O nascimento de Lucy Iordache (Lucy, Origem) escrita por Natália Alonso


Capítulo 10
Capítulo 10 — Mefisto




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/726935/chapter/10

 

 

“Eu não me entreguei ao meu primeiro amor, mas a um homem que precisava de mim. E depois disso, apenas a Dorian, seus olhos acinzentados nunca se fechavam quando me beijava.” — Lucy Iordache

 

 

 

Valahia, 1460 — tenda de Mehmed II

 

 

Um líquido morno bate em meu rosto. Eu tusso e abro os olhos na tenda iluminada por tochas e velas. Um dos homens gargalha enquanto recolhe seu membro para a calça. Vejo seu rosto atentamente, seu riso de poucos dentes convencido de sua grandeza. O líder estraçalha com os dentes uma perna de galinha, pequenos pedaços da ave ficam presas em sua barba ensebada. Ele fala com os outros homens em uma língua desconhecida, provavelmente turco, gesticula enquanto eles respondem alto. As faixas de meu rosto estão úmidas da urina agora fria, vejo o meu elmo severamente amassado no chão. Largas algemas em meus pulsos, estou de joelhos no chão coberto de tecidos e meus braços estão presos a duas grandes toras de madeira que sustentam a tenda.

O líder bebe vinho e usa a garrafa para indicar a saída de seus homens. Eles saem rindo, tropeçam bêbados de forma ruidosa, no rápido movimento de abertura do véu posso ver uma grande fogueira à frente da tenda. É noite, os guerreiros vitoriosos se aquecem em torno das chamas e bebem vinho provavelmente saqueado dos vilarejos ao redor.

— Deve estar se perguntando por que Shiva não desceu da floresta? — fala o grande homem com certa dificuldade. — Consegue entender o que falo? Romeno é uma língua estranha a mim.

Eu aceno com a cabeça.

— Ela me procurou, disse que o “General Lucius” não iria permitir a minha entrada, mas que ela permitiria tomar grande parte das terras de Conde Dracul se eu desse conta da General. — Ele dá um gole de vinho e se aproxima a passos lentos. — A única condição para o acordo era que você não deveria voltar para o castelo.

Meus olhos nervosos passam a olhar toda a tenda, pensando em uma forma de sair dali. Ele para a poucos centímetros de mim.

— O bom é que fico com as terras produtivas, muito ouro, cavalos e ainda com toda a diversão. — Ele vira a garrafa com o resto de vinho em minha cabeça, eu balanço para que o tecido não absorva tudo, apesar que é melhor o cheiro de vinho do que urina. — Você pensou bem em se disfarçar, pena que seus aliados não sejam assim tão confiáveis.

Eu levanto a cabeça e vejo ele sorrir maldosamente para mim, suas mãos grandes envolvem minha cabeça e começa a tirar minhas faixas arrancando com violência meus cabelos. Após tirar todas as faixas ele ergue o meu rosto e me olha, acaba arranhado meu pescoço ao me mover, suas sobrancelhas se arqueiam quando me olha diretamente.

— Ela me avisou que você era bicho bravo e que não deveria subestimar. — Ele tira uma faca da cintura, a exibe para meus olhos balançando-a e depois a posiciona em minha bochecha. Sorri quando percebe que estou respirando rapidamente, estou ofegante como um cachorro indo para o abate. Ele corta meu rosto levemente, eu fico parada enquanto ele fica olhando o corte se fechar — Você é mesmo da família.

— E você? Eu acertei o seu joelho, eu o vi jogar um cavalo com um braço.

Ele solta o meu rosto e vai para trás de mim.

— Existem vários acordos que podem ser feitos. — Ele corta as fivelas de minha armadura que cai parte por parte no chão. — Eu particularmente só pedi pela força, resistência, não preciso de todos os poderes de um vampiro.

O general corta cada fita, me deixando somente com o fino tecido branco, sujo de suor, terra e sangue. Sinto sua mão áspera passar em meu pescoço, segurando-o depois com firmeza. A outra mão me tateia, ele se abaixa um pouco passando-a por minhas costelas, até chegar no meu seio. Consigo ouvir seu arfar no meu ouvido enquanto se esfrega em mim. Então se levanta novamente e ele rasga a camisa de linho em duas puxadas, arranca o que restara de minha dignidade. Um som chama a atenção, chaves... ele quer me levar até as almofadas, não quer aqui.

