O nascimento de Lucy Iordache (Lucy, Origem) escrita por Natália Alonso


Capítulo 12
Capítulo 12 – Finalmente, Lucy Iordache


Notas iniciais do capítulo

Este livro faz parte do WSU, para maiores detalhes do universo compartilhado de escritores entrar na página do facebook.com/wsuniverse



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/726935/chapter/12

 

 

“O parto é sempre dolorido, não que eu saiba como é um, não posso ter filhos, mas posso dizer que este é o meu terceiro nascimento.” – Lucy Iordache, hoje, ao final de tudo, caminhando para o vilarejo.

 

 



Valahia, 1460

 

 

Posso ouvir que ele murmura muito baixo “perdão, mestre”. Sua face se torna rubra quando estende a mão recebendo de Shiva a espada. Ele a levanta enquanto Vlad vira seu rosto de lado para mim sorrindo. Neste momento a espada assobia no ar decapitando o Rei dos Condenados e sua cabeça rola pelo chão vermelho imundo. Assim que a cabeça para, Reinfild olha para mim em horror, por um momento, seus olhos encontram os meus como se dissessem “o que foi que eu fiz?”, seu corpo treme um instante enquanto vira pó, grão por grão, o grande amigo de Drácula é dissolvido no ar e desaparece, como se nunca tivesse existido. Estou paralisada, não sei o que fazer.

Nesse momento, sinto todo o salão flutuar. Uma perturbação... sinto como se minhas forças retornassem, mas agora muito maiores. Meus braços se regeneram e sinto o peso de Mr. Hyde ser cada vez menor. Meus olhos viram em prazer, sinto cada ponto de textura do tecido, sinto o gosto do sangue bebido dias antes. Sim, entendo agora a passagem do manto. Eu me alimentara, Vlad se foi, e agora, eu sou Drácula.

Levanto-me de supetão e finalmente pego Mr. Hyde de surpresa arremessando-o até o outro lado do salão, ele bate na parede de pedras e cai desacordado. Dorian rapidamente tenta me tocar com a lâmina, mas eu desvio... meu movimento está muito mais rápido agora. Eu seguro o pulso e ombro de Dorian dando uma joelhada em seu braço. Ele se quebra como um palito; tiro a lâmina de suas mãos.

Assim que a pego, corro para o outro lado do salão, Shiva tenta ir até mim, mas é impedida por Dorian. Inúmeras vozes surgem em minha mente: “mate”, “todos a seu favor”, “todos devem te servir” ressoam em mim. Uma confusão que me deixa entorpecida, fazendo com que eu solte a lâmina no chão.

— Não é tão simples, não é mesmo? — fala Dorian, divertindo-se em ver minha confusão. — Foi preciso de um tempo para que eu conseguisse controlar, as vozes podem atrapalhar. Mas depois que se controla, todos vocês se tornam minhas bonecas.

Ele se aproxima aos poucos, então me viro e o ataco com as garras. Ele desvia rapidamente, como se previsse meus movimentos. Ele nunca lutou antes, ou lutava? Tenho momentos de lembranças dele se aproximando em Londres, tocando-me com a lâmina. Ele me tocou com ela assim que soube o que eu era. Agora me lembro, eu dormia enquanto a lâmina passava em meu corpo e ele sussurrava em meu ouvido.

Lembranças aparecem como fotografias enquanto o ataco, mas ele desvia. Ele sempre estava com ela, me influenciou para que eu decidisse morarmos juntos. Eu o ensinei a lutar, eu falara de tudo de minha vida, de Shiva, parece que até de minha infância eu falei.

Cada golpe dado é um golpe desviado, tudo é previsível a ele. Como Dorian ficou tão rápido? Ele não pode ser... por um momento ele desvia devagar demais e eu atinjo seu rosto. Vejo a poeira cair do ferimento, que rapidamente se fecha. Vejo que ele se transformara no que Reinfild era, mas ele fez a transformação com Shiva. Agora entendo porque ele disse que precisava mantê-la viva.

