Ensaio sobre a morte escrita por Arwen


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

É a primeira vez que posto algo original por aqui, se você já é minha leitora, por favor, me deixe saber o que achou.



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Há algo peculiar sobre a morte.

Não. Não é sobre a morte. 

É sobre o processo de morrer. Esse é o tipo de coisa que não se pode ler nos livros, não mostram a você em um filme canastrão de Hollywood, e principalmente, não te contam como é. Simplesmente você precisa passar por isso para entender, não há como ter a experiência se é jovem demais, mas tudo começa bem antes da morte em si chegar. 

Tudo começa com uma ligação para a ambulância, ou para a polícia, a menos que você já esteja em um hospital. Mas geralmente há uma ligação, há correria e desespero, e pode acreditar em mim que aí começa uma jornada. Se você sentir a necessidade de uma comparação, é como se aqueles tons de chamada fossem o gongo da partida de uma maratona e o que começa a partir daí foge totalmente do seu controle. Primeiro os parentes e amigos mais próximos são informados da situação; todos pedem detalhes e que os mantenham informados de qualquer novidade. Bombardeiam perguntas e promessas de orações por aquele que está para partir; no fundo creio que todos saibam que o fim é irremediável nesse ponto, mas sentem a necessidade de conforto antes de uma confirmação sólida e irrefutável. 

Depois, você tenta assimilar a ideia antes que ela realmente ocorra. Pensa e reafirma que a morte não é ruim, e que você mesma deseja morrer porque é uma continuação da vida. É ir além, evoluir. E até aí você consegue. 

Daí vem outro evento interessante... Durante a madrugada você, e quem quer que esteja com você, limpam toda a casa. A louça será lavada, o chão ficará completamente limpo. Tudo isso porque espera-se ter visitas logo, todos que querem saber o que está acontecendo virão e sua casa precisa estar arrumada; pra mim é uma desculpa para se manter ocupado, e algo ainda mais complexo: é como se estivessem organizando a si mesmos durante tal processo, tirando algumas coisas, reposicionando outras, polindo sentimentos e discutindo consigo mesmos o que é ou não  aceitável em tal ocasião. Outras pessoas tomariam este processo como uma simples limpeza física, mas trata-se, acima de tudo, de uma reorganização emocional... 

Uma tenra, porém necessária reorganização. E é durante essa reorganização que você passa a pensar no processo da dor, e é também quando começa a senti-la. Há diferentes tipos de dores: a física, a de perder um amigo, de um término, de perder alguém a quem ama muito... São dores diferentes, algumas tirão seu juízo e te fazem querer morrer, outras doem de forma tão aguda que é impossível pensar em outra coisa a não ser ela. E, em minha opinião, esse tipo de dor vem com a perda de alguém que você ama. É aí que se chega a uma pergunta importante: Você teria feito diferente? Se soubesse que aquele era seu último dia com aquela pessoa, com sua mãe, seus irmãos, sua namorada... Você teria feito diferente? Teria aproveitado mais? Teria dito “eu te amo”? 

Eu sei o que eu diria. Naquele dia, eu descobri uma essência que não sabia possuir. Eu diria “eu te amo, e eu não queria ter que dizer adeus jamais. Queria que houvesse mais tempo, que houvesse saúde e mais sorrisos... Queria que visse as realizações com que tanto sonhou. E posso estar longe de ser perfeita, e talvez eu não te desse orgulho algum por ser como sou, mas eu te amo. Te amo e sempre vou amar.” 

Mas essa ainda não é a cereja do bolo. A cereja desse bolo de tristeza vem quando um homem, que conviveu com a mesma mulher por mais de cinquenta anos, pergunta se suas economias darão à sua amada o conforto que ela precisa e quando lhe respondem que não será preciso, que ela já terá tudo, ele se senta á mesa de uma cozinha mal iluminada por uma luz amarelada e chora. Chora copiosamente e diz: “Não é pra dar as bonequinhas dela”.

Pode deixar vovô, não vou deixar ninguém fazer isso.

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Minha avózinha faleceu dia 23/10/2015, começou com o Alzheimer que progrediu de forma silenciosa e depois de algum tempo (presumo que foram anos e os médicos não haviam identificado a doença para retardar seus efeitos) ela se esqueceu de quase tudo da sua antiga vida, criou memórias falsas por um tempo, não tinha muita noção de tempo e espaço... Até que inevitavelmente se esqueceu de nós.

O alzheimer faz da pessoa um prisioneiro da própria mente, porque durante muito tempo o corpo permanece forte enquanto as memórias se perdem. Mas a coisa toda é que depois de um tempo parece que a própria vitalidade definha; eles se esquecem de como falar ou comer, só bebem água se alguém lhes der na boca.

O interessante foi assistir pessoas próximas se afastarem dela,  alegando que não conseguiam ver a pessoa boa e querida que ela sempre foi naquele estado. Eu não fiz isso. Não quero dizer que sou alguém melhor ou que fiz algum sacrifício, mas, eu ainda me lembrava dela mesmo que ela não se lembrasse de mim, então porque eu me afastaria de uma das pessoas que eu mais amo no mundo?

Foram meses vagando sem falar nada, ela apenas ria quando nos olhava, e jamais vou esquecer seu olhar perdido. É tão doloroso olhar para alguém que você ama e perceber que o olhar dela já não foca em nada, porque a mente já não consegue prestar atenção ao seu redor!

Quatro dias com uma sonda nasal. Três dias na UTI. Nesse ponto eu já não podia mais desejar que ela vivesse por muito tempo, o médico já havia dito que se ela retornasse para casa seria para permanecer na cama, e eu simplesmente não podia desejar isso apenas para não sofrer com a partida dela.

Ela faleceu três dias depois de eu escrever esse texto.

Ela foi a avó mais carinhosa e atenciosa do mundo, e, quando eu comecei o curso de Biologia e precisava sair da cidade todos os dias no ônibus dos estudantes, meu avô e ela se sentavam do lado de fora só para me ver passar. Mas ela nunca pode compreender que passei para a faculdade de direito, que mudei todos os meus planos para ficar perto dela, não vai poder me ver me tornar uma advogada, nunca vai ler algo que escrevi... Tudo porque a doença já estava muito avançada.

Meu avô faleceu sete meses depois. Não aguentou ficar sem a esposa com quem dividiu a vida.

Então, se você ler isso (não importa quem você seja), dê valor a quem você ama hoje, fale o que há para ser dito neste instante, não tenha dúvidas, não hesite. O tempo é curto e precioso, e nunca parece ser o suficiente. 

Descobri isso da pior maneira possível.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler.



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