Com amor, Tom escrita por themuggleriddle


Capítulo 1
Com amor, tom


Notas iniciais do capítulo

Uma ideia que surgiu conversando com a Sara (schwanendreher, no tumblr).



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Havia um cômodo na Mansão Malfoy no qual ninguém entrava. Scorpius sabia que se tratava do escritório de seu bisavô, apesar de não saber mais nada sobre o que poderia haver ali dentro para ser guardado com tanto afinco: Lucius entrava ali apenas em raras ocasiões, quando precisava pegar algum documento antigo, Draco dizia ter visto o interior do quarto apenas duas vezes na vida e Scorpius, conhecia apenas as pesadas cortinas de veludo, pois sempre as olhava do lado de fora da casa.

Quando tinha onze anos, o garoto perguntara ao pai sobre os outros Malfoys que haviam estado em Hogwarts. Draco prontamente falou de seus pais, sobre como Narcissa era ótima com feitiços, uma das favoritas do Prof. Flitwick, e como Lucius havia começado a construir a sua carreira política ainda dentro da escola. Ele falou sobre Septimus Malfoy, o avô de Lucius, que havia lecionado História da Magia por alguns meses, ainda jovem, quando o colégio precisou de um professor substituto. Ele falou até mesmo de Amis Malfoy, um dos primeiros bruxos da família a entrar em Hogwarts, quando esta ainda era supervisionada pelos fundadores.

Mas ele não falou nada sobre seu bisavô. Abraxas Malfoy era um assunto proibido, apesar de ninguém realmente saber o por quê ou quando ele se tornara persona non grata naquela casa. Não... Ele não era completamente esquecido: volte meia alguém comentava sobre o papel do bruxo em tirar do poder o primeiro Ministro da Magia nascido trouxa ou sobre os pavões albinos, cujo primeiro par fora comprado por ele. Mas era isso, ninguém se aprofundava em Abraxas.

Portanto, nas férias antes do seu sétimo ano, Scorpius Malfoy não pôde deixar de sorrir de orelha a orelha quando se viu sozinho na Mansão Malfoy. Seu pai havia sido chamado ao Ministério para resolver algum assunto do trabalho e seus avós estavam na terceira lua de mel, em algum lugar na Dinamarca. Ele tinha a casa inteira para si e uma varinha a qual agora podia usar.

Não demorou nem cinco minutos para o rapaz conseguir destrancar a porta: Alohomora não funcionara, mas Abertus, sim. Abençoado fosse Albus e seu enorme conhecimento de feitiços propícios para se esgueirar de um lado para o outro.

O escritório estava escuro, mas, assim que Scorpius abriu as cortinas, surpreendeu-se com o o local: tudo era decorado com móveis escuros, como o resto da mansão, mas aqui e ali haviam detalhes que diferenciava aquele local. Em cima da lareira havia uma garrafa de vidro com um navio de madeira dentro, a luminária em cima da escrivaninha era cheia de linhas retorcidas e cores diferentes, os quadros em uma das paredes mostravam o mar e navios que não se mexiam... Era o quarto de um Malfoy, sem dúvida, mas era diferente.

Acima da lareira havia também a moldura de um quadro que, no momento, encontrava-se vazio. Ele sabia que o quadro de seu bisavô alternava entre aquele retrato, a moldura que ficava na sala de jantar (onde ele raramente aparecia) e outra que decorava as paredes de um dos halls do Ministério. Scorpius já o havia visto algumas vezes: cabelos loiros bem penteados, barba e bigode também loiros, olhos claros e um sorriso insistente. Ele gostava de fazer comentários inapropriados, dizia Lucius, mas na maior parte do tempo, era bem calado.

Respirando fundo e tentando conter o próprio sorriso, Scorpius aproximou-se da estante de livros. Esticando o braço, ele passou a deslizar as pontas dos dedos pelas espinhas dos volumes, lendo o título de cada um e arregalando os olhos ao notar que não havia livros de feitiços ou de genealogia, como o Diretório Puro-Sangue, que seu avô gostava tanto de dizer que possuía a primeira edição. No lugar dos conhecidos volumes que habitavam o restante da Mansão Malfoy, Scorpius encontrou coisas como 20 Mil Léguas Submarinas, O Lobo do Mar, Contos de Imaginação e Mistério, O Retrato de Dorian Gray, O Paraíso Perdido, Frankenstein, Drácula, Jane Eyre, O Hobbit, Peter Pan e Wendy, O Grande Gatsby, Poemas Completos de Percy Shelley, etc... Autores como Lord Byron, Austen, Fitzgerald, Tolkien, Akhmatova, Iessiênin, Poe, Wilde, Maiakovsky se apresentavam ao rapaz em cada um daqueles livros.