Assim que ele desata uma de minhas mãos dou uma cotovelada em sua costela. Ele segura meu pulso com facilidade, torce meu braço que se quebra como um galho fino. Eu grito de dor, ele segura meu braço quebrado e me atinge no rosto, duas vezes, os murros são tão fortes que sinto o gosto de sangue, algo se quebrara, mas eu não sei bem o que. Meu maxilar não parece estar no lugar certo. Acabo caindo, tento me arrastar e chutá-lo, ele segura minha perna, vira o meu pé. Eu não grito, não consigo gritar.

Ele acha que ainda não é o suficiente, então pega a garrafa de barro e a quebra em minha cabeça. Eu tento fazer alguma coisa, mas o chute em minha barriga me faz cuspir sangue de quatro no chão. Ele desata a outra corrente de meu braço e puxa meu pulso por trás de meu corpo, o estalo de meu braço me entorpece, não sei o que sentir, meus órgãos dentro de mim, meus braços ou a cabeça.

Ele me levanta pelos cabelos, me carrega e atira em um bolo de almofadas mais ao fundo da tenda. Sinto ele se aproximar, prende minhas pernas entre as suas, eu tento socar seu queixo mas só consigo mais fraturas em minha mão. Ele sequer se move, olha quase como se estivesse se divertindo com um rato tentando escapar da armadilha. Ele me segura pelos ombros e me dá uma cabeçada no rosto, fico com minha face dormente e muito sangue sai de minha boca.

Ele rasga o tecido de minha camisa, o movimento me lembra de quando Vlad rasgou minha camisola, na manhã de núpcias, quando finalmente vi o que ele realmente era. De repente olho para o guerreiro e vejo Vlad, é muito próximo, ele me chama de animal. Sinto-o me morder o seio, mas fico em dúvida se sinto realmente ou se é a lembrança de Vlad confundindo minha mente.

Ele empurra minha perna com seu joelho, leva um segundo para se ajustar e me penetra com violência. Ele geme alto, sai e no segundo movimento é ainda pior, mais profundo, ele fica quase em transe. Sua imensa mão cobre meu rosto, me imobilizando, meus olhos ficam entre seus dedos e sua palma pressiona o que restara do meu nariz e boca, me sufocando. Ele estabelece um ritmo, agressivo, eu rosno em sua mão, meus braços regeneram, eu o arranho, mas minhas garras não penetram muito de sua resistente pele. Minha parte baixa dói, fecho os olhos para não ver Vlad que tentou fazer o mesmo, ainda que sem sucesso, sinto minha bacia sendo esmagada, tento respirar quando ele grita:

— OLHE PARA MIM! 

E sacode o rosto, sua outra mão desce ao meu pescoço. Consegui dar meia respirada, mas agora sinto dor em minha garganta fechada, meu peito queima com a falta de ar. Minha boca tenta sugar o precioso ar, mas não há qualquer alívio, fico zonza, meus olhos tendem a fechar. Ele abre a mão levemente para que eu inspire, eu consigo resgatar um pouco de ar e ele fecha novamente, agora com as duas mãos. Ele adorou isso, solta grunhidos enquanto seu ritmo acelera, fica em êxtase ao ver meu rosto mudando de cor. Eu vejo suas batidas de coração cada vez mais forte, e sinto o meu cada vez mais pausado. Mal vejo seus movimentos em meu corpo já desistindo de lutar, eu ainda teimo em manter os olhos abertos. Mais uma batida de meu coração devagar e muitas batidas dele, ele sorri enquanto minha traqueia se desfaz em sua mão. Ele pode atingir o pico orgástico a qualquer momento, provavelmente será adorando minha morte.

É nesse instante, que ele parece se mover mais devagar, uma libélula voa atrás dele e posso ver o bater de suas asas em movimentos circulares. Eu não sinto a necessidade de ar por um momento, logo em seguida é como se eu estivesse respirando normalmente, um cheiro inebriante de alecrim selvagem toma conta da tenda. Então sinto algo se aproximar em minha mão, o metal frio toca meus dedos, um sussurro de uma voz familiar me alerta: “seja”.

Eu seguro a adaga com toda a força e atinjo meu agressor nas costelas, a lâmina penetra a carne como se fosse água. O tempo parece ter retornado ao normal quando ele para os movimentos repetitivos, olha para o lado esquerdo um pouco confuso. Eu tiro a lâmina que faz sua lateral jorrar. Viro meu pulso e atinjo sua garganta em um único corte, o sangue cobre o meu rosto.