— Shiva me deu um presente e estou louco para usá-lo com você. — Ele me fala sorrindo quando me atinge no rosto com força.

O golpe me faz curvar para trás, mas me recomponho rapidamente e volto a atacá-lo com socos e chutes. Dorian continua se esquivando de mim, ou defendendo-se meus golpes com destreza.

— Admita, Lucy, está curiosa por que consigo fazer isso.

— Eu posso ter uma ideia.

— Interessante, tocar a lâmina permitiu que se lembrasse de alguma coisa então.

— O suficiente. — O ataco, atingindo as pedras das paredes atrás dele.

— Você me treinou — diz ele, com um sorriso no rosto. —, tudo o que faz é tão óbvio para mim.

Paro, um pouco cansada. Tenho que pensar em algo que não tenha contado a ele. Enquanto isso, ele ainda se vangloria.

— Percebi que era mais interessante não ser um vampiro. Apenas uma gota de sangue e eu seria um servo como Reinfild. Porém, neste caso, a lâmina de Longinus fez com que as regras pudessem ser moldadas.

Nesse momento, Shiva se aproxima com sua grande espada em mãos, bradando enquanto corre até mim. Ela rapidamente me encurrala no canto, fazendo com que eu tivesse de subir nas paredes para escapar. Corro e pego um machado preso em um dos pedestais. O encontro da espada com o cabo metálico do machado faz um som estridente no salão. Por um momento, recuo e a deixo dar o golpe de espada em minha coxa. Mas viro meu dorso, até estar atrás dela e a atinjo nas costas de cima a baixo.

Ela grita, dando um passo à frente. Uma grande quantidade de sangue jorra de seu corpo e escorrendo enquanto ela se vira. A ataco novamente, mas ela bloqueia com a espada, o que me leva a forçá-la a girar o suficiente para que eu consiga desarmá-la. A vampira cai, apoiada em um dos joelhos, e eu me aproximo tentando acordá-la desse maldito controle.

— Shiva! Eu sei que você sempre quis me matar. Mas eu duvido que aceitaria ser controlada assim! — Ela me olha e responde com uma cabeçada.

Recuo e nesta hora sinto que fui abraçada por trás, Mr. Hyde acordou da soneca e agora me segura. Shiva se levanta, corre até mim e me atinge com uma adaga inúmeras vezes. Os cortes se regeneram instantaneamente, então ela me atinge no ombro e dessa vez não retira. Então torce o cabo, arrancando-me um grito de dor.

— Basta! — Dorian grita para ela, que obedece no mesmo instante e se afasta. — Solte, Mr. Hyde! — ordena o manipulador.

O gigante me solta. Eu tiro a adaga de meu ombro sentindo o corte se fechar e olho para Dorian.

— Eu posso pedir que ela a machuque infinitamente, Lucy. Posso pedir que ela se machuque infinitamente. Até mesmo nosso pequeno gigante particular, mas eu prefiro que se una a mim. Seja a minha Rainha dos Condenados.

Vejo os inúmeros vampiros da Ordem que observam toda a cena. Eu posso dar conta de Shiva, de Dorian, mas Jekll não sei como farei isso sem mata-lo, e todos os outros vampiros? Isso será uma luta infinita, uma luta que não tem qualquer possibilidade de eu vencer.

— Sinto muito, Dorian, eu não aceitei essa honraria antes, não me fará mudar de ideia agora. — Eu cravo a adaga em seu peito e corro, mas ele me persegue.

Alcanço a lâmina de Longinus e antes que as vozes me tomassem, eu a uso para decepar sua mão esquerda. Ele paralisa, vendo a poeira sair do pulso e se regenerar, sem a mão.

— NÃO! O QUE VOCÊ FEZ? — vocifera horrorizado pelo braço mutilado.

Atordoada já pelas vozes, eu atiro a lança para longe e aviso.