Nomes trouxas e livros onde a magia, se existisse, era algo criado a partir do entendimento de trouxas sobre o assunto. Livros com histórias fantasiosas de dragões, fadas, meninos que não envelheciam e monstros criados por cientistas. Livros com histórias trágicas de moças lidando com homens que as queriam como esposas e ricaços sem um pingo de amor pela vida. Poemas sobre amores, desilusões, revoluções e morte. Era tanta coisa interessante, mas ao mesmo tempo tanta coisa que Scorpius nunca imaginou que encontraria dentro daquela mansão a não ser em seu próprio quarto, onde os livros d’O Senhor dos Anéis estavam enfileirados ao lado de Guerra dos Tronos, dividindo a estante com uma coleção desfalcada de Desventuras em Série e outras coisas.

O garoto puxou um dos livros, uma coisinha pequena com um nome esquisito na espinha, e o abriu para encontrar poemas. Eram versos fortes e delicados ao mesmo tempo. O poeta descrevia sua revolta com aqueles que se acomodavam durante uma guerra e, na página seguinte, lamentava um amor não correspondido para, logo em seguida, apresentar um luto terrível por um amigo morto. Era incrível e Scorpius queria se deliciar com todas as palavras contidas naquele livrinho para ver se conseguia, de alguma forma, sentir o que seu bisavô sentira quando ainda o lia.

Depois de pelo menos uma hora desbravando as prateleiras de livros e deixando separados aqueles que queria levar para o seu quarto e ler, Malfoy passou para a escrivaninha. Era um móvel grande feito de madeira escura, com detalhes esculpidos por toda a sua borda e em suas pernas. A primeira gaveta continha papéis, pergaminhos, penas e tintas, além de uma agenda de couro preta. A segunda, uma caixa de charutos, inúmeras caixinhas de cigarros, duas piteiras de marfim ricamente esculpidas, três isqueiros (cada um com um desenho diferente) e dois cachimbos. A terceira escondia uma cópia antiga de Animais Fantásticos e Onde Habitam que, para a surpresa de Scorpius, tinha a primeira página assinada pelo magizoologista Newt Scamander, além de uma miniatura estática de um dragão e uma pasta cheia do que pareciam ser documentos antigos. Mas, abaixo da pasta, a madeira do tampo da gaveta parecia diferente, como se houvesse um relevo diferente ali.

Malfoy engatou dois dedos no relevo que encontrara na madeira e puxou-a, sorrindo ainda mais ao ver que se tratava de um fundo falso. Aumentado com um feitiço, o compartimento escondido continha duas caixas de madeira as quais Scorpius retirou dali com muito cuidado, antes de se sentar no chão e colocá-las na sua frente.

Ainda sentindo aquela excitação quase infantil crescendo em seu peito, o garoto abriu a primeira caixa, deparando-se com uma infinidade de papéis e envelopes. Com cuidado, ele puxou um deles, lendo o endereço da Mansão Malfoy e então o abrindo.

A caligrafia era impecável, sem nenhum borrão na tinta preta na qual a carta havia sido escrita. A pessoa que havia escrito aquilo gostava de falar, pois havia três folhas descrevendo uma cidade no sul da França, falando sobre as cores com o qual o céu era pintado durante o fim da tarde, o gosto do vinho que o remetente havia tomado, etc... Em quase todas as sessões da carta, a pessoa falava sobre como Abraxas Malfoy deveria estar ali, fosse para reclamar da comida, para dar dinheiro ao músico de rua ou apenas para ouvi-lo falar incansavelmente sobre magia. Ao final do texto, o que restava era um ‘Com carinho, Tom’.

Scorpius não sabia exatamente o que fez com que ele ficasse tão comovido com aquela carta. Talvez fosse a necessidade do remetente, o tal Tom, de descrever tudo de sua viagem ao seu bisavô ou talvez fosse a forma como ele assinara a carta.

Com carinho, Tom.