Lembro quando o meu pai cortou a garganta do homem que me marcara, eu estava embaixo também, eu estava sendo machucada, mas lá eu desviei do sangue, estava apavorada. Agora eu seguro os cabelos do maldito puxando sua cabeça para trás, o sangue jorra em minha face me cobrindo o peito, eu reivindico sua garganta cortada, o bebo. Percebo o tamanho da sede que eu já tinha me acostumado, abaixo um pouco a cabeça do gigante agonizante e sussurro.

— Olhe para mim.

Eu mordo em torno no corte com ferocidade rasgando ainda mais sua abertura, sugando o seu maldito e profano conteúdo. Eu ouço seu sua lamúria confusa e posso ver seu coração oscilando no ritmo cada vez mais devagar, o meu, pulsa cada vez mais forte. Percebo que agora minhas garras podem cortar a sua carne, eu arranho suas costas arrancando um pedaço de sua omoplata. Ele treme por um instante, provavelmente consegue ouvir eu engolindo o viscoso conteúdo, tenta inutilmente se mexer, mas logo não grunhe mais, mal escapa um som de sua garganta. É só quando seu coração para que eu o puxo pelos cabelos para a lateral jogando seu imenso cadáver ao meu lado.

Sinto meu corpo tremer por inteiro, ele fica frio, e quente novamente, minha pele está mais sensível e se arrepia com o toque dos tecidos. Sinto meu ventre pulsar, acho que regenerou tudo o que me fora ferido, em uma sensação de prazer as cores ficam mais intensas, variando as tonalidades. Meu corpo se inclina, então percebo que não me apoiei em nada, de repente estava em pé no meio das almofadas. Olho para o cadáver e percebo o seu cheiro ácido de morte, ainda pego um pouco do sangue em meu pescoço com os dedos e levo até a boca. Algo está estranho no ar, como uma neblina que torna tudo mais intenso.

— Isso é bom não é? — fala a voz familiar, eu viro o rosto para o lado para encontrar finalmente essa voz.

Sentado em uma das cadeiras Mefisto come algumas das cerejas da mesa. A barba rala é charmosa, quando ele me apareceu na primeira vez não pude ver isso por tão escuro que estava na masmorra. Eu observo que o tecido que cobre toda a tenda está limpo da lama das pegadas que se formariam ao ele entrar. Percebo que ainda estou nua, coberta apenas pelo sangue do gigante morto, eu pego a adaga e aponto a ele. Novamente em trajes nobres ele morde a fruta olhando para mim, sorri antes de falar ainda mastigando.

— Acha mesmo que eu te daria algo que poderia me machucar? Por favor... não me faça te chamar de burra.

— Por que está aqui? Você nunca mais apareceu, foi só naquele dia...

— Naquela noite. — corrige ele, cuspindo um caroço de cereja e apanhando uma ameixa. — Eu nunca deixei de te observar, como eu disse, sou curioso.

— Eu não entendi, por que está me ajudando agora?

— Porque era mais divertido assim. Eu gostava do Mehmed, mas estava tudo muito repetitivo, sempre matando todos, torturando das mesmas formas. E além do mais eu queria saber agirá com suas verdadeiras habilidades, com todo o seu potencial.

— Eu o cortei antes, o atingi com minha espada e nada funcionava, porque essa adaga é diferente? — Ele ouve a minha fala, distraído enquanto come a suculenta ameixa, deixa escorrer um pouco de seu caldo no queixo, faz um ruído ao chupá-la e mastiga rápido antes de responder.

Olho para a arma e reparo que possui inscrições, percebo um brilho levemente azulado em sua lâmina

— Eu não leria isso em voz alta. Esse brilho você pode ver por ser uma amaldiçoada, você consegue reconhecer objetos amaldiçoados e abençoados. Os verdadeiros, claro, aqui tem muitas falsificações.

— Você está lendo meus pensamentos?

— Ler? Não, meu doce demônio, eu apenas escuto, não posso evitar. Os pensamentos dos malditos são como gritos para mim.

— Eu não sou o seu demônio!

— Não? Tem certeza? Acho que o macaco gigante no chão não concorda com isso.

— Macaco?

— É uma piada, vocês homens e mulheres vão entender isso um dia, eu acho. — Com desdém ele gesticula apontando a tudo ao redor. — Tudo isso, é uma grande piada em que vocês acreditam em alguém que caiu em histórias de um comediante.

Ele parece animado balançando a perna cruzada e retoma:

— Enfim, essa é especial, querida. Foi um presente que dei para Marcus Brutus, ele assassinou o pai e causou o fim de todo um Império. Eu a chamo, carinhosamente, de Sedenta. É um item amaldiçoado poderoso, assim como você e seu corpo, um perfeito cálice de veneno.

