Meio Sem Meia escrita por Ersiro


Capítulo 3
Dias de Canícula


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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PRIMEIRA SEMANA

 

A SEQUÊNCIA DE ABENÇOADOS — para não dizer malditos — dias da comoção estava se aproximando. Para ser sincero faltava exato um minuto para começar.

23h59.

Assim que acabasse o dia 24 de julho — que fora literalmente um dia abençoado, com muitos fechamentos de acordos de contrato na sua empresa prestadora de serviços terceirizados —, iniciariam os infortunados, e durante mais de um mês teriam que conviver dentro daquela panela de pressão que explodia a todo momento, se regenerava e explodia de novo, num circuito fechado, um círculo vicioso: quando o ponto final chegava, não se interrompia, o inicial recomeçava: explodir, regenerar, explodir, regenerar... Infinitamente.

00h00.

Ficou tenso, agarrou com força o travesseiro debaixo da cabeça, apurou os ouvidos. A casa em silêncio. Graças à algum bom deus, todos estavam dormindo. Ao menos não teria incidente este ano durante essa virada de dias, do 24 para o 25 de julho. Mas sabia que a partir do 25 de julho, o agonizante abalo na família Wash perduraria até 28 de agosto.

Mas fora dos pensamentos dele, ela não deixou passar o primeiro minuto do dia em branco. Mostrou suas garrinhas.

A esposa, aparentemente, dormindo profundamente, rosnou, baixinho, mas alto o suficiente dizer que ela estava presente, para ele ter certeza de que ela chegara este ano e dizer que o ano não seria diferente dos anteriores.

Ele não sabia precisar com exatidão quando tudo aquilo começara. Entretanto podia afirmar com convicção que fora depois de Angela nascer. A pequena e bela Angela que durante esse período caótico, não aparentaria pequenez nem beleza alguma.

Sabia também que aquilo não tinha cura. Então derrotado, o que lhe restou foi virar para o lado, puxar o lençol para cobrir o corpo, não por frio, mais um gesto involuntário e inconsciente de proteção. E dormir.

Os dias de canícula haviam começado.

 

1º DIA — TERÇA-FEIRA, 25, JULHO

O SOL DESPONTOU E MOSTROU que não tinha dado as caras para brincadeira. Jefferson Wash despertou e notou que durante seu sono se debatera o suficiente para lançar o lençol ao chão. Tanto faz. Estava calor. Primeiro dia, tudo bem arriscar acordar a esposa dormindo ao lado. Não teria grandes riscos de acessos de raiva. Chacoalhou levemente seu ombro. Nada. Um pouco mais agressivo. Resmungo. Não, aquilo não era necessariamente um resmungo. Assemelhava-se mais à um rosnado.

Jefferson engoliu em seco. Parou a mão a meio caminho de balançar novamente a esposa pelo ombro. Pensou durante um segundo. Melhor não.

Analisou a ridícula e medíocre situação que se encontrava. Porra, é minha mulher, não um bicho! E a sacudiu de novo, mesmo com uma vozinha indagando maliciosamente em sua mente: Será?

— Julie, vamos lá, acorde, meu amor.

Juliana abriu os olhos, cheios de raízes vermelhas. Virou para o alvo que a tinha acordado e respirou profundamente. Cogitou reclamar, começar uma briga de leve, mas Jeff se aproximou com um sorriso bondoso e fez um ligeiro encontro de lábios, nada mais que isso. Sabia que ela não gostava de beijo com língua logo quando acabava de acordar. Afinal, por que iria reclamar por tê-la acordado? Ele não fazia isso todos os dias? E ela não reclamava, então por que hoje...

Jefferson abriu as cortinas e a luz ofuscante da estrela de fogo fritou seus olhos. Juliana entendia agora porque acordara um pouco raivosa. Os dias de cão1 tinham acabado de iniciar, período que o calor era mais forte.

— Feche isso se tem amor à sua vida, Jeff.

Assustado, o coitado fechou antes mesmo dela terminar a frase.

 

— SOCORRO, PREPARE ALGO LEVE e evite coisas quentes. De quente já basta o dia de hoje — resmungou Juliana, descendo as escadas em direção à cozinha, dando ordem à empregada mexicana.

