"Bakbadoo" escrita por Astus Iago


Capítulo 1
"Bakbadoo"




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Desconhecia a existência de um "bakbadoo" até este preciso momento. Vivi dias e dias, noites e noites não reconhecendo tal termo, sem noção de sua definição ou possíveis sinónimos. Eternamente o não conhecia, infinitamente o não pensava. Nasci sem o saber mas felizmente morrerei conhecendo a verdade.

Investiguei o assunto dias a fio desde que encontrei uma menção ao termo nos documentos pessoais do meu falecido tio. O velho arqueólogo estudara ao pormenor as mais diversas culturas e civilizações do mundo perdido. Decorara cifras e simbolismos de outros tempos. Porém, nunca conseguira uma pista que fosse relativa ao significado da palavra "bakbadoo". Pertencente a um qualquer dialeto morto ou simplesmente esquecido, talvez adotada por alguma ceita exclusiva, fora descoberta pela primeira vez numa inscrição tailandesa. Redigida em runas potencialmente indecifráveis, captou a atenção do velho erudito por ser a única palavra da inscrição escrita em caracteres do alfabeto árabe. "Bakbadoo".

Intrigado por esta história, e após consultar muitos dos mais conceituados colegas do falecido, decidi abraçar a demanda que o meu parente não fora capaz de terminar em vida. Rumei aos terrenos tailandeses, interagi com testemunhas e investiguei pessoalmente o local descrito nos papéis que herdei. Confirmei as coordenadas geográficas mas a inscrição havia desaparecido. Verifiquei as fotos e os desenhos, os artigos e as legendas de cada pequeno esquema ou diagrama. O local era o mesmo, só não havia inscrição alguma. Deparei-me com uma enorme cratera, com um raio de aproximadamente cinco metros. No seu centro chamuscado, onde repousaria uma rocha decorada com os já referidos caracteres alienígenas, estava um pequeno pendente: uma pedra presa a um largo fio que se podia usar como colar em torno do pescoço. Na pedra, um misterioso símbolo: um triângulo invertido com um círculo no seu interior. Não demorei a deduzir a possibilidade de ter ocorrido um roubo, tendo o criminoso responsável esquecido o pendente no preciso local onde perpetuou o seu crime. Era algo digno de averiguar. A única evidência que tinha em mãos: o estranho pendente.

Pesquisei com base nos ficheiros conservados do meu tio e em alguns artigos que requisitei de determinadas bibliotecas. Os resultados de toda a pesquisa não foram propriamente satisfatórios. Acabei por recolher um restrito conjunto de nomes, indivíduos dignos de uma breve entrevista. Não irei referir qualquer nome, pois tal comprometeria a privacidade de todos os envolvidos nas minhas investigações, mas um tal professor de simbologia conferiu-me valiosas informações. Chamou-me a atenção para o triângulo equilátero e os seus três lados de igual comprimento como um símbolo de perfeição e equilíbrio. Confrontou-me também com a possibilidade do círculo simbolizar o infinito e o cíclico, o tudo e o completo. Contudo, a inversão do triângulo poderia levar-nos a pensar numa semelhante inversão do seu significado, da perfeição para o imperfeito e o caótico, para o desequilíbrio de todas as coisas. Agradeci a sua sabedoria e prossegui as minhas buscas, agora ainda mais motivado para desvendar este mistério.

Muitas das minhas entrevistas revelaram-se infrutíferas mas uma delas, a um homem responsável pela guarida de determinados documentos históricos, de propriedade governamental, deu-me novas asas para voar ainda mais alto. Ao que parece, o símbolo do pendente já protagonizou aparições nas mais variadas épocas da História. Fora encontrado em certas caixas que transportavam pólvora, a mesma pólvora utilizada em 1605 pelos conspiradores ingleses no quinto dia de novembro. Foi detetado, segundo certos testemunhos, nas caixas que continham o equipamento científico transportado para os campos de concentração durante a Segunda Grande Guerra. Se isto era verdade, algo de grande se estava a passar. Não era um mero bando de bandidos a atuar. Deveria ser toda uma organização, um grupo metódico de conspiradores que trabalhavam das sombras, movendo o mundo a seu bel-prazer. Isto era o começo de algo grande, eu sentia-o.

