Mirror escrita por Lua Chan


Capítulo 18
Monstro




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Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro.

— Friedrich Nietzsche

Levei um pequeno infinito para processar o que acabara de acontecer. Lá estava uma das pessoas que eu mais amava, que eu mais admirava em toda a minha vida. Minha inspiração. Ela tinha se transformado num monstro de olhos pálidos e mórbidos. Eu podia ver através deles, era como se Jason estivesse perdido e uma ponta de sua alma procurasse por ajuda.

— Jason... - sussurrei como um especialista que provasse um gole de um vinho antigo - No que você se tornou?

Os peculiares assistiam a nós dois, concentrados demais em cada palavra que dizíamos. Jason nem parecia tão estupefado ao ver apenas uma muda de roupas flutuante, sem cabeça ou membros.

— Em nada inferior a vocês, irmão. - expeliu como uma víbora. Ele notou que eu olhava intensamente para seus olhos. Jason deu uma breve e arrepiante risada - Se perguntando como posso ter esses olhos? Não perca seu tempo.

— Você é um acólito? - Horace rompeu o silêncio que restava na sala - M-Millard nunca mencionou isso para nós.

— E não sou. - respondeu com indiferença - Estas são apenas lentes brancas, mas já que sou da família, devo me tornar um deles. Não acham?

Ele estava cego, de fato. Não sabia como Caul tinha influenciado meu irmão (ou a intensidade dessa influência), mas tinha certeza de que ele fora corrompido. Pus um pé para frente, tomando uma respiração profunda. Ninguém podia me ver, mas senti como se todos o fizessem.

— O que você quer com a minha família, Jason? - repeti a pergunta de srta. Peregrine, bufando de raiva. As asas de Alex tornaram uma melodia quando ele as agitou. Caul parecia estar impaciente, já que no mesmo instante puxou meu irmão para longe.

— Não estamos aqui por sua família patética, garoto! - o irmão da srta. Peregrine rugiu, deixando-me desconfortável - Bom, pelo menos não toda.

— O que quer dizer com isso, seu insolente! - Emma gritou, agitando a labareda nas suas mãos. Abe segurava sua mão, como se seu toque mantesse a chama acesa e disposta.

— Hm... uma menina persistente. - Caul observou, quase que num deboche - Gostei de você. Enfim... eu venho propor uma troca. Quero a garota ukrasti pela paz do orfanato.

— O quê? - ralhou srta. Peregrine, tão apegada à navalha em suas mãos que achei que tivesse se cortado - Acha mesmo que vou abrir mão dos meus peculiares? Eu os amo mais do que já amei você e Myron!

— Que comovente, Alma. - triscou o homem - Mas não vim para ouvir historinhas sobre nossa infância. Já disse que quero a garota e eu vou conseguí-la.

— Você não vai levá-la! - gritei, meus pulmões já explodindo - E Cassie não é um objeto!

— Então assim será, não é? - Caul murmurou, com um tom de insistência - Não se preocupem. Já esperava esse tipo de reação. Bart, faça as honras, amigo.

Não sabíamos para quem Caul teria gritado, mas assim que o fez, Abe se comprimiu. Seus joelhos tocaram o chão com tanta voracidade que ele deveria ter quebrado algum osso. Portman segurou sua barriga e tentou falar algo. Nem era preciso explicar nada, sabia que era um etéreo. Mas... como?

— Abe! - Emma correu para o lado de seu namorado, tão pálida quanto os olhos dos dois homens. Uma sombra negra, repleta de línguas pontiagudas foi projetada no chão, o que só confirmou minhas suspeitas - C-Como vocês.... como um etéreo pôde entrar aqui?!

— Da mesma forma que entramos, minha querida. - Caul sussurrou, sem nenhuma preocupação. Nem parecia que tinha um monstro sedento por almas peculiares bem atrás dele - Tenho um peculiar que fabrica portais. Não é magnífico! Podemos ir a qualquer lugar. A qualquer época.

Um peculiar que cria portais? Em que mundo vivemos mesmo?

— Bem, como eu ia dizendo... - Caul prosseguiu, até Jason estava calmo - Me dê a ukrasti e nunca mais atacaremos esta espelunca que vocês chamam de lar. Se não quiserem, Bart irá mostrar o que acontece com aqueles que não me obedecem.

O etéreo rugiu e deixou seu hálito pútrido rondar pelo local. Abe se ergueu e sussurrou algumas palavras em língua de etéreo, mas a criatura não parecia querer ouvi-lo.

— Eu não sei o que acontecer... - disse ele com o sotaque polonês agravante - Ele é forte demais!