— Acho que não te explicaram o efeito de objetos amaldiçoados em seres malditos.

Ele me olha abismado e ainda passa a mão direita no final do pulso incompleto. Balança a cabeça e volta para mim.

— É claro que eu sei, todos nós temos fraquezas, Lucy. É só uma questão de saber com quem negociar, não é mesmo? — Dorian volta seus olhos cinzas quase com pesar para mim, mas a expressão muda. —É uma pena, eu queria você ao meu lado. Agora eu quero que sinta cada momento antes de morrer.

Sinto uma facada em minha lombar, olho para baixo e vejo a ponta da lâmina azulada coroando de meu ventre. Quando Shiva tira a lâmina de minhas costas, percebo que essa é uma dor diferente. Sinto minhas pernas trêmulas, desequilibrando-me, mas sei que preciso virar. E assim que faço, curvo-me para desviar da Sedenta nas mãos de Shiva. Por pouco ela não me decapitou. Curvei-me tanto que caio de costas no chão. O embrulhado em meu ventre me indica que algo está muito errado, o corte não se fecha.

Eu rolo pelo chão para desviar de Shiva, que destrói as pedras com a Sedenta. Preciso sair daqui, penso. Levanto, ainda cambaleante e Mr. Hyde tenta me agarrar. Salto e chuto com toda força seu joelho, fazendo-o estalar. Ele urra enquanto tenho que desviar dos golpes rápidos de Shiva, que me encurrala cada vez mais contra a parede.

Dorian apenas assiste a cena furioso por ter ferido o seu ego. Hyde finalmente está no chão se contorcendo, voltando ao seu estado normal, cada vez menor. Eu viro e pego um tapete pequeno, cubro o rosto de Shiva que me persegue em fúria, confusa, golpeando o vazio a sua frente. A saída está cercada de inúmeros vampiros da Ordem, que me aguardam como cães famintos. Esperam a ordem de Dorian para me devorar, mas o seu orgulho é minha chance.

Vou cambaleante andando de costas, seguro o pulso de Shiva que me prende contra a parede. A lâmina tem a sua ponta muito fina apontando para minha garganta. Eu chuto o seu ventre e viramos encostadas na parede, duas ou três vezes. Ela finca dois dedos em minha ferida aberta me fraquejando. Sinto o sangue escorrendo em minha perna, e minha visão cada vez mais turva. Meu braço fica fraco e a lâmina atinge a parede, cortando minha orelha.

Reúno o que resta de minhas forças e empurro Shiva fazendo-a se afastar. Assim que a vejo voltar para mim, eu viro o corpo novamente me deixando cair pela janela. Shiva ainda me corta a coxa antes de eu cair completamente.

Ao atingir a água gelada do rio Danúbio, acabo mergulhando fundo. Minha cabeça bate em uma pedra, um zumbido alto ecoa na minha cabeça e permanece constante. Sinto ardor em meu ventre e coxa, o sangue escapa rapidamente pelos cortes fazendo um rastro de rubro nas águas gélidas que envolvem meu corpo cada vez mais leve. Sinto as águas frias invadindo meus órgãos, o zumbido silencia todo o som ao redor, só escuto ele, constante. Uma dor em meu peito me dá a informação que não estou mais respirando, mas por algum motivo, isso não me preocupa, não mais. Meus olhos ficam cada vez mais turvos com todas as cores se misturando, as formas perdendo definição e a imagem vai virando um grande branco que apaga tudo. Ali, foi a primeira vez que morri.

 

 

 

6º Círculo do Inferno: A Heresia

 

Acordo em águas gélidas, está tudo escuro e estou me afogando. Eu tento nadar, mas para que lado? Tudo é escuro, não há luz alguma, nem encima, nem para os lados. Tento então para cima, costuma ter ar na parte que eu acho que é para cima. Então sinto uma mão em meu tornozelo, olho e vejo que é de algo em putrefação, a mão se junta a outras e percebo muitos braços agora me alcançado. Em horror eu tento nadar para o sentido oposto de onde tem tantos braços e agora vozes de grasnidos. Mas elas pesam, me puxam até um dado momento em que eu, junto de todas elas caímos, engolfados pelo ar muito quente.

