos

Lusca: não, nós não somos amigos porque você tem ciúme da Camilla comigo e por que ninguém quer fazer amizade com gente feia que nem eu, só a Camilla

Marcos novamente demora a responder e vejo, pelo canto do olho, que é porque ele parou para gargalhar. Não entendo muito bem qual é a graça — só estou sendo honesto, afinal de contas —, mas diante das suas três dúzias de dentes arreganhados, não consigo não sorrir junto novamente. Argh.

9XXXX-8922: a verdade é q a gente não tá entendendo muito bem porque ela tá tão apaixonada por você assim

9XXXX-8922: ela nunca foi uma grande defensora dos frascos e oprimidos, você sabe

9XXXX-8922: e, até onde a gente saiba, a Milla não gosta de homens

9XXXX-8922: os únicos que ela gosta somos eu, o Fábio e o pai dela

9XXXX-8922: e tipo, ela demorou meses para ficar de boas comigo, e só por causa da Amanda tb

9XXXX-8922: aí você aparece e ela fica toda gracinha com vc, ninguém tá entendendo nada

Lusca: ela chegou a me falar que era misandrica

Lusca: mas não levei a sério

9XXXX-8922: não leve, ela não odeia homens

9XXXX-8922: ela só não se sente muito confortável com nenhum

Lusca: talvez o fato de eu ter ajudado ela a se livrar de um estupro tenha sido positivo???

Sou deixado falando sozinho pela terceira vez desde o início do diálogo, mas, agora, Marcos não está rindo. Ele franze as sobrancelhas para mim sobre o celular, tombando a cabeça para o lado enquanto seu olhar assume ares intimidantes, e eu, que já desisti de tentar entender alguma coisa, apenas o encaro de volta. São necessários alguns segundos para que ele pisque e volte suas atenções para o próprio aparelho de telefone, digitando furiosamente.

9XXXX-8922: estupro????????

9XXXX-8922: ela disse que tinha reagido a um assalto!!!!!

9XXXX-8922: que um cara tinha tentado roubar o telefone dela, você chegou bem na hora e ajudou ela a fugir

9XXXX-8922: mas que você ficou com o telefone na correria

Ah. Isso explica tudo. Estraguei o esquema de Camilla.Espero que a desculpa de que eu não sabia que o segredo era secreto seja o suficiente para me absolver.

Lusca: bem, eu a encontrei num beco reagindo contra dois caras

Lusca: eu derrubei um, ela derrubou o outro

Lusca: aí a gente realmente saiu correndo pra fugir e ela entrou no ônibus antes que eu pudesse devolver o telefone

Lusca: ela deixou ele cair quando foi abordada             

Lusca: ah, se você puder NÃO contar que eu te contei isso eu agradeço

Lusca: ela não chegou a mencionar que era um segredo de estado comigo

9XXXX-8922: você derrubou um cara?

Lusca: sim, por que a surpresa

9XXXX-8922: bem

9XXXX-8922: Fábio vai ficar uma arara quando souber e a Amanda provavelmente vai chorar litros

9XXXX-8922: não entendo por que ela mentiu pra gente, não é nada pra ter vergonha

Lusca: não mesmo

Lusca: quando eu devolvi o telefone, ela ficou querendo me recompensar por ter ajudado

Lusca: só que eu não queria aceitar estrelinha dourada por ter feito minha obrigação

Lusca: aí ela cismou que ia ser minha amiga e aqui estamos

9XXXX-8922: debaixo desse sol do caralho, na frente um do outro e conversando pelo celular?

É a minha vez de rir.

Lusca: não era bem isso que eu tinha em mente mas também dá

9XXXX-8922: para onde você tava indo?

Lusca: pro ponto, to morrendo de fome/sede e to com o dinheiro contado da passagem

9XXXX-8922: hmm... vem comigo, vou te pagar um salgado

Oi? Franzo as sobrancelhas para o celular e depois para Marcos, que ri à custa da minha confusão. Não era ele que estava me chamando de surdo mirrado cinco minutos atrás?

— Você quer o salgado ou não? — diz ele. — Tem uma lanchonete ali na frente que vende uma coxinha show por dois e cinquenta. A Amanda adora essa coxinha. Eu não recusaria no seu lugar.

E eu não recuso mesmo.            

A coxinha está longe de ser a melhor que já comi, mas a fome e a gratuidade a tornam tão saborosa quanto qualquer banquete. Durante todo o tempo que demoro para acabar com o salgado e com a garrafa de água mineral, Marcos não cala a boca; fala sobre o tempo, sobre a comida, sobre o meu corte de cabelo e também sobre Amanda. Principalmente sobre Amanda, na verdade. Ele me conta sobre como ele e Amanda se conheceram, sobre como ele e Amanda estudaram juntos durante toda a vida, sobre como ele e Amanda discutiram na época de cada um escolher seu curso superior, sobre como ele e Amanda...

Não digo quase nada; me concentro em apreciar a refeição e vê-lo falar, anuindo com a cabeça para mostrar que estou prestando atenção. Não deixo de pensar, porém, que para uma pessoa que diz não estar apaixonada, Marcos pensa demais em Amanda para seu próprio bem — a presença dela é explícita na maior parte de seus comentários e facilmente detectável pelas entrelinhas dos outros. Chega a ser bonitinho, admito, e todo esse carinho, junto com seus sorrisos cheios de dentes que me fazem sorrir compulsoriamente de volta, faz meu coração se aquecer um pouquinho.

Quando termino de comer, Marcos paga a conta e me acompanha até o ponto. O ônibus de sete e quinze não demora a passar e eu me despeço com um aceno de mão, vendo-o acenar de volta até o veículo dar a partida e começar seu movimento. Um segundo depois, meu celular vibra, anunciando uma nova mensagem.

9XXXX-8922: na próxima vez que a Milla te chamar para sair com a gnt, acho q você deveria vir

9XXXX-8922: você é caladão, mas é gente boa kkkkkkkk

Lusca: que bonitinho você lutando contra seus ciúmes para fazer caridade para mim

9XXXX-8922: vai se foder

Marcos: você não tem a menor chance com ela, desculpa

Lusca: com a Amanda, talvez?

Marcos: ela não é pro seu bico, já vou avisando

Marcos: mas quem sabe

Para quem jura não estar apaixonado...

Sorrio para o telefone.


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