Eu fico ruborizada e cruzo meus braços cobrindo minha parte de cima. Viro de lado mantendo ainda a Sedenta em minha mão direita.

— Eu a encabulei. Me desculpe.

Ele se levanta, lambe os dedos e se aproxima de mim. Passa os seus braços por cima de meu ombro e cobre meu dorso ensanguentado com um linho branco, que estranhamente apareceu em suas mãos.

— Quanta gentileza. — digo usando o tecido delicado para me limpar.

— Brutalidade não minha diversão.

Observo a libélula ainda parada no ar, no mesmo lugar, ainda batendo suas asas em movimento circular. Eu me aproximo e fico olhando seu delicado movimento sem entender a razão.

— Isso acontece quando venho aqui. Bonito, não acha?

— Você parou todos a minha volta?

— É claro que não, sou um demônio, não o Pai.

— Mas então... como?

— Eu posso deixar o tempo para nós um pouco mais acelerado. Não são os outros que estão lentos, mas nós dois que estamos rápidos. Uma forma de dar privacidade enquanto conversamos.

Eu uso o linho para me limpar do sangue, minha pele fica grudenta, mas é o suficiente para vestir as roupas que me sobraram.

— Está com pressa?

— Preciso voltar ao castelo. — falo umedecendo o linho na bacia d’água e tentando me limpar adequadamente no rosto pelo menos.

— Eu agradeço a ajuda com a adaga, mas você não disse o que quer, o que veio fazer aqui exatamente?

— Apenas estou formalizando o contrato, minha cara, eu sempre verifico de perto todas minhas almas.

— Suas almas?

— Hum... acho que não se recorda de tudo no dia, mas você entregou sua alma para Vlad e ele a vendeu para mim. Eu lhe concedi poderes, que por um motivo torpe, você optou por aceitá-los somente agora. E finalmente completou o ritual, é isso o que importa.

— Acho que está enganado.

Ele se vira para mim um pouco irritado com minha fala.

— Perdão?

— Vlad não poderia vender a minha alma a você, afinal ela não pertencia a ele.

— Você havia entregue a ele momentos antes. — Ele responde rapidamente.

— Não.

— SIM! Eu estava lá, eu vi!

— Não. Eu disse exatamente que “com este casamento, eu lhe entrego a minha alma”.

— E não é exatamente isso?

— Se estava lá, sabe que o casamento não foi... consumado. E meses depois foi anulado.  — Ele ouve e vira o rosto de lado um tanto desconfiado — Assim, você me entregou poderes, mas minha alma nunca lhe pertenceu.

Furioso ele vira para minha frente, me empurra e segura o meu pescoço com força, me segura sobre a larga viga de madeira que sustenta a tenda.

— ACHA QUE PODE ME ENGANAR ASSIM? Que pode ter poderes sem pagar o devido preço?

— Nã-ão foi e-eu que te enganou — respondo tentando respirar entre seus dedos —, você quem não percebeu que estava contando com algo ainda não garantido.

Uma de minhas mãos segura a Sedenta com força, eu penso em usá-la nele como defesa. Os olhos amarelos movem-se em direção a minha mão armada, e cerra parcialmente as pálpebras em um aviso a mim, eu entendo o recado. Abro minha mão deixando a adaga cair fincada pesadamente no chão e levanto a palma mostrando que não vou reagir.

Ele aproxima sua boca muito rente a minha bochecha, sinto o seu hálito quente, ele rosna mostrando seus dentes pontudos ameaçando devorar a minha carne. Mas muito próximo de minha pele ele para, seus olhos parecem ficar satisfeitos e voltam-se pra mim, ele me fareja e quase sorri. Me solta de uma vez me deixando cair no chão e se afasta rindo.

— Você já tinha notado essa falha na primeira vez que falamos.

— Você não? — digo com a voz saindo ainda esganiçada.

Ele funga, resmunga algo indecifrável e vira-se novamente.

— Engraçado você ter trabalhado tanto tempo com um agiota.

Eu sorrio.

— É, alguém tem que cuidar da papelada.

Ele torce o rosto com minha resposta, balança a cabeça pensativo. Então se vira, estende a mão e a Sedenta sai do chão em que estava fincada e vai direto para a sua mão, zunindo no ar.

— Eu volto depois.

E sua figura desaparece na minha frente em uma neblina esverdeada suave.

Aos meus pés, olho o corpo de Mehmed. Ando a sua volta procurando um elmo que eu possa usar.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!