A queda é forte, o ar está tão quente que seca e passa a queimar imediatamente minha pele, é insuportável e com cheiro ácido sulfuroso. Em um emaranhado de corpos, eles estão em sua maioria podres, alguns usam elmos de guerra, alguns usam vestidos. Eles gemem e se esfregam em um amálgama nojento e pegajoso. Eu tento sair deles, vejo que um deles tem uma armadura turca, reconheço o golpe em sua garganta enegrecida, foi eu que o matei, ontem mesmo. Afasto o cadáver vivo e suplicante de mim mas sou agarrada por outro que puxa meus cabelos, todos estão agora se rasgando tentando cada um buscar sua própria salvação.

Nesse momento sinto um braço forte segurar o meu e me puxar com violência do piche de cadáveres. Quando um dele tenta segurar minha perna vejo uma figura forte masculina usar uma grande maça para quase arrancar a cabeça daquele que me segurava. O braço que me segura me estende até a altura dos próprios olhos e bufa de suas narinas de búfalo e questiona para o homem que segura a maça.

— É essa? Certeza?

— Sim, leva agora!

Estou atordoada, balbucio querendo saber onde estão me levando, é inútil, o zumbido na minha cabeça parece não deixar que eu fale. O cabeça de búfalo joga-me em seu ombro e usa um machado largo para cortar um braço podre que tentava se segurar em sua cintura. Ambos andam sobre as cabeças e braços no denso liquido que parece segurar todos os apodrecidos onde eu estava. Está quente, muito quente, posso ouvir gritos ao redor, sons de máquinas e até relinchar de cavalos. É um caos bárbaro que estranhamente me deixa relaxar.

De repente eu acordo, estou agora em um chão frio de pedra, mármore finamente polido escuro com detalhes em branco e dourado. O salão é amplo, limpo e não parece tão quente como estava agora a pouco. Mal consigo ouvir os barulhos que me embalaram o sono a tempos atrás, parecem distantes e abafados. Olho para a frente e vejo novamente a figura de búfalo. A forma humanoide tem não só a cabeça animalesca com largos chifres pendendo lateralmente, mas também grosso cascos no lugar dos pés. Porém o dorso, braços e mãos são humanas muito fortes e roliços, em seu peito uma faixa pendura o machado de guerra. A figura olha para mim, dá dois passos se certificando que estou acordada, bufa com sua narina onde pende uma argola dourada e levanta o braço batendo três vezes na porta ao lado.

Momentos depois a porta se abre, os pés descalços de Mefisto são os primeiros a entrarem seguidos pela outra figura que me resgatara entre os cadáveres-vivos. Mefisto vem novamente em seus trajes nobres, seu rosto parece impaciente.

— Até que não demorou muito. É bom, assim deu tempo para revisarmos tudo.

— Mef...irrto.

— Ah, merda! — Ele parece irritado com minha fala imprecisa.

A figura logo atrás dele, é claramente um anjo, ou pelo menos era um. Isso pois além das vestes que lembram de um soldado romano em branco, dourado e vermelho, pendem duas asas grandiosas. Porém apenas uma delas está em seu esplendor, a outra vem arrastada, claramente foi quebrada a muito tempo. Com cicatrizes e muitas penas arrancadas é agora disforme já que um couro marrom escuro parece ter crescido onde as penas puras foram arrancadas. Tal figura carrega um grande livro e segura um par de óculos discretos na ponta do nariz. Tais objetos não combinam muito com a pesada maça que é presa em sua cintura e ele usara a pouco tempo esmagando cabeças violentamente.

— Certas coisas eu preciso que ela fale.