Sí señora — assentiu Socorro, desligando seu radinho que tocava Shakira na sua melhor performance em espanhol.

Juliana sentou à mesa e encheu o copo de um gelado suco de laranja.

Angela desceu as escadas coçando os olhos e com uma cara não tão boa. Juliana piscou, deslumbrada, para a pequena vida. Um anjinho de apenas seis anos. Seu coração que insistia se manter áspero hoje, amenizou e queimou de amor.

— Bom dia, querida.

A pequena não respondeu.

— Não vai responder sua mãe, Angie? — perguntou Jefferson aparecendo repentinamente, arrumando a gravata no pescoço.

Angela continuou sem responder.

Eram os dias de cão introduzindo seus efeitos na família.

 

O DIA FOI ESTRESSANTE E QUENTE.

Seu cliente fora um tanto babaca, quando no fim tudo o que Juliana queria era ajudá-lo.

Imbecil, ele que se dane e carregue nas costas os dias da sua prisão que virão pelo furto que cometeu. E refletindo mais sadicamente, ponderou que a pena de decepar a mão vigorada em alguns países do Oriente Médio seria uma boa pedida se entrasse em vigor nos Divided States2.

Saiu do carro e caminhou à porta de sua casa. A noite estava pegajosa. Precisava de um banho.

Angie já dormia, Jeff ainda não chegara.

Tirou os sapatos e deitou, esgotada. E era somente o primeiro dia da semana.

Antes de cair no sono, amaldiçoou muito a si mesma por não ter forças para levantar e ir ao banheiro tomar uma boa chuveirada.

Dormiu, com os fios da franja grudados na testa.

 

3º DIA — QUINTA-FEIRA, 27

22H37

Droga! Não lembrava que Jeff demorava tanto para chegar em casa. Mas precisava conversar com ele.

A porta da frente se abriu e Jefferson entrou, levando um susto ao ver sua esposa com olhar matador sentada na poltrona entre as sombras.

— Puta merda, Julie! — Colocou a mão no coração. — Assim você me mata!

— É? Por quê? Estava com outra? Por isso essa demora toda pra chegar em casa?! — Levantou e se aproximou, puxando o colarinho da camisa do marido, procurando cegamente por marcas de batom. Como não achou, pulou para a fase seguinte: cheirou seu pescoço, à procura de perfume feminino. Cheiro do suor dele. Não estava com outra. Onde estou com a cabeça?

Jefferson a segurou à sua frente. Compreendeu que alguma coisa tinha acontecido.

— Diga, o que aconteceu?

Juliana suspirou:

— Droga, você demorou. É Angie.

Jefferson desviou e já ia correr para o quarto da filha, mas Juliana o segurou pelo braço e interrompeu seu destino.

— Já dorme. — Seu marido virou para fitá-la, então ela pôde terminar: — Foi na escola. Angie respondeu à professora malcriadamente. Disse para deixá-la em paz quando a Sra. Evers perguntou por que andava tão solitária nos últimos três dias, então ela saiu da sala e se trancou no banheiro.

Depois do momento de silêncio, Jefferson finalmente falou algo depois de respirar fundo e esfregar as mãos no rosto.

— Amanhã conversamos com ela. — Olhou para a esposa e sorriu maliciosamente. — Agora, porque você não vem aqui e me dá aquela fungada que deu agora pouco?

Juliana cedeu. Fizeram sexo e se Jefferson soubesse naquele momento, o teria aproveitado ao máximo, pois conforme avançassem os próximos 32 dias, chegariam os dias que nem mesmo conseguiria tocar em Julie.

 

4º DIA — SEXTA-FEIRA, 28

— POR QUE VOCÊ RESPONDEU A professora e se trancou? — Juliane perguntou, um pouco seca.

Silêncio. Só se ouviam os pipocos dos ovos fritando na frigideira manejada por Socorro que fingia estar alheia à conversa.

— Eu já estava chateada. E aquela mulher ficou me perguntando toda hora o que eu tinha! — Angela jogou os braços e rosto na mesa, melancolicamente. Com parte da boca pousada no tampo da mesa, concluiu com um murmuro quase ininteligível: — Era só me deixar em paz.

