O nascimento de Lucy Iordache (Lucy, Origem) escrita por Natália Alonso


Capítulo 1
Capítulo 1 – O primeiro nascimento




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“A primeira vez, é sempre inesquecível.” – Lucy Iordache

 

 

 

Valahia, 1437

 

Eu tinha 6 anos de idade. Naquela época, chamávamos nossa casa de Valahia, isso é romeno, é claro. Historiadores chamam hoje de Reino da Valáquia. Eram terras ao sul da Romênia, na Transilvânia. Mas todos esses nomes pouco importam. Na época, eu não conhecia nada além da Valahia. Para mim, aquele era o mundo inteiro, era o mundo que uma menina de 6 anos precisava. Ele bastava.

Assim que chegamos na igreja para o sermão de Domingo, alguns homens olharam minha mãe, Georgeta, de forma desconfiada. Ela tinha o cabelo preto e cacheado, muito longo. O meu era curto naquela época e muito mais liso do que de mamãe, eles só ondularam mais tarde. Ela cobre a cabeça com o lenço de tecido cru e quando nos viramos notamos que mais alguns do outro lado também a olhavam.

— Deixe pensarem o que quiserem. — disse meu pai, Costel, para minha mãe. Ele a toca no ombro, coberto pelo lenço, e a conduz pela entrada da capela.

Meu pai era robusto, alto, sempre teve os braços torneados pela caça que carregava. Seus cabelos cacheados castanhos moldavam na cabeça um pouco quadrada. Ficava ainda mais quadrada quando ele deixava um pouco de barba, mas sempre tirava no calor. Nós três entramos pela grande porta, e eu sempre fico receosa ali, aquele gigantesco Cristo de costelas aparentes e rosto agonizante olha diretamente para mim. O sangue escorre em sua testa; eu me ajoelho, faço o sinal junto de meus pais e caminho pela lateral para sentar no banco. Assim que nos sentamos, duas mulheres que estavam no banco se levantam e vão mais à frente. Meu pai então nos conduz para mais próximo do corredor é seguido por minha mãe e eu mais perto da parede.

A missa segue, minha mãe sempre fala que devo ficar muito atenta a tudo o que for dito pelo homem de longas vestes brancas. Ele conta uma história de um sábio chamado Eliseu, que recebeu zombaria por crianças. Nessa hora eu fico muito preocupada, ele fala que por conta do pecado das infantes, Deus mandara ursas para devorá-las (Livro de Reis 2:23-24). Eu me curvo um pouco e sussurro para minha mãe.

— O que é uma ursa?

Ela me fita com seus olhos verdes, mas permanece em silêncio. Meu pai, encontra minha face desorientada e responde.

— É um monstro grande e peludo, um cachorro muito grande.

— Grande como um lobo?

— Muito maior.

Meus olhos arregalam, eu imagino o tamanho dos dentes, das garras. Minha mãe interrompe o nosso diálogo com um “shiu” baixo entre nós. Não foi baixo o suficiente e o homem de branco a frente ouvira. Ele então começa a falar outra coisa.

— Lembrando que as mulheres devem permanecer em silêncio nas igrejas, pois não lhes é permitido falar; antes permaneçam em submissão, como diz a Lei. Se quiserem aprender alguma coisa, que perguntem a seus maridos em casa; pois é vergonhoso uma mulher falar na igreja (Coríntios14:34-35).

Ela permanece em silêncio. Meu pai se ajeita no encosto do banco novamente, balançando levemente a cabeça enquanto fecha os olhos, ele suspira como se estivesse cansado. Não sei o porquê, mas ele parece irritado com alguma coisa. Eu volto a me encostar no banco, aterrorizada por medo da ursa me pegar, ainda bem que não conheço nenhum Eliseu. Ele deve ser importante para chamarem um grande cachorro para comer crianças. Após a missa, voltamos para casa. Minha mãe tira o lenço da cabeça e pode voltar a trançar os cabelos enquanto caminha. Meu pai segura o seu lenço e fica olhando de forma serena para ela.