— Calma, provavelmente é só um ferimento. — Mefisto resmunga para o anjo enquanto se aproxima de mim levando seus longos dedos no meu pescoço. — Nada que se a gente não esperar um pouco ela regenera e resolve.

— Se regenerar tudo ela volta a subir antes. — O búfalo fala do fundo da sala.

Mefisto rosna baixo após examinar minha garganta, então puxa minha cabeça a frente e passa a mão no crânio esmagado.

— Você a acertou com a maça? — Mefisto inquere.

— O que? Eu não erro o golpe!

— Ah, não, é perfeito!

— Eu vi, não acertou não. — O bovino completa.

Eu levanto a mão.

Peeeed-ra ... rio.

O anjo faz um gesto com a mão como que indicasse sua razão, o demônio olha com seus profundos amarelos para meu rosto verificando se não há mais ferimentos.

— Tá... deixa eu arrumar isso. — O anjo parece impaciente, abrindo o livro e tentando apoiar em algo. — Não precisa registrar tudo AZ, isso não vai contar como milagre. — O anjo para, levanta os óculos e começa a olhar em torno no salão.

Mefisto leva a sua mão para onde meu crânio está mole e crocante onde deveria ser todo firme, pousa e sinto uma dor que quase me cega. O zumbido vem forte por um instante, mas passa levando a dor junto em poucos segundos.

Eu suspiro aliviada pela falta da dor e do som estridente e contínuo em minha cabeça. Olho para meu ventre e vejo que os outros ferimentos ainda sangram.

— Esses ainda têm que ficar aí. — Mefisto me fala quase como se lamentasse.

— Obrigada. — digo e fico surpresa de conseguir falar.

Ele meneia com a cabeça se levantando.

— Bom, Lucy. Esses são Baal e Azazel. — diz apontando para o demônio de chifres e o anjo ferido, de maneira tão informal que é quase uma reunião de amigos. — E precisamos aproveitar sua primeira visita aqui no inferno para formalizarmos seu contrato.

— Oh, eu acho que devo agradecer vocês por me tirarem daquele... eu não sei do que chamar.

— O poço. — fala Baal se aproximando em seu cascos, ali vão todos os hereges e que ofenderam a divindade que acreditam. — Até que estava um dia tranquilo.

— Mefisto, pode por favor termos algo civilizado aqui? — Azazel reclama com o livro pesado em mãos.

Mefisto aperta o centro dos olhos irritado e faz um gesto com a mão manifestando uma mesa, uma cadeira confortável onde Azazel apoia o pesado livro movendo rapidamente as páginas.

— Me desculpe, senhora... Lucy Iordache, é isso mesmo, não é? — Ele me olha por cima dos pequenos óculos da maneira mais fria que fosse possível.

— Sim.

— Filha de Costel e Georgeta Iordache, nascida em 26/12/1431 em Valahia, Romênia... correto? — Ele lê os dados enquanto molha a pena no tinteiro.

— Correto.

— Bom, está consciente da venda de sua alma sem sua permissão, quer registrar o furto e falsidade ideológica quanto ao uso de sua alma para uso próprio por Vlad Tepes I, o Drácula?

— Falsidade ideológica? Desculpe, isso diz que foi eu?

Olho Mefisto, ele indica com a mão que devo recuar, faz um gesto com o dedo indicando que é erro do Vlad.

— Aqui consta que você teve sua alma roubada, se passaram por você na venda enganando assim, não só você, mas como também Mefistófoles, o negociador. — inquere o caído através dos óculos.

Mefisto arqueia as sobrancelhas e levanta o indicador.

— Sim! É isso que aconteceu. Ele quem me enganou e também o demônio.

— E não é de seu conhecimento que o demônio sabia que você não estava consciente de sua escolha.

— Não, ele não sabia.

Mefisto sorri levemente, mas disfarça quando Azazel vira para verificar seus movimentos.