— Angie, aquela mulher é sua professora e se chama Sra. Evers.

— Espero que não faça mais isso — reforçou Jefferson. Não quis perguntar por que a filha estava chateada. Era uma das consequências dos dias de canícula. Só isso.

Um gemido como resposta. Jeff olhou para a filha ainda largada na mesa. Tinha notado na filha a sonolência e melancolia se desenvolvendo nos últimos dias. Ele mesmo acordou com cólicas cutucando levemente seu abdômen, e com um frio na barriga e uma certeza aterradora, soube que ela também chegara para ele.

 

6º DIA — DOMINGO, 30

A PIOR COISA QUE JEFFERSON poderia ter planejado para o “momento família” seria um piquenique na praia e passeio de bike pela Maim Beach. Muito quente. Os dias de canícula chegavam ao seu auge. Os termômetros apontavam acima de 104°F (ou transformados em celsius: 40°C). E ao que parecia, a tendência era só aumentar durante as próximas semanas.

Com a temperatura em seu ápice, ela... Ah, quer saber, “o medo de um nome aumenta o medo da coisa em si”, dizia Dumbledore3, então Jeff diria de uma vez por todas! Ela... a raiva! — pronto, tinha dito! —, também viria com tudo no meio de sua família. Conforme o calor avançava, a raiva também se tornava mais aguda.

— O sol está tostando minha pele! Preciso de sombra, de um lugar um pouco mais fresco, escuro — queixou-se Juliana.

Durante esses anos, Jefferson identificara a raiva. E pesquisando sobre a rábica canina, onde os casos, segundo as suposições, eram mais frequentes durante esse período de 25 de julho à 28 de agosto. Haviam três tipos: Raiva Furiosa, Muda e Intestinal. Julie sofria da Furiosa, que, como em cães, procurava se encolher em lugares escuros e futuramente — Jeff sabia por experiência própria também —, tornaria-se muito agressiva. Angie era acometida pela Muda, que, assim como em perros, se manifestava de forma melancólica e sonolenta e futuramente — Jeff também sabia —, teria paralisias, principalmente maxilar. E ele, por fim, padecia da Intestinal, que, como os canis, não manifestava agressividade ou paralisia, mas sim vômitos e contínuas cólicas.

Mas é aí que estava a questão: Os casos de raiva durante os dias de canícula supostamente deveriam ser mais comuns em cães. E quando esta temporada chegava, todo santo ano, era a sua família que sofria desta comoção. Eles que adquiriam a raiva.

Juliana está gritando, alertada. É isso que tira Jefferson do torpor de pensamentos.

— Ai, meu Deus! Angie!

A garota se jogou na areia, teatralmente e o lado esquerdo de seu maxilar estava repuxado e contraído.

— Angie, vamos, reaja! — exasperou Jeff, ajoelhando-se ao lado da filha. A garota olhava tristemente para uma toca na areia de onde um caranguejo de olhos pretos de semente de melancia observava.

— Me sinto como um caranguejo. Debaixo de uma casinha de areia que a qualquer momento pode desmoronar! — proferiu Angela em uma ótima encenação dramática, com as palavras um pouco emboladas pelo lado esquerdo do maxilar paralisado. — Ó, vida cruel, a qualquer momento podendo ser pega por uma gaivota, este bicho nojento que se alimenta de carniça, mas que insiste em me devorar, uma carangueja limpa e cheia de vida!

— Ora essa, sem drama, Angela! — repreendeu o pai, erguendo-a do solo arenoso e suspendendo no colo.

A garota olhou sonolenta para ele.

— Sinto a gaivota chegando e ela faz um ataque direto em meu coração! Ó, não! Morrer, morria, morri! — e largou seu braço frouxamente, ficando com o corpo molenga.

Quanta melancolia. E de primeira! Bravo! Bravo!

Como Julie ainda não notara que em toda temporada de dias de cão todos eles sempre sofriam de raiva?

Julie?

Procurou-a girando a cabeça de um lado para o outro até que a viu parada, colada ao troco de uma palmeira, reclusa, quase como que querendo fazer, ser parte da sombra.

