A Tempestade escrita por Reyna Voronova


Capítulo 1
A Tempestade




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A Tempestade


O carro estava parado na Rodovia. Os faróis acesos iluminavam cerca de dois metros adiante, e depois disso, apenas o breu da noite. Nem mesmo os céus estavam iluminados — nuvens colossais e cinzentas navegavam por ele como grandes navios, anunciando uma tempestade vindoura mesmo na aridez do Deserto.

Dois homens aguardavam próximos ao carro por outra pessoa — a terceira passageira. Um deles, Ted, uma espécie de cowboy bem-comportado e impaciente — ou pelo menos era assim que ele parecia aos olhos dos outros dois passageiros —, estava caminhando de um lado para o outro, a areia se agitando com o açoite das suas esporas. O outro, Maxwell, era um homem robusto, calmo e observador. Estava com as mãos postas sobre o capô do carro, aguardando pacientemente. Mesmo se cada segundo fosse tão longo e distante como um século, ele ainda aguardaria.

— Aí vem ela — disse Maxwell, tirando as mãos do capô do carro. Ted parou de caminhar e olhou para onde os olhos de Max fitavam. Ao longe, alguém se aproximava. A silhueta parecia ser um vulto sombrio e grotesco, mas à medida que ela se aproximava, tomava a forma de um ser humano vestido em roupas largas e escuras, algo tão ameaçador quanto um vulto disforme.

— Toda vez que olho pra ela, tenho arrepios — Ted respondeu, passando a mão na nuca para aliviar o calafrio.

— Eu também. — Não parecia. A calmaria de Maxwell era contagiante. Era até impossível imaginar que ele era capaz de sentir medo, raiva ou outros sentimentos angustiantes. Mas ele, como todos no Mundo, era passível de sentimentos. Se até a Assassina os tinha, por que não Maxwell? Porém, comparar Max a ela era de certa forma comparar aço à madeira. E naquele caso, Max era a madeira.

— Onde você esteve, Natália? — Max indagou quando a passageira aproximou-se.

— Por aí — ela respondeu. — Demorei por causa daquela desgraçada. Sabiam que ela invadiu a Universidade e escapou ilesa?

— Você está atrasada nas notícias. As mais recentes diziam que ela já estava morta.

— Bem, pelo menos isso. — Ela pôs as mãos na cintura. — E aí, vamos pegar a estrada?

— Já passou da hora — Ted disse, brincando com seu chapéu de vaqueiro.

— A tempestade está se aproximando... — Maxwell disse com um prognóstico preocupante. Vindo dele, realmente deveriam se preocupar. Era a pessoa mais sábia que Ted e Natália conheciam.

Cada um dos três ali se completava. Max possuía a sapiência e a calmaria. Ted, o gatilho rápido do qual sempre necessitavam em emboscadas da Organização, e Natália, a coragem e beligerância que tornava os três um só. Era como um casamento entre três pessoas em que as três partes se toleravam. Nenhum ali se considerava amigo, apenas parceiros, como Ted costumava falar.

Os três entraram no carro. Natália era a motorista, Ted ficava ao seu lado, no banco do passageiro, e Maxwell nos bancos traseiros.

— Todo mundo pronto? — ela perguntou, pronta para dar partida no carro.

Ted assentiu, e Maxwell respondeu que sim, então ela girou a chave do carro, que começou a vibrar. Assim que ela pressionou o acelerador, no entanto, ouviu-se uma espécie de estouro. Imediatamente, Natália retirou seu pé do pedal.

— Ted, você atirou?

— Minha arma tá no coldre! — Ted respondeu, uma expressão furiosa em seu rosto. Ele odiava ser dado como culpado de algo quando era inocente. Não só ele, na verdade. Natália também era como ele. Ela se assemelhava bastante com Ted em alguns momentos

— Max?

— Não fui eu — ele se limitou a dizer, na sua calma de sempre.

— Que merda foi essa?

Natália saiu do carro. Ao abrir o capô, percebeu que uma das peças havia superaquecido.

— Ah, merda!

Max e Ted saíram do carro, querendo saber o que havia acontecido.

— O que aconteceu, Natália? — perguntou Maxwell.

— O carro, ele superaqueceu. O que a gente vai fazer agora?