A pena volta a escrever ruidosamente no papel fibroso, ele usa o mata-borrão para dar qualidade em sua escrita, folheia e lê outras instruções em páginas distintas antes de retornar.

— Consta agora que você se tornou a Drácula, com os poderes do cargo. Inclusive usufruir do Clã.

— Hum, certo. Mas eu não irei usar.

— Perdão?

Ambos olham para mim

— Não pretendo usar esses poderes, ou cargo, ou o que for.

Azazel balança a pena gesticulando para Mefisto, questionando o registro a ser feito. O demônio descalço se abaixa para mim.

— Assim como você não quis completar o rito, isso é escolha sua. Todos têm livre-arbítrio.

— Ótimo.

— Sim, mas nos autos vai constar que você tem os poderes. Se os usa ou não, isso não importa, não é uma obrigação de usar, não foi assim que contava, certo, Az?

O anjo rapidamente folheia as páginas e murmura o que consta em outra parte.

— ... o uso contínuo do pod... Não. Não faz menção de uso obrigatório. — O anjo retorna as páginas iniciais satisfeito, Mefisto sorri.

— Então pronto.

O anjo escreve rapidamente no papel, murmurando as palavras para manter a concentração.

— ... tornou-se a Drácula, com os poderes do cargo. Inclusive usufruir do Clã, se assim o desejar. — Ele enaltece as palavras finais com o tom elevado da voz pousando novamente a pena no tinteiro e buscando o mata-borrão.

— Me parece correto.

— Certo, agora o que nos interessa, penitência! — Mefisto anuncia com satisfação.

Eu congelo.

— Na ausência de venda direta da própria alma, de usufruto do bem intransferível, da existência do estelionato de seu bem sem justificativa, constando o casamento anulado e não consumado, fica estabelecido a nulidade de penitência diante da venda do bem. — Azazel fala já cansado, tosse um pouco do ar seco em sua garganta, molha a pena e retorna a escrever. — Portanto, a alma que já possui os poderes sem retorno, permanece amaldiçoada sendo vedada sua subida, revogada o perdão no Limbo tendo que permanecer em estadia no inferno durante seus períodos de não-vida. Até seu futuro extermínio de vida por objeto amaldiçoado ou obliteração de alma em rito.

Mefisto manifesta um copo de água e o coloca sobre a mesa, próximo ao livro.

— Ah, obrigada, querido. — Azazel bebe longas goladas antes de retomar. — Acho que assim está tudo, não é mesmo?

— Desculpe, então eu não sofrerei a penitência?

— Não, claro que não, querida. — Azazel fala terminando o copo. — Você foi enganada, assim como Mefisto que também foi perfidamente manipulado por um ardiloso mortal.

Mefisto franze o cenho.

— Você não precisa escrever isso também. — O demônio fala baixo.

— Está implícito. Ora, erros acontecem. É por isso que é sempre bom seguir alguns protocolos. — Azazel completa em um uma voz debochada enquanto Mefisto parece revirar os olhos amarelos.

— Então vou para o inferno, mas não sofro.

— Isso mesmo.

— O que devo fazer aqui?

Azazel fica pensativo.

— Oh, bom. Não temos regras do que se pode ou não fazer aqui se você não é um demônio e também não é um condenado então...

— Pensaremos em algo. Talvez apenas fique aqui. — completa Mefisto.

— Cerrrto. — digo com desconfiança.

— Oh, não se preocupe, mulher. Aqui não enganamos ninguém, é tudo muito claro. Não somos... enfim.

— Não somos humanos escrotos. — completa Baal que ficou acompanhando tudo atentamente ao longe.

Eu balanço a cabeça assertivamente. Azazel termina de escrever alguns itens ainda murmurando datas e algum extenso número de registro quando molha a pena e a entrega para mim.

— Acho que esse acordo fica bastante promissor. — afirma Mefisto, oferecendo a mão para me auxiliar me levantar do chão e ir a mesa.