Ele puxou outra carta. Mais descrições de lugares, mais desejos de que Abraxas estivesse junto, mais uma assinatura carinhosa. A terceira repetia o padrão das duas primeiras, mas agora havia muito mais sentimento na escrita: Tom falava sobre como estava sentindo falta de ter o amigo por perto, como queria ter alguém com quem conversar; ele relembrava os tempos de Hogwarts e citava poemas. Dessa vez, o carinho da assinatura tornou-se ‘Com amor, Tom’, em uma letra um pouco tremida.

Carta atrás de carta o discurso do remetente demonstrava o quão íntimos ele e Abraxas Malfoy eram. Eles haviam sido colegas de Hogwarts e acabaram por se afastar depois de se formarem, mas sem nunca deixar de se comunicarem por cartas, as quais datavam desde 1945 até 1974. Todas assinadas com carinho ou com amor. Algumas descrevendo coisas triviais como um café à beira do Rio Reno, outras falando sobre pesquisas de antiguidades (Tom era muito interessado no diadema perdido de Rowena Ravenclaw), alguns poucos sobre supremacia puro-sangue e, em uma quantidade um tanto surpreendente, várias descrevendo coisas um tanto íntimas demais: a saudades que o remetente sentia de alguns beijos, algum sonho um tanto erótico, alguma memória de encontros às escondidas no apartamento de Tom...

Scorpius não podia deixar de sentir o rosto esquentar enquanto lia sobre intimidades de seu bisavô com outro homem, mas, ao mesmo tempo, não conseguia parar de ler. Não por ser algo excitante, mas por estar sentindo um misto de felicidade e alívio enquanto lia cada relato do carinho e amor trocado entre aqueles dois homens: se estava fazendo a leitura correta de tudo aquilo, Tom sentia por Abraxas a mesma coisa que ele, Scorpius Malfoy, sentia por Albus. A amizade de Hogwarts era a mesma, a cumplicidade e a confiança, o carinho, o desejo e o amor. Mas, diferente do garoto, aqueles dois jovens que cresceram na década de 30 e 40 pareciam ter tomado coragem de assumir o que sentiam um pelo outro.

Malfoy se lembrava do amigo a cada carta lida. Lembrava-se de como ele e Potter podiam passar horas juntos, jogados na cama conversando e brincando; como eles escreviam um para o outro nas férias, comentando sobre momentos que gostariam de compartilhar um com o outro. Lembrava-se dos abraços que às vezes demoravam um pouco a mais do que esperava ou da forma como o olhar de Albus brilhava quando falava que preferia passar o final de semana estudando com ele do que indo para Hogsmead. Eram coisas pequenas que faziam o coração de Scorpius acelerar e seus lábios se repuxarem em um sorriso: uma palavra mais carinhosa, um olhar diferente, um segurar de mãos enquanto liam ou uma brincadeira que acabava com os dois ofegantes de tanto rir. Agora ele se perguntava se foi assim que Tom e Abraxas começaram a reconhecer que o que sentiam um pelo outro ultrapassava a amizade.

Ainda com isso em mente e uma animação descomunal em seu peito, Malfoy abriu a segunda caixa. Aquela continha fotos: havia fotografias de uma turma de Hogwarts, imagens de seus bisavós juntos na praia, de seu avô ainda bebê... Mas o que mais havia ali dentro eram fotos de um jovem de cabelos escuros, olhos claros e um sorriso quase enigmático. Às vezes ele aparecia sozinho, parecendo um tanto misterioso em fotos estáticas ou móveis, outras estava acompanhado de Abraxas: sorrindo, abraçados, rindo enquanto seguravam copos de champanhe, tentando evitar de sorrir enquanto aparecia sem camisa, encarando a câmera com um cigarro entre os dedos... Aquilo era uma mina de ouro e Scorpius estava indignado que nunca havia sequer ouvido falar sobre aquele lado de seu bisavô.

No fundo da segunda caixa, enfiada debaixo de vários negativos, havia mais duas cartas perdidas. Sorrindo mais ainda com a perspectiva de ouvir mais sobre o Abraxas Malfoy, Scorpius apanhou um envelope e o abriu, mas, dessa vez, o que sentiu foi uma surpresa grande demais para sequer saber como descrevê-la:

“Ouvi falar que está doente. Estarei aí amanhã. Não ouse morrer antes disso.

 

— Lord Voldemort

   12 de Maio, 1980.”

