Dó Maior escrita por themuggleriddle


Capítulo 1
dó maior


Notas iniciais do capítulo

Alguém passou muito tempo vendo vídeos de concertos e agora está aqui escrevendo coisas sem noção.



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“A música é como o mar,” dizia Mary Riddle, desde que ele conseguia se lembrar. “Ela consegue levar embora as coisas ruins e, se você deixar, pode acabar se afundando nela.”

“Mas eu tenho que tomar cuidado pra não afundar no mar.”

Com vinte e um anos, Tom queria ter ânimo para rir quando se lembrava da resposta que lhe viera automaticamente quando sua mãe comparara a música com o mar. Para uma criança de sete anos, fazia sentido que afundar-se em qualquer coisa fosse algo terrível... No mar, na lama, na preguiça. Anos depois, ele faria qualquer coisa para se afundar em qualquer coisa que não fosse o desânimo ou o medo que tomavam conta de si na maior parte do dia: quando tentava sair da casa, quando ia dormir, quando se levantava da cama, quando tentava comer alguma coisa...

Ele queria ter ânimo para se afundar em algo diferente, fosse no mar para poder se afogar ou na música, para ver se ela era realmente tão poderosa quanto a Sra. Riddle dizia. Mas os dias iam passando e, apesar de ter um piano pronto para ser usado na sala de casa, a mera ideia de descer as escadas, abrir a tampa do instrumento e fazer seus dedos tocarem algo o deixava exausto. Tudo isso envolvia coisa demais. Sentar-se na frente do piano, alongar-se, pensar em uma música, fazer seus dedos recuperarem a memória muscular para tocar a tal música, aguentar até o fim... Muita coisa.

Mas, para a surpresa da Tom, fora o mesmo medo que o impossibilitava de sair de casa que o afundou na música outra vez.

Mais uma noite, mais um pesadelo. Mais sussurros na voz de Merope Gaunt em seus ouvidos, mais sombras dos dedos dela em seus braços. Mais insônia. O caderno ao lado de sua cama já estava preenchido até a última folha com um rabisco atrás do outro nos quais, caso prestasse atenção (coisa que ele evitava fazer), conseguiria distinguir Merope em cada risco do grafite. Naquela noite, o pequeno caderno se tornou demais. Muitos olhos o observando, muitos borrões pretos que pareciam refletir exatamente o que estava dentro de si, muitas cabeças escondidas por trás de longos cabelos escuros...

Ele não queria aquilo. Tom Riddle já estava cheio de rabiscos escuros, linhas tortas feitas no momento do pavor, fosse no papel ou no seu próprio corpo. O homem sentia falta de algo diferente... Deus, como ele sentia falta de conseguir pintar as cores vibrantes do jardim ou de desenhar o sorriso de sua mãe. Tudo isso havia sido engolido pelos pesadelos, pelas cores escuras das sombras que via pelos cantos e pela voz incessante de Merope.

Talvez tenha sido essa agonia ou talvez o medo de voltar a deitar depois de perceber que o amontoado de cobertas em sua cama se parecia demais com a silhueta de Gaunt, mas algo conseguiu fazê-lo sair do quarto. Praticamente se arrastando, descer as escadas e chegar até a sala de visitas. O piano de cauda refletia a sua imagem acabada no revestimento preto: cabelos bagunçados, barba por fazer, olheiras enormes, olhos marejados e mãos tremendo. Parecia até que o instrumento estava fazendo-o encarar o que ele tentava ignorar toda vez que desviava o olhar de um espelho.

Ele também parecia desafiá-lo. Como se estivesse mostrando as mãos trêmulas apenas para ver se Tom teria coragem de colocar os dedos para trabalhar, como se o reflexo da postura encurvada e os ombros caídos o chamasse para se sentar com a coluna reta sobre o banco.

As pontas dos dedos praticamente formigavam enquanto ele abria a tampa do piano, se sentava e posicionava as mãos sobre as teclas. O medo ainda parecia segurar os seus pulsos, impedindo-o de encostar no instrumento: havia se passado tanto tempo desde que ele tocara pela última vez, tanta coisa havia acontecido naqueles meses... Riddle não sabia se ainda sabia como tocar alguma coisa.