Eu aceito o gesto, dou dois passos com dificuldade e pego a pena. Noto agora que o livro é maior do que eu via e a letra de Azazel muito clara e bem alinhada. Minha assinatura finaliza a página, a de Mefisto aparece em um verde brilhante logo em seguida sem ele precisar da pena e as de Azazel e Baal constam como testemunhas logo depois.

— Com tantas formalidades, parece que estou comprando um terreno.

Azazel olha para mim em um sorriso debochado fechando os óculos na mesa.

— De certa forma, somos nós que compramos a casa, só que sem levar as paredes. — Azazel olha para Mefisto como se risse da situação.

Eu noto que apesar da dor em meu ventre há uma cicatriz recém-formada na pele.

— Essa cicatriz aí vai ficar. Lembrete de que não deve brincar com objetos amaldiçoados.

— Porque entregou a Sedenta para Dorian?

— Negócios. Ele me entregou 328 almas, eu não poderia negar algo assim de pronta entrega.

— Mas os vampiros do Clã já eram amaldiçoados. Você já os teria de qualquer forma!

— Vampiros? Não, querida Lucy. Era o vilarejo de Valahia.

Eu paro ainda entendendo o que ele me fala, o vilarejo que cresci.

— Isso não é possível, para transformá-los em vampiros...

— Ele não precisou disso, apenas clamou que todos se matassem. Isso enquanto balançava a lança de Longinus, suicidas sempre vêm a mim.

— O corte na perna está quase fechando também.

— Então temos pouco tempo, digo, agora. Mas o tempo passa diferente aqui. Lá na superfície te garanto que faz poucas horas que está morta, mesmo que aqui passe dias.

Azazel termina de recolher os itens da mesa, ele fala algo com Baal e se aprontam a sair.

— Foi um prazer, Lucy. Quando você estiver morta aqui, se quiser algo a fazer pode me procurar.

Ele se despede de maneira gentil, assim como o outro que se retira aos passos dos pesados cascos.

— Não o procure, ele vai ter dar papelada para registrar. — Mefisto resmunga ironicamente.

— Achei que você era o cara da papelada.

— O que posso dizer, é cansativo, tem muitos casos, preciso de auxílio.

— É, até porque senão pode ficar sobrecarregado e errar em algo.

— Eu não sei do que está falando. Eu fui sabotado diretamente. — Ele responde com veemência com os olhos âmbar.

Eu ando em direção a porta, olho em volta e ouço os gritos ao longe. Um cheiro podre e alcoólico paira no ar.

— Não se preocupe com o cheiro, você se acostuma.

— Quanto tempo eu tenho que ficar aqui?

— Nenhum, estou te segurando. — Me viro para ele enquanto ele me sorri  Gosto de companhia, ainda mais de uma que não é um demônio... bom, é exótico para mim.

— E Jekyll?

— Se eu gosto da companhia de Jekyll?

— Não, quero saber dele. Ele está bem?

Ele olha como se não devesse me dar informações privilegiadas.

— Aparentemente o soro o fez ficar resistente mais rapidamente. Ele também saltou no Danúbio no dia seguinte.

Um grito ecoa e atravessa o local, olho em volta e vejo um infinito horizonte vermelho vivo e muito quente. Mefistófeles parece muito confortável com tudo isso.

— Bom, não posso te segurar muito aqui. Precisa voltar para cima para apanhar e bater... você sabe, isso que você já faz.

— Espere — O interrompo segurando seu pulso —, e Vlad? Mina e Reinfild?

— Eles estão bem. — Olho para ele questionando a resposta — Eles vão ser torturados eternamente. Bom...

— O que?

— Reinfild vai ficar na Heresia, assim como Mina. Mas Vlad, bom, além de tudo ele traiu um demônio. Então ele ficará no nono círculo. No lago Cocite, Lúcifer pessoalmente cuidará dele.

— Mas isso, é o justo.