Prossegui as buscas, com incidência nos inúmeros factos históricos que me foram contados. Investiguei museus e outros serviços de preservação e conservação de relíquias da Segunda Guerra. Não havia qualquer caixa ou fragmento que tivesse sido guardado. Também não encontrei quaisquer dados relativos à origem do material científico. Era como se nunca tivesse existido. Voltei aos meus informadores. Talvez me tenham sido dadas informações erradas por um eventual lapso da sua parte. Mas os informadores haviam desaparecido. Perguntei sobre eles aos respetivos colegas mas ninguém aparentava conhecer os desaparecidos. O que se estava a passar? Terei sido descoberto? Terão os meus oponentes silenciado os informadores numa tentativa de me travar? Umas seis pessoas desapareceram sem deixar rasto. Suas vidas foram como que apagadas. Deixaram de haver registos ou certidões relativas a elas. O mundo mudara de um dia para o outro.

O caso tornara-se sério e com tal seriedade veio a paranóia. Fechei a minha casa ao resto da civilização. Optei por deixar de parte o contacto com a restante humanidade passando as seguintes semanas a investigar a partir da minha habitação. Só mas extremamente incentivado a solucionar isto de uma vez por todas. Nos primeiros dias, muitos amigos tentaram contactar-me, não obtendo resposta. Passado mais de um mês, e ainda sem qualquer informação nova, fui obrigado a abrir as portas aos enviados do hospital psiquiátrico local. Observaram o meu estado lastimável com certa repugnância, visto que com a obsessão veio uma falta de preocupação com a minha higiene pessoal. Quando declararam que me queriam levar para internamento, enervei-me e reagi com violência. Acabei por ser levado à força.

Só após um ano de terapias e tratamentos ridículos pude retomar a minha vida. Na verdade, a minha obsessão era agora a minha vida. Toda esta experiência me ajudou a compreender isso. Qual não foi o meu espanto quando, ao regressar a casa, notei que todos os papéis do meu tio haviam desaparecido. Ordenei que revistassem o edifício mas, como esperava, não havia sequer um sinal, visível ou invisível, de alguém ter entrado em minha casa. A única pista que se mantinha comigo era o pendente, que havia permanecido no meu pescoço todo este tempo.

Tirei uns dias de folga para descansar um pouco deste assunto. Claramente que nenhum passeio conseguiria desanuviar as minhas preocupações. O meu comportamento paranóico agravara-se durante a estadia no hospital. Cada dia acordava temendo ser baleado e cada noite adormecia temendo ter ingerido algum tipo de comida envenenada. O recente arrombamento que a minha casa sofreu apenas resultara num agravamento da minha condição neurótica. Só me fizera pensar no quão poderosos são os meus inimigos, no quão extensa e complexa é a sua rede de influências. Na tarde de um belo dia de primavera, quando passeava em plena rua, no meio de uma considerável multidão de transeuntes, senti uma mão chegar-me ao pescoço e arrancar-me o colar. Corri o mais rápido que consegui atrás do ladrão mas, quando o cerquei num beco, uma bala penetrou-lhe o cérebro, precisamente entre os olhos. Não consegui ver o atirador mas consegui reaver o pendente e tive a oportunidade de revistar o corpo antes de chamar a polícia. No bolso interior do casaco do cadáver estava um papel, um simples papel com um local de entrega escrito, o local onde o pendente roubado deveria ter sido entregue. Sem pensar, corri em busca desse ponto de encontro.

Não havia tempo para pensar, nem sequer nos perigos. O meu coração bombeava a todo o vapor, sangue quente, fogoso e determinado. Nada me impediria de resolver isto. Desvendaria pessoalmente toda esta conspiração, entregaria pessoalmente os conspiradores às autoridades responsáveis e, com isto, recuperaria toda a dignidade que me fora retirada ao ser classificado de "louco". O meu rosto ficaria famoso, apareceria em todos os noticiários do planeta. Tudo isto é real e esteve a acontecer mesmo por baixo dos nossos narizes durante toda a História. Todos conhecerão a verdade graças a mim. Todos me deverão a sua segurança, a sua privacidade e, ultimamente, o seu futuro. Serei condecorado. Serei certamente um herói nacional.