Ninguém deu uma resposta a tempo. E aquela demora foi o suficiente para deixar Ted andando de um lado para o outro novamente e Natália com um surto de raiva, bastante característico dela.

— Ah, merda, merda, merda!! — Natália chutou um punhado de areia. — A tempestade tá vindo, e a gente vai ficar plantado aqui. O velho da casa da árvore te disse alguma coisa a mais, Max? Talvez o que ele te disse possa ajudar a gente...

— Ele apenas disse para evitarmos a tempestade.

— Você se lembra das palavras dele?

— Ah, sim. Ele falou algo como... Como foi mesmo? — Ele buscou na memória. — Ah, sim... “Uma tempestade se aproxima, filho, e não é sábio que você sinta suas gotas na pele. As dunas do Deserto podem se tornar areia movediça. O papel se rasga quando molhado. Fuja da água, pois no Deserto, não há lugar para ela.”

— Pfft... Quanta bobagem...

— Então fique na tempestade, se você acha que é besteira.

— Por que não podemos simplesmente ficar dentro do carro? — Ted questionou.

— O velho disse para fugirmos da água. Ficar dentro do carro, parados, não vai adiantar. Só existe um jeito de resolver o problema do carro.

— Então diga logo — Natália o apressou.

— O carro está pesado demais. Imagino que ele só será capaz de levar uma pessoa daqui.

— Há! E quem vai querer ser largado aqui? Se você é tão inteligente como eu acredito que seja, Max, você bem sabe que ninguém vai querer isso. E eu, principalmente. Estou disposta a fazer de tudo pra sair daqui dentro desse maldito carro.

— Sabe... a gente deveria parar de fingir, não acham? — a voz de Ted irrompeu, soando corajosa demais do que o usual. — Ninguém aqui tem apreço um pelo outro. Basta dar uns tiros, não é mesmo? — Ele deu uma risada. Natália pôde perceber que ele carregava seu revólver enferrujado nas mãos. — Diga-me quantos devem ficar pra trás que eu vou aliviar a carga. — Nas suas mãos, o revólver brilhava, mesmo estando gasto de tantas vezes que fora usado, e em seu rosto, um sorriso de quem sabe que vai vencer um jogo.

Maxwell não usava armas, então apenas observou aquela cena de maneira calculista. Seu rosto era impassível, não dando ideia do que estava pensando, mas Natália e Ted sabiam que estava planejando cada respiração que iria dar dali em diante. Porém, diferente de Max, Natália andava bem armada, tanto com armas de fogo quanto com armas brancas, e ela sempre fora rápida com suas estimadas facas. Tirou uma do cinto que prendia sua calça e esfaqueou o braço de Ted tão rapidamente que não deu tempo para piscarem os olhos.

O cowboy gemeu de dor, deixando a si mesmo e a sua arma cair no chão a alguns passos. Enquanto caía, a vida lhe escapava através de uma facada na nuca. Além de ser veloz, Natália também era precisa com suas lâminas, e se precisasse, também mortal.

— Menos um. E agora, Maxwell? — Natália sorriu para aquele que seria ou seu algoz ou sua vítima. Um sorriso de intimidação, um sorriso que o convidava a atacá-la, um sorriso que dizia “venha”.

Maxwell pegou a arma que Ted deixou cair e a manteve nas mãos. No entanto, não a apontou para Natália. Nos céus, um trovão os apressou. Max, contudo, não tinha pressa. Passou os dedos pela arma, sentindo a textura áspera de ferrugem misturada ao metal gasto, brincou com o gatilho, mas não fez menção de que iria atirar ou fazer qualquer outra coisa.

— Eu tive uma ideia — ele por fim disse. — Vamos brincar de roleta russa. — Ele abriu o tambor da arma e tirou todas as balas, exceto uma. Girou o tambor de olhos fechados e o fechou.

— Eu vou primeiro — disse Natália, não resistindo a um desafio. Ela era a mais corajosa dos três (ou dos dois, já que Ted tinha sido o primeiro a cair), então era quase como um dever de ser a primeira a provar da sensação de como era estar cara a cara com a morte iminente. Já tinha visto a morte outras vezes, mas não de tão perto e nem com tanta impotência. Das outras vezes, ela poderia sacar suas facas ou suas pistolas e atirar no rosto dela. Daquela vez, a morte empurrava-lhe goela abaixo o seu veneno.