— É claro que é. - Jason falou - Nunca subestime o poder de um etéreo faminto. Bart quase me devorou quando Caul o soltou.

— Jay, não percebe o que está acontecendo? - falei, estremecendo ao notar que usei seu antigo apelido - Céus, ele está te usando!

— Como ousa? - retrucou com a voz rouca - Eu consegui um lar com este homem. Encontrei alguém que é como eu, que não se importa em ser diferente.

— Você tinha a mim. - a sala ficaria em silêncio profundo se não fosse pela presença inoportuna do etéreo. Caul revirou os olhos e estalou os dedos, como se ele mesmo pudesse controlar o monstro. Ao fazê-lo, percebemos que a sombra se aproximou das crianças, que se aninharam umas nas outras, procurando por abrigo. Finalmente, uma voz rasgou o ruído do monstro.

— Pare! - era Cassandra. Todos olharam para ela e seus braços repletos de penas. Ela teria absorvido parcialmente a peculiaridade de Caul (srta. Peregrine me dissera, certa vez, que ele podia se transformar numa ave peregrina, assim como ela, mas não conseguia manipular o tempo). Caul sorriu para a menina e Jason repetiu a ação, deslumbrante.

— Olha só... ela realmente é incrível. Não acha, Jason? - o homem perguntou - Ela poderia ser sua namorada, futuramente.

— Só por cima do meu cadáver invisível! - tentei dar uns passos, mas fui logo detido por Cassie. Ela segurou meus ombros, olhou bem nos meus olhos (que bom que ela podia me ver) e fez algo que me surpreendeu. Ela me beijou. Mesmo na atual circunstância, mesmo sabendo que poderia ser nosso último gesto de afetividade. Mesmo naquele caos.

— Mill, você tem que me deixar ir. - disse ela, segurando o choro e repondo as penas para dentro da pele - Não quero ser responsável por destruir esse lugar. É mais importante do que tudo para eles.

— Srta. Valentine, não posso permitir que faça isso! - Srta. Peregrine ergueu a voz. Antes que pudéssemos falar mais coisas, Jason a puxou pelo braço e a atravessou, junto dele, pela porta. Não sabia que podia fazer isso.

— Não!

— Não tentem nada! - Caul sugeriu, depois de seu assistente  sair do orfanato - Bart ainda está aqui, sei que o garoto pode vê-lo. - ele apontou para Abraham - Nos vemos daqui a nunca mais, Alma.

E então Jack se foi, junto da pessoa que eu mais amava nesse mundo. Cassandra Valentine. Corremos até o jardim, ao notar que o etéreo se fora com eles. Lá fora havia um círculo purpúreo e flutuante, pelo qual os dois homens, Cassie e o etéreo usaram para atravessar. A figura deles se decompôs no ar e o círculo se desfez em milhares de partículas de poeira. O portal havia se destruído, assim como as possibilidades de salvarmos Cassie.

— O QUE FAREMOS? - gritei, entrando em desespero. Queria chutar o que tivesse na minha frente, apesar de não ajudar.

— Nada. - Enoch sussurrou, brincando com um homúnculo que tinha construído há um tempo - Aceite, Millard. Ela se foi para sempre.

— Cale a boca! - vociferei - Você não tem coração e se tiver, ele é de pedra! Não sabe o que é perder alguém, como é ter um maldito buraco negro dentro do peito!

— Eu vivo com um maldito buraco negro dentro do peito, seu inútil! - rugiu - Eu perdi a pessoa que eu mais amava por causa de um humano idiota!

— Calem-se vocês dois! - Alma se exaltou e nós, por incrível que pareça, obedecemos - Nós iremos resgatar a srta. Valentine.

— Mas como? - Hugh questionou, deixando uma abelha sair de sua boca - Eles sumiram num portal.

— Talvez eu possa ajudar. -Pierre se pronunciou. Só tinha notado a presença dele e de seu sotaque francês agora.

— Pode mesmo?

— Oui. - falou - Posso nos teleportar para onde mademoiselle Cassie foi parar. Só preciso saber onde fica.

— Essa é uma ótima ideia, Pierre. De verdade. - Emma exclamou - Mas não sabemos para onde eles foram.

— Esse não será um problema. - srta. Peregrine estava pensativa, mas um pouco segura - Sei exatamente onde Caul está nesse momento e tenho uma fotografia do lugar.

— Certo. Qual será nosso destino?

A resposta soou misteriosa e devastadora. Futuramente eu iria me arrepender de ter perguntado.

— Estejam preparados - advertiu - Vamos para o Recanto.


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