Coletânea do M escrita por M Moraes


Capítulo 1
Morte




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Caminho sem rumo encontrando a direção certa. Observo tudo ao meu redor. Levo comigo lembranças que não serão esquecidas. Carrego lágrimas e dores, contudo não me canso do que faço e farei até que alguém se canse. Enquanto caminhas em vida, eu conduzo a sua ausência. Prazer, eu sou a Morte.

 

De repente, já era noite. Uma noite chuvosa.

O céu negro e as luzes da cidade me acompanhavam em mais um suspiro de vida pela última vez. Havia uma multidão ao redor daquele súbito acontecimento. Uma ambulância, viaturas da polícia, uma equipe de paramédicos tentando restaurar uma vida que já estava em minhas mãos.

O resgate tirou um rapaz, que dirigia embriagado, do carro. A lateral do veículo estava amassada. Ele havia perdido o controle e batido no muro. Não houve outros feridos, apenas ele. Aproximei-me. Ninguém me viu, ou me sentiu, mas eu via a todos. Agachei-me perto do rapaz, que estava com a boca aberta, os olhos fechados, o rosto moreno com vários pingos, como uma flor no orvalho.

Uma gota coincidentemente desceu de seus olhos, escorregou sobre sua face e caiu em minhas mãos. Seu corpo jazia no chão e um médico tentou, pela última vez, trazê-lo de volta a vida. Nada.

Levantei-me e segui meu caminho. Há certas mortes que não costumo ficar por tanto tempo. Não por não valerem a pena, eu simplesmente não vejo um motivo plausível para ver alguém chorando, pedindo para que a pessoa falecida volte. Naquele momento não havia nada disso, apenas olhares curiosos e pessoas balançando a cabeça; outras agradecendo a Deus por ainda estarem vivas e por aquela desgraça não ter acontecido com suas famílias.

Lamentações nunca foi meu forte.

A chuva passava por mim como um desconhecido passando por alguém. Pouco me olhava, seguia ligeira e sempre vinha mais uma e mais uma gota de chuva.

Com os olhos atentos como coruja na escuridão, observava a cidade quieta em alguns pontos e extravagante em outros. Passei por uma praça com alguns brinquedos quebrados, os bancos molhados e uma menininha agachada debaixo de um dos brinquedos de madeira. O escorrega.

O corpo miúdo, encolhido por causa do frio. A blusa branca se tornara cor da sua pele, pois grudava ao corpo por estar molhada e tinha uns respingados de lama como desenhos em forma de bolinhas desalinhadas. Os pés estavam descalços e sujos. De tão pequena que era, pouco era notada pelas pessoas que passavam pela praça. A escuridão no local onde ela estava ajudava no seu esconderijo.

A princípio, dá para se imaginar que é uma criança sem teto, a deriva da sobrevivência humana, mas não. É apenas uma garotinha que saiu de casa escondida para buscar a boneca que havia deixado naquela pracinha mais cedo.

Seus pais haviam ido com ela antes da chuva começar. A pequena brincou bastante e acabou se esquecendo da boneca em um dos bancos.

Sua mãe lhe dissera para não sair de casa e que depois iriam buscar o brinquedo. Mas vai dizer não para uma criança... Assim que viu uma oportunidade e nenhum adulto olhando, saiu porta a fora e voltou para a pracinha. Infelizmente, no meio de sua aventura, a chuva castigou a criança pela sua malcriação e caiu sem piedade do céu. As nuvens gritaram e rangeram. Raios cortavam aquele espaço infinito e a natureza assustava aquela criança de todas as maneiras.

Com medo, correu para debaixo da primeira coisa que viu. Caiu em uma poça de água, pois os chinelos haviam grudado na areia molhada. A criança não ligou, levantou-se e seguiu seu rumo. Parando onde agora eu a vejo. Sua boneca está ao seu lado. Como estará em seu leito de morte.

Sentei em um dos bancos e fiquei olhando para a menina imóvel.

Não quero assustá-los, mas a vida dessa pequena, esquelética e sapeca menina não irá se prolongar. Um ato desesperado de salvar sua boneca se tornará uma doença, na qual a criança não suportará.

Assim que seus pais a encontraram, a mãe apertava a criança em seu colo como o bem mais precioso de sua vida. E era. O pai falava algo, não fiquei para ouvir. A mãe chorava junto com a menina, fechei meus olhos.

Segui minha jornada. Ainda tinha uma longa noite pela frente.

Meses depois eu voltaria.

Meses depois eu voltei.

Passei pela mesma praça num dia ensolarado, com o céu pincelado de nuvens. Olhei rapidamente para debaixo do escorrega. Continuei a andar a passos lentos. Observando tudo a minha volta. Algumas pessoas esbarravam em mim sem dar a mínima importância. Não fiquei com raiva. Eram até pessoas que já haviam estado perto da morte.

Tudo tem seu tempo.