— De fato ele me enganou, mesmo que ele mesmo estivesse equivocado — sussurra como se tivesse receio que Azazel soubesse que o erro não foi como relatado. —, então ele fica no círculo dos traidores.

Permaneço em silêncio absorvendo todas as informações. Ele olha em soslaio e murmureja.

— Não sei porque tenho essa sensação.

— Que sensação? — questiono.

— Que virá muitas vezes me visitar, e que será muito bom para nós.

Ele leva o indicador até o centro de minha testa dando um toque como se me empurrasse. O movimento me faz cair e ser puxada para a água gélida que engolfa o meu corpo.

 

 

 

Constanta, 1460

 

Abro os olhos e estou na praia, viro e vomito um pouco da água salgada ao meu lado. Vejo a cimitarra roubada do líder turco posicionada sobre a areia ao lado. Possui uma fita vermelha presa no cabo. O bordado da fita me avisa:

 

 

Tenha armas com você, se quiser durar mais.

M.

 

 

 

Uso a cimitarra para me apoiar e me levanto, passo a mão por debaixo de minha veste para sentir a cicatriz em meu ventre.

No fundo do horizonte, posso ver os montes da Romênia. Lamento que o castelo de Bram, casa de Vlad, aquele que quase foi minha casa, tenha sido tomado por animais sem nenhuma honra. Animais que agora eu me tornara também. Penso em meu pai, ferido e humilhado. Penso em minha mãe, julgada e condenada pelo que sequer cometeu. Em Mehmed, seu cheiro e rosto de satisfação que sentiu comigo. Respiro profundamente pensando no que farei.

Lutar agora? Sem ninguém? Nenhum aliado? Não.

Vlad merece que eu lute por ele? Depois do que me fez? Menos ainda.

Voltar para lá e salvar a quem? Shiva? — O único que merecia salvação foi Jekyll, e este conseguiu escapar.

Em minha reflexão, percebo que não sobrara ninguém que mereça a minha compaixão. Lamentei pelo vilarejo, mas depois lembro de como era julgada por minha cicatriz ou por minha mãe já morta. Penso em como fui enganada por Vlad que me iludiu com um falso amor, me feriu e traiu na noite de núpcias. Em Dorian, outro que usou os meus sentimentos. Os únicos que realmente me amaram estão mortos, meu pai, Perseu, talvez Reinfild e Jekyll é o único que restara. Estou sozinha novamente e não tem ninguém que mereça a minha misericórdia agora. Pelo menos, não ao meu lado. Estou com sede. Estou com MUITA SEDE.

Vou dar um passo e percebo que a brisa fria me conduz a olhar para as árvores. Elas soltam folhas ao vento, como se isso fosse tão simples, elas aceitam que suas folhas sejam arrancadas. Agora, eu aceito o que sou. É muito triste perceber que não adiantara eu ter seguido todas as regras que minha mãe me passara na infância.

Fui na igreja. Batismo, orações, segui todas as ordens. Mesmo assim, eu fui iludida, amaldiçoada, controlada. Drácula, Dorian, Mehmed, mas antes de todos por Ele. Mesmo seguindo Suas Leis, tanto as escritas, quanto as que me foram passadas, acabei sendo contaminada por essa monstruosidade. Estranhamente, somente Mefistófeles não conseguiu me manipular.

Talvez eu deva mesmo parar de tomar o pão, talvez eu deva tomar um sangue mais puro e literal. Essa é a única situação que vejo vantagem no momento. Todos tiraram proveito de mim, e eu acho que está na hora de eu tirar algum proveito disso.

Viro-me para olhar o pôr do sol, observando seu brilho ser refletido nas águas, formando um avermelhado brilhante tão pacífico. Eu suspiro, tocada por essa imagem. O vermelho sangue das águas reflete a imagem do que ainda está por vir. Eu sorrio, fecho os olhos ouvindo ao longe um vilarejo em festa enquanto constato que eu estou com sede.

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!