Morávamos em uma fazenda, minha mãe criava ovelhas, produzia leite e queijo. Na frente da casa, tínhamos uma grande figueira. Em um de seus galhos grossos cortávamos a caça e secávamos a carne. No inverno, a pouca neve que caía recobria levemente os galhos grossos da figueira já totalmente sem folhas. Mas agora, era verão, o calor era pouco, apenas agradável. Os campos em torno de nossa fazenda eram verdes e marrons, davam para a floresta ao fim de uma hora de caminhada. Lá, o meu pai se aventurava, enquanto eu ficava junto de minha mãe, em casa.

Lavar as botijas, acender o fogo, fazer o pão, ordenhar a ovelha, alimentar galinhas e tirar ervas daninhas da horta eram algumas de minhas tarefas antes do café da manhã. Eu odiava limpar os alimentos para estoque, mas minha mãe, insistia que eu fizesse a armazenagem. Afinal, eu precisava “saber coisas”, para conseguir um bom casamento. Após colher as raízes, era preciso tirar as ramas. Usar a escova para tirar a terra, e quebrar algumas para plantio. Separar as maiores para serem cosidas antes, as menores para o estoque.

Foi no dia seguinte da missa da ursa que tudo isso aconteceu. Eu não lembro de todos os dias de minha infância, mas desse dia, eu lembro de cada detalhe. Na grande mesa de madeira, havia uma cesta de batatas, cenouras e beterrabas. Eu escovava cada uma e as colocava na cesta. O laranja das cenouras já tinha tingido toda a palha da cesta, as batatas escovadas ficavam lizas no amarelo pastel e empilhadas na mesa. As beterrabas traziam um rubro forte em minhas mãos. Me distraí e cocei a perna por cima da saia de tecido cru formando uma mancha rosada na lateral da saia.

Minha mãe me vigiava com seus olhos verdes como folhas, fixos em meus movimentos imperfeitos. Com um pequeno movimento de sobrancelha eu sabia que eu tinha feito algo errado. Meu pai entra em casa com as botas sujas de lama. Olha para minha mãe e deixa cair os coelhos na madeira do chão. Tira a aljava e o arco dos ombros, puxando o banquinho da entrada. Ele tira as botas com cuidado e coloca ao lado da porta. Tudo isso é silencioso. O olhar de minha mãe, os coelhos, o banquinho, as flechas, as beterrabas.

— Seis? — diz minha mãe contando os coelhos à distância.

— Oito. — Ele corrige puxando mais dois pequenos pendurados na cintura.

— O que aconteceu?

— Choveu. Mas isso é bom, amanhã será um bom dia para javalis. Com a terra úmida, eles vêm buscar as trufas, e eu irei pegá-los.

— Trufas? — Assim que questiono minha mãe me dá um rápido tapa em meu ombro.

— Quem sabe eu traga uma para casa... — diz meu pai, rindo de lado, e provocando minha mãe.

— Você não está falando sério, não é? — fala minha mãe, com a sobrancelha arqueada.

— Não, eu não ousaria. Eu vou vender as trufas, fique tranquila. Agora, porque não me traz aquele seu queijo.

Minha mãe se vira mexendo na panela. Já meu pai, senta-se ao meu lado, empurrando a cesta de cenouras mais para o centro da mesa. Sua barba ficou castanha, clareada pelo sol, algumas tranças escapam do emaranhado de sua pegajosa cabeleira. A camisa de algodão estava mal cheirosa, ela sempre ficava úmida e presa na pele depois da caça, de cortar lenha ou de buscar água no poço. Mas por algum motivo, minha mãe adorava aquilo, era como se ela olhasse sorrindo pra ele, as vezes o abraçava com ele ainda úmido e eles sussurravam coisas. Ela ruborizava. Devia ser algo bom.

