O Relojoeiro escrita por Astus Iago


Capítulo 1
O Relojoeiro




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Havia um relojoeiro numa certa relojoaria que só vendia e consertava os melhores relógios. Para ele, cada dia demorava um único quarto de hora e cada ano passava num instante. Regia o seu tempo por um enorme relógio, seu favorito, que pendia na parede atrás do balcão. Tic tac tic tac.

Eram três da tarde certinhas quando entrou uma rapariguinha, cliente habitual que aparecia a cada dia, para ver os relógios e gastar algum dinheiro. Uma rapariga jovem que tinha sido a única cliente da velha loja, do velho relojoeiro, nesta última semana. A sua entrada e o seu amável "bom dia" bastavam para fazer o pobre homem sorrir.

A rapariga demorava precisamente um quarto de hora. Desperdiçava quinze minutos seus naquele minúsculo cubículo recheado de engrenagens e cucos. O relojoeiro sabia disso pois cronometrava cada visita numa estranha porém inocente obsessão. A jovem comprava sempre o mesmo: dava uma notinha verde por um par específico de peças para um relógio que funcionava mal. Era para o relógio do seu avô, dizia ela, um velhinho cuja única alegria era o enorme relógio que lhe marcava o tempo. O relógio não lhe passava de uma certa hora, explicava. A rapariga amava o seu avô.

E ele amava-a a ela. Sempre que a via, algo floria no seu coração. Brotava uma rosa dos seus sentimentos, uma camélia branca dos seus sentidos. O seu sorriso aquecia-o, acalmava-o, tranquilizava-o. A única coisa que podia fazer era tentar devolver tamanho calor através de um abraço ou de um beijo, essa calorosa chama a que chamamos amor. Assim o fazia.

Assim sempre fez o velho relojoeiro à sua neta até ao dia do acidente. Às três e um quarto da tarde, quando a rapariga terminou a sua pontual visita diária à loja do avozinho, deu-se a tragédia. Todos os dias ela vinha às três. Todos os dias ela saía quinze minutos depois. Mas aquele dia foi diferente. Naquele dia, não foi a doce fragrância da primavera que lhe beijou a fronte ao sair da loja, foi a parte da frente de um carro. Não foram as vozes amigáveis dos vizinhos que a saudaram, foram os gritos abafados pelo embate. E o mundo mudou aí. Tudo ficou um pouco mais diferente. Todavia, o velhote, o pobre relojoeiro, não desejava essa diferença.

Dirigiu-se ao relógio atrás do balcão, o seu preferido, e puxou o ponteiro grande para trás. Novamente três horas. E a rapariga entrava novamente, sempre sorridente, sempre alegre, sempre feliz. Às três e um quarto ela saía mas o avô não aguentava. Levava novamente o ponteiro às três e ela voltava a entrar. E assim permanecia no seu ciclo pessoal. Sempre que o momento fatídico chegasse, sempre que a neta terminasse a sua visita, voltaria o tempo quinze minutos para trás e a visita recomeçava. Assim nunca perderia aquele sorriso. Poderia vê-lo uma e outra vez, eternamente, com lágrimas a escorrer-lhe pela face. Aquele relógio nunca mais passaria das três e um quarto. Nada mudaria. Nada mais mudaria. Sempre que entrava, a neta procurava as peças que, pensava ela, fariam o relógio continuar. Mas o relógio não estava estragado, nunca esteve. A única coisa que estava estragada era o coração do seu avô.


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