 

A caligrafia era a mesma. O jeito como ele fazia os ‘Ts’ e os ‘Rs’ eram iguais. Não havia dúvidas: o homem que assinava as cartas com amor e que posava com aquele sorriso provocador era ninguém menos do que Lord Voldemort. Ele e Tom eram a mesma pessoa. Abraxas Malfoy era mais do que um seguidor do Lorde das Trevas. Eles haviam sido amigos, cumplices e amantes... E agora Scorpius Malfoy não sabia como lidar com aquela informação.

Os olhos claros de Tom pareciam encará-lo através de cada fotografia espalhada pelo chão. A voz dele (ou pelo menos o que Malfoy imaginara da voz dele) parecia ecoar de cada letra escrita em tinta preta naquelas cartas. Como era possível que aquele homem que parecia amar seu bisavô pudesse ser o mesmo homem que matara tantas pessoas e quase acabara com o mundo bruxo? Como alguém capaz de amar do jeito que aquelas cartas explicitavam podia também ser capaz de espalhar tanto ódio?

O rapaz sentiu um nó se formar em sua garganta e os olhos arderem. Parte de si doía pela decepção que acabara de sofrer enquanto outra parecia notar que até mesmo Lord Voldemort tinha mais coragem do que ele para admitir amar outro homem. Um bruxo que, nos últimos anos de sua vida, se vangloriava por ser incapaz de amar conseguira, na juventude, falar para Abraxas Malfoy que o amava enquanto ele, Scorpius, não tinha coragem de falar isso para Albus. Outra pequenina parte de sua mente também doía por saber que sua noção infantil de bem e mal acabara de ser despedaçada: todos sabiam que Voldemort era ruim, mas ele via ali um lado do bruxo que ninguém conhecia... Isso deixava claro que aquela dicotomia que todo mundo amava tanto era uma mentira: um homem ruim era capaz de amar, assim como um homem bom era capaz de odiar.

Respirando fundo e esfregando o rosto com os dedos, Malfoy pegou o outro envelope esquecido embaixo das fotografias. A caligrafia nessa era diferente, mais elaborada e cheia de enfeites, escrita em tinta verde escura:

 

“Até logo, até logo, companheiro

Guardo-te no meu peito e te asseguro:

O nosso afastamento passageiro

É sinal de um encontro no futuro.

 

Adeus amigo, sem mãos nem palavras

Não faças um sobrolho pensativo.

Se morrer, nesta vida, não é novo,

Tampouco há novidade em estar vivo!

 

Você sabe de quem é esse poema. Obrigado por me apresentar a ele. Tommy, agora é sua vez de me escrever Maiakovsky.

 

Com amor,
Abraxas Malfoy

13 de Maio, 1980.”

Scorpius segurou a respiração por um momento, com medo de atrapalhar qualquer coisa que ele estivesse sentindo naquele momento. Ele tinha em mãos uma carta nunca entregue à Você-Sabe-Quem, escrita no dia em que seu bisavô havia morrido. Quando finalmente se permitiu soltar o ar, o garoto dobrou a carta com cuidado e guardou-a em seu bolso, logo antes de guardar as fotos e as outras cartas dentro das caixas.

Quando ele saiu do escritório de seu bisavô, carregando diversos livros nos braços, Malfoy ainda não sabia descrever o que sentia: alívio, por saber que não era o único da família que amava da forma como o fazia; felicidade, por conhecer um pouco mais do infame Abraxas Malfoy; dor, por conhecer o futuro daqueles dois jovens das cartas... Mas de uma coisa ele tinha certeza: se Voldemort e seu bisavô tiveram coragem de admitir o que sentiam um pelo outro, ele podia fazer isso também.

O garoto pegou um dos livros, aquele livrinho de poemas que havia lido no escritório e que era do mesmo autor mencionado por Abraxas em sua última carta. Releu os poemas, com cuidado e atenção, até achar o que queria.

Que Albus o perdoasse pelo drama, mas fora a única forma que ele encontrara. Talvez não fosse muito corajoso de sua parte esconder-se atrás de uma carta, mas ele esperava que aquelas palavras, que pareciam significar tanto para o seu bisavô, pudessem ressoar em Potter.


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Notas finais do capítulo

Cartas escritas a mão são as coisas mais lindas que existem.

O poema é "Até logo, companheiro, até logo" do Serguei Iessiênin (1925), escrito "com o próprio" sangue do poeta, que dizia que estava sem tinta, antes dele se enforcar. Vladimir Maiakovsky, depois, escreveu um poema em resposta chamado 'À Serguei Iessiênin'.



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