Natália pressionou a pistola contra sua testa e atirou. Clic. Nada. Tinha ficado completamente anestesiada naquela primeira tentativa, seja de coragem, medo ou certeza. Uma parte de si mesma sentia tudo aquilo — a coragem de batalhar pelo carro, o medo de cair ali, em vão, e a certeza de que nada iria lhe acontecer.

Jogou o revólver para Maxwell, que fez o mesmo que ela. Ele olhava em seus olhos a todo o momento, também certo de que iria vencer. Maldito. Se ela o conhecia bem, ele havia trapaceado. Era inteligente, inteligente o suficiente para trapacear de olhos fechados. Ele apertou o gatilho e, como ambos esperavam, nada ocorreu.

Ele devolveu a arma para ela. Naquele momento, ela hesitou. Sentiu o suor frio escorrer pela têmpora — o mesmo local onde a arma iria beijá-la. Sentiu o coração bater mais forte e os membros enrijecerem. Sabia o que era aquilo. Era a certeza da morte se aproximando e a incerteza da vida escapando. Naquele momento, deveria ser mais esperta que Max e mais rápida no gatilho do que Ted havia sido. Maxwell estava tramando bem, pois se ele havia permitido aquele jogo, ele deveria ter uma carta na manga.

Pensou em ser rápida, em apontar a arma em sua direção e atirar rapidamente, mas seria aquilo que ele queria que ela fizesse. Ele era esperto e iria se aproveitar da beligerância de Natália para fazer com que o tiro saísse pela culatra.

O tiro saísse pela culatra. Algo se encaixou na mente de Natália. Durante o momento em que Maxwell brincara com a arma, ele havia mexido nela. Não o suficiente para que ela estragasse no segundo tiro, mas o suficiente para fazê-lo no terceiro. Achava que ele havia apenas decorado a posição da bala, mas aparentemente ele havia feito mais que isso.

— Vamos, Natália, por que não atira? — ele a instigou. Aquele foi um dos poucos momentos de tolice de Max. Ao dizer aquilo, Natália pôde perceber sua armadilha. Ele queria que ela atirasse de qualquer forma. Provavelmente a bala ficara presa no tambor e, após pressionar o gatilho várias vezes, a arma explodiria em sua mão.

— Acho melhor a gente tentar algo diferente, Max. Por que não usamos outra arma? Essa aqui... Eu não sei, não me parece que tá boa.

— Como não? Ted usou ela por muito tempo e nunca deu problemas.

— Então por que você não a testa? — Ela sorriu, e pela expressão dele, ela havia dado o xeque-mate.

— Certo — ele disse, apático. Maxwell nunca aparentava apatia. Aparentava estar sempre com uma resposta na ponta da língua, mas nunca parecia estar encurralado como estava naquele momento.

Ele apontou a arma de modo que não atingisse Natália nem o carro e apertou o gatilho. E a arma explodiu em sua mão. Enquanto Maxwell era surpreendido pela explosão, Natália, sempre rápida, tirou um de seus revólveres do cinto e atirou em sua direção. Ele estava apenas captando os movimentos dela enquanto ela já estava pressionando o gatilho. Ele mal pôde perceber sua morte.

Natália sentia-se em parte mal por ele. Nunca fora do tipo sentimental, mas perder alguém que a havia acompanhado durante muitos tempos, principalmente perder por conta de suas próprias mãos, era uma sensação amarga. Mas estava sozinha. Sempre esteve, mesmo com Ted e Max. No Deserto, poucos eram amigos e muitos eram inimigos. E normalmente, os inimigos costumavam estar próximos.

Porém, em parte sentia-se aliviada. O porquê de seu alívio estava ao seu lado: o carro, a sua fuga de um destino certo. E nem mesmo a morte de Maxwell e Ted iria fazê-la se sentir mal por tê-lo conseguido.

Ela caminhou, passando por cima dos corpos de Ted e Max, e entrou no carro. Daquela vez não houve nenhum barulho estranho para alertá-la de algum problema no carro. O único barulho que pôde ouvir foi o do céu, cada vez mais próximo de se desabar em água sobre o Deserto.


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