Cheguei a uma antiga basílica, o local marcado, conduzido pela minha fulgurante ambição. Entrei, estava vazia. Todavia, atrás de um altar, um alçapão aberto conduzia às profundezas do submundo. Uma força sobrenatural convidava-me a entrar, eu sentia essa força. Não sentia medo, não estava absolutamente nada assustado ou preocupado com o que estaria ali em baixo. Já estava preparado para tudo. Já vira de tudo. Nenhum Homem me conseguiria impedir de cumprir esta missão que adotei, a que dediquei todos os meus restantes suspiros. Resoluto, desci as escadas de cimento até um escuro corredor iluminado por umas poucas tochas nas duas paredes paralelas. E, no fim do corredor, uma divisão de grande área com um novo altar, mais grandioso e imponente. Uma enorme estatueta de uma criatura antropomórfica elevava-se sobre o pedestal, mais enriquecido e lustroso que o altar em honra do nosso deus. Sua boca não existia, tal como o nariz, e seus olhos ocupavam quase toda a face, olhos sem cor, sem íris ou pupilas, completamente negros. O corpo nu da criatura representada parecia seguir o modelo anatómico humano porém, onde estaria posicionado o umbigo, nosso símbolo do nascimento como mamíferos, tomava forma um longo tentáculo enrolado sobre si próprio. Sua pele era verde, um verde forte e estridente. Em redor da estátua, dezenas de cultistas de túnica negra cantavam em coro "bakbadoo, bakbadoo, erg sipla bakbadoo". Repetidas vezes, várias vezes sem conta. Contemplei todo o bizarro espetáculo em silêncio até cada um deles retirar das suas vestes a cabeça decepada de um galo. Agitavam-na bem alto, de um lado para o outro, de um lado para o outro. E no clímax, na apoteose do ritual, um indivíduo de túnicas escarlate aproximou-se da escultura e retirou o seu capuz perante todos os presentes, revelando a pele cinzenta de uma mesma cara alienígena de grandes olhos sombrios.

"Bakbadoo, bakbadoo, erg sipla bakbadoo!"

A minha mente apagou-se. O meu raciocínio quebrou. O meu passado perdeu efeito e o meu conceito de futuro perdeu significado. As cores de cada objeto começaram a deambular perante mim. Os sons passaram a esvoaçar incontroláveis em redor dos meus ouvidos. Quem sou eu? Já não interessa a resposta a essa e a todas as outras perguntas. Nada interessa, para dizer a verdade, a verdade cósmica e absoluta, dogma derradeiro da civilização. Apetece-me devorar, apetece-me consumir tudo o que puder. Apetece-me arrancar os cabelos e chorar os infortúnios que não tenho. Quero vomitar e desmaiar, quero extinguir-me e voltar a existir num ciclo interminável. Perdi o controlo do meu corpo, dei asas à minha mente. Ofereci o meu consciente às garras da inconsciência e da irracionalidade. A razão foi-se. A verdade perdeu importância. O mundo deixou de fazer sentido. A vida perdeu relevância. Sinto-me leve, ilimitado. Todas as barreiras desapareceram. Sinto-me livre, corrupto, degenerado. Tomou-me a loucura. Caio de joelhos. Jorram lágrimas atrás de lágrimas. Já não sei quem sou. Não sei quem sou...

Lentamente, sorrindo como nunca antes, olhos bem abertos de curiosidade e excitação, com uma visível ereção, caminhei por entre os cultistas e coloquei-me de frente para o grande sacerdote, detentor de todo o conhecimento. Este libertou-se da sua indumentária vermelha, exibindo o seu corpo extraterrestre perante todos, igual ao figurado na estátua. O seu tentáculo, como que possuindo vida própria, moveu-se, agitou-se ao som das vozes. "Bakbadoo, bakbadoo, erg sipla bakbadoo". Só quando penetrou nos confins do meu esófago através da minha boca humana miserável e segregou algo irreconhecível para o meu interior é que conheci a verdadeira êxtase. Quando me libertou, senti pequenas patadas alargando-me as paredes do estômago, choros agudos de recém-nascido chegando-me ao interior das orelhas. Há algo novo dentro de mim e está vivo. Uma nova vida, feto pertencente a uma raça superior. Usar-me-á como hospedeiro e, quando estiver pronto, sairá cá para fora, para o mundo dos vivos, nem que tenha de me rasgar a pele e os órgãos para o fazer. O que importa é ensinar o mundo, mostrar-lhes esta luz que me ilumina de pacificidade e harmonia. A minha mente abriu-se e esqueci-me de quem sou para prestar culto a algo novo, algo que nenhum de nós compreende. E nunca compreenderá...

"Bakbadoo, bakbadoo, erg sipla bakbadoo!"


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