Ouvi uma freada brusca e olhei para o lado. Um carro acabara de parar antes de atropelar um pedestre distraído que atravessava a rua com um celular na mão, provavelmente mandando mensagem.

Há cada pessoa que consegue escapar de mim e nem ao menos percebe a oportunidade que teve de permanecer vivo. Chega a parecer algum tipo de deboche.

Embora houvesse acontecimentos ao meu redor, segui meu caminho. Alguém me esperava e eu já esperava por esse alguém. Nosso encontro estava... Predestinado.

Parei de andar assim que avistei o prédio alto, com um aspecto calmo. Adentrei. Passei rápido pelos corredores, a minha visita para alguns pacientes tinha uma hora e não era agora. Eu já tinha uma em especial.

Ouvi uma tosse catarrenta, gerando quase um engasgar.  Embora não tenha pedido licença para entrar no quarto, não cheguei causando alvoroço. A pequena estava deitada e parecia dormir com os anjos e a boneca ao seu lado. Sua mãe, que não saía de seu lado também, passava a mão no rosto pálido. Cantarolava uma música sem letra, nem mesmo abria os lábios. Emitia um som ameno e tranquilizador. Se a mãe soubesse que eu estava ali, eu poderia suspeitar que ela só estivesse fazendo isso para me distrair e não permitir que sua pequena filha partisse comigo.

Dei um tempo para as duas. A pequena acordaria a qualquer momento para se despedir dos pais. Ela havia contraído vários vírus naquela noite chuvosa, além de ter ficado com a imunidade baixa. Os vírus atacaram o seu pulmãozinho sem chance de escapatória.

Tudo começou com a febre alta constante, tosse agonizante, dor no tórax, falta de ar, secreção de muco purulento amarelado e, para completar o estado da pequena, a prostração. Ela não tinha forças para sair da cama, ficava cansada todo o momento. Os primeiros meses ela seguiu como uma criança normal com febre, mas depois vários e vários exames fizeram parte de sua rotina. E o hospital virou a sua casa.

Radiografias do tórax, auscultação dos pulmões, que foram necessários para saber se havia alguma anomalia no organismo, exames clínicos, tudo feito para diagnosticarem a Pneumonia. Como é uma doença que mexeu com ambos os pulmões da menina, afetando seu sistema imunológico, não houve sequer uma chance de passar por mim e sobreviver.

E pensar que eu já levei tantos homens com essa doença que nem ao menos sabiam como trata-la, agora levarei uma pequena vida que teve todo o cuidado e tratamento possível. Uma doença que foi relatada, porém ainda desconhecida, em anos Antes de Cristo é a causa dessa existência em minhas mãos.

Saí do quarto e caminhei por outros leitos. Vi um menino de nove anos, que estava há bastante tempo na UTI Pediátrica e ganhara uma nova chance de vida recentemente com um Respirador Automático.

Ele estava na cadeira de rodas e olhava para o céu, já à noite, pela janela.

Parei na porta. Lembrei-me de que quase o carreguei em meus braços quando nasceu, mas sua garra de permanecer vivo foi maior que qualquer força. Ele se opôs contra mim. Mereceu cada minuto de vida.

O menino afastou uma das cortinas e, ao olhar o espaço a procura de estrelas, seus olhos embaçados não permitiram que ele as visse. Para o menino, era só um céu. Escuro. Ele queria agradecer a Deus por estar vivo. Também fiquei com vontade de agradecer.

O menino, então, abaixou o rosto, enxugou os olhos lacrimejados e tornou a olhar para o céu. Aos poucos, as tímidas estrelas abraçaram seu olhar e um sorriso lhe brotou no rosto.

Era a hora.

Voltei para o quarto da pequena. Ela abriu os olhinhos e me viu. Mesmo estando acostumada com isso, parece sempre ser a primeira vez que levo alguém. A pequena não relutou, não fez nada a não ser vir para meus braços, como foi para os braços de sua mãe àquela noite no parquinho.

Antes de partir, ela deixou sua marca para sua mãe e seu pai, que estavam no quarto. Um sorriso despreocupado e típico de criança. Sua boneca estava sempre ao seu lado e parecia ter deixado de viver junto com a menina.

De todas as mortes que presenciei – das mais tristes, naturais e inapropriadas, essa foi uma das que me encantou. O sorriso dela me fez sorrir. Ela esticou sua pequena mão até mim e eu a segurei, guiando-a. Seu corpo, gelado e esquelético, ficou para trás e um dócil sorriso me acompanhou.

Não preciso descrever a dor dos pais. Acho que nenhuma dor descrita dói mais do que quando é sentida.

Eu não sou a grande vilã da história, tanto que é preciso viver para que eu entre em ação. A vida lhe concede o bem mais precioso e eu o retiro. Mas isso não me torna má. Eu só realizo o ciclo natural. Não há culpados. Há apenas viver e morrer e vocês no meio disso.


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