A primeira nota soou, quebrando o silêncio da madrugada e ecoando pela sala de visitas. E, como se nem um dia tivesse passado desde que tocara qualquer música, seus dedos seguiram com os movimentos corretos, acertando cada tecla e fazendo-o se deliciar com cada nota. Se alguém lhe perguntasse qual seria a próxima nota a ser tocada, Tom não saberia dizer e talvez até mesmo se perdesse caso colocassem uma partitura na sua frente, mas seus dedos sabiam exatamente aonde ir, onde apertar, quais teclas pular e como cruzar um por cima do outro. A música lhes dava o ritmo, como se suas mãos dançassem ao som que elas mesmas criavam.

Dedo por dedo, o aperto de Merope em si foi se desfazendo. Ele conseguia se movimentar livremente, tanto os braços e as mãos sobre o piano quanto o tronco, que acabava inclinando-se para frente ou para trás a medida que a música continuava ou o pé, cada vez que apertava ou soltava o pedal. E era tão bom conseguir se mexer outra vez, mesmo que fosse ao som um tanto melancólico da tonalidade de Dó menor, sem ter o medo ou a apatia o segurando, era tão bom sentir seus dedos ágeis outra vez, seu coração batendo por algo bom e sua respiração ficando entrecortada por conta do esforço da música... Vez por outra, um dedo escorregava de uma tecla para a outra, um Dó virava um Si ou um sustenido caía na hora de se deixar levar. Mas a dissonância não importava, não naquela noite.

Uma música engatou em outra, suas mãos não parando nem por um momento, apesar dos pulsos ainda machucados reclamarem. Suas mãos não queriam parar, não agora que haviam conseguido se movimentar daquela forma: elas estavam criando algo que não era relacionado à Merope... Era música, clara e cheia de esperança. Esperança de que ele podia, sim, voltar a usar as suas mãos para coisas que lhe trouxessem satisfação e não apenas para se machucar: para tocar, para virar as páginas de um livro, para mexer no jardim de sua mãe, para pintar algo que não fosse apenas a reprodução de seus pesadelos.

Quando sua memória simplesmente lhe traiu e suas mãos não conseguiam mais tocar por falta de se lembrarem de algo, Tom Riddle sentiu-se inundado por algo que não sabia classificar com exatidão. Talvez fosse felicidade, um sentimento que não sabia que ainda era capaz de sentir, ou talvez fosse apenas aquela sombra de esperança que a música havia lhe trazido. Algo dentro de si parecia ter reconhecido que havia ainda a possibilidade de mudar a tonalidade da sua música.

Olhando para a superfície lustrosa do piano, o homem conseguiu ver, depois de ter passado o pequeno êxtase da música, o reflexo de seus pais. Thomas e Mary Riddle parados à porta, ambos em suas roupas de dormir, olhando-o de modo apreensivo. Ele conseguia ver o braço de seu pai ao redor da mulher. Eles estavam preocupados, com medo de que ele talvez tivesse enlouquecido de vez (de novo).

Respirando fundo e girando as mãos duas, três vezes, Tom voltou a apoiar os dedos sobre as teclas. Um sorriso, apesar de pequeno e esforçado, repuxou os seus lábios quando ele viu os ombros de sua mãe relaxarem ao ouvir a tonalidade de Dó maior tomar o seu espaço na sala de visitas.

Mary Riddle sempre teve razão. A música era como o mar: ótima para levar embora coisas ruins e propícia para se deixar afundar nela. A diferença era que afundar-se no mar podia levar à morte, enquanto, na música, isso levava à salvação.


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Notas finais do capítulo

Minha professora de piano diz que, pra ela, as tonalidades maiores têm um 'ar' mais alegre do que as menores. Tom no início está tocando apenas peças em Dó menor e, no final, passa para Dó maior... Eu gosto de imaginar ele se recuperando da Merope através tanto da música quanto do desenho/pintura, porque, sei lá, é assim que eu vejo ele.

Algumas peças em Dó menor:



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