Minha mãe coloca na frente de meu pai uma tábua com o queijo de ovelha. Ele usa a faca para cortar um naco, espeta com a ponta da lâmina fosca e leva à boca. Eu fico olhando para o arco na porta da sala, ele percebe o meu olhar. Distraída, corto levemente minha mão esquerda. Minha mãe ouve meu gemido baixo, lança aquele olhar verde. Ela me entrega uma tira de tecido cru tirada do bolso de seu avental e volta para a panela. Enquanto enrolo o corte da mão, viro para meu pai.

— Você pode me ensinar a usar o arco? — Minha mãe olha horrorizada, meu pai não me parece surpreso, ele apenas olha para mim enquanto mastiga o queijo.

— Eu acho melhor não. Continue com a estocagem. — responde meu pai. Mesmo que suas palavras neguem, ele faz um gesto com o indicador nos lábios, para eu ficar quietinha. Acho que ele vai me ensinar sim, só que escondido. É isso? Tomara.

Nesse instante ouvimos a chegada de cavalos à frente da casa, meu pai se levanta e vai para fora. Posso ver três homens pela porta, antes de minha mãe me puxar pelo braço e me levar até debaixo da mesa da cozinha. Ela manda que eu fique quieta, está parecendo nervosa e fecha o tecido a minha frente, me escondendo. Posso ouvir os homens gritando com meu pai, um som de luta acontece. Alguma coisa bate seco no chão, enquanto meu pai grita para minha mãe. Dois homens entram em casa.

— Eu sabia que não devia ter confiado em você, bruxa. — fala um dos homens para minha mãe, em tom baixo, choroso e ameaçador.

— Tudo o que fiz foi aliviar a dor dela, os chás são naturais para diminuir a dor.

— CALADA! Meu filho nasceu com os dedos colados. O Senhor mostrou a marca do Diabo nas mãos dele... foi tua interferência que fez isso.

Os homens a cercam, ela atinge um deles com a panela de barro na cabeça, ele se desequilibra e cai de costas. O outro a agarra, jogando-a no chão, minha mãe grita arranhando seu rosto e ele fecha sua mão pesada em sua face, então ela para de se mover. Ele coloca as mãos no pescoço dela, vejo que ela não se move, mas seu rosto está ficando vermelho, então eu saio de meu esconderijo, alcanço a faca de queijo em cima da mesa e enfio no braço do homem, ele grita. O outro me agarra por trás, me joga na mesa segurando os meus braços, me debato como posso, ele tira uma faca de sua cintura.

— Filhas de bruxas, são bruxas também... — Sinto uma dor cortante na minha testa, passa pelo meu olho esquerdo chegando até o meu queixo. A dor não me deixa enxergar desse lado, eu grito e me mexo tentando chutá-lo, mas ele segura meus braços e usa o peso de seu corpo em meu dorso. Eu tento olhar minha mãe, balançando minha cabeça lateralmente.

Então, vejo meu pai entrar correndo, ele vai para trás do homem que me segura, pega os cabelos dele puxando sua cabeça para trás, e corta a sua garganta em um único movimento. Algo quente me cobre, sem que eu consiga distinguir, um sabor férreo está em minha boca. Passo as mãos em meus olhos, tiro o denso líquido vermelho que recobre meu rosto e vejo um homem caído na porta. O que me segurava está agora caído ao pé da mesa e meu pai luta com o último ao lado do forno a lenha. Ele bate a cabeça do homem, com muita força contra os tijolos do forno, duas e na terceira vez escuto um som de quebrado antes dele soltar o homem ao chão. Minha mãe está caída, o verde intenso dos olhos parados com a pupila muito pequena, seus lábios azuis não falam nada e a cozinha fica silenciosa novamente.


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Notas finais do capítulo

Este livro faz parte do WSU, para maiores detalhes do universo compartilhado de escritores entrar na página do facebook.com/wsuniverse