 

 SEGUNDA SEMANA

 

 9° DIA — QUARTA-FEIRA, 2, AGOSTO

— ELA PUXOU OS CABELOS da coleguinha de sala e xingou a professora de vadia, Jefferson! Va-di-a! E Angie tem só seis anos.

Jefferson mal entrara e recebera a notícia. Jogou a mochila no sofá e se esqueceu por um momento das cólicas que vinha sentindo durante alguns momentos do dia. Pegou o copo ao lado da garrafa Louis XIII no criado-mudo e colocou dois dedos do conhaque que deixavam apenas como objeto de decoração há mais de três anos. Assim que o líquido flamejante bateu em seu estômago, sentiu náuseas e depois de vomitar em falso por três vezes, finalmente emporcalhou o carpete.

— É isso, era só o que faltava! — rugiu Juliana. — O carpete que mamãe deu de presente por seis anos de casados. Ah, não, preciso avisá-la que não usarei mais esse carpete! Cacete, não tem como limpar depois da sujeira ter sido impregnada dessa maneira!

Pegou o telefone e ainda digitava as teclas até Jeff, com dores abdominais, olhar para o relógio: 22h53. Raios, o sogro e sogra deveriam estar no quinto nível do sono. O que pensariam dele? Alguém que não consegue controlar sua própria mulher com um momento de estresse? Ouviu a voz do sogro reverberando em sua mente. Segure-a firmemente pelas rédeas Jefferson Wash, é assim que se mantém um casamento por anos... Sentiu uma nova ânsia de vômito lembrando dos vários outros conselhos do Sr. Machism. Não, Wash era limpo4, trabalhava em conjunto. Avançou e arrancou o telefone das mãos da esposa.

— O que está fazendo?! — gritou Julie com os olhos arregalados e beirando à selvageria. — Deixe-me ligar para minha mãe!

— Não precisa incomodar a noite de seus pais, querida. Amanhã arranjamos um jeito de colocar as coisas em ordem. Agora dá licença. — Tapou a boca com a mão e engoliu algo. — Preciso vomitar um pouco mais.

E correu para o banheiro, sem antes colocar o aparelho de telefone no lugar.

Era a Raiva Intestinal trabalhando para chegar em seu cume de esplendor.

 

13º DIA – DOMINGO, 6

JULIANA ROSNAVA BAIXINHO em seu pesado sono.

Jeff resolveu começar de um jeito diferente. Desceu à cozinha. Socorro não estava lá, não trabalhava aos domingos, pois convenceu que tinha que reservar este dia para descanso e à Nuestra Señora de Guadalupe — seja lá quem fosse.

Fritou ovos e bacon. Espremeu laranjas e fez um suco. Uma xícara com café. Cookies. Salada de frutas. Levou tudo em uma bandeja para cima.

— Acorde, querida...

Resmungo.

— Fiz um café da manhã especial para você.

— Cai fora, me deixa dormir! — a voz soou rouca e irritada.

Jeff não se deu por vencido. Então fez algo que não devia ter feito. Encostou a mão no braço da esposa.

Ela se levantou de supetão, bateu violentamente o braço na bandeja que derramou toda a comida em cima do marido. E soltou um uivo agonizante de longo, com uma espuma branca escorrendo pelo canto da boa. Não parou de uivar até Jefferson, aterrorizado e com os olhos arregalados, fechar a porta atrás de si e sair do quarto.

 

14º DIA – SEGUNDA-FEIRA, 7

MESMO COM O ACONTECIMENTO DE ontem, Jefferson continuava com saudade da mulher.

Após chegar do trabalho, tomou um banho e foi se enroscar na cama.

Juliana estava com os olhos fechados, mas não dormia. Sentiu o quadril de Jeff começar a encaixar atrás de si, com algo cilíndrico ficando cada vez mais duro.

O sangue começou a subir à cabeça de Julie.

— Nem. Pense. Nisso.

Jefferson retesou, mas se recompôs e acariciou as pernas nuas da esposa.

Julie rugiu. Se virou e Jeff viu suas pupilas dilatarem assustadoramente, começar a formar espuma no canto da boca.

O membro do marido entristeceu-se quase que imediatamente. Jeff virou de costas e se encolheu no canto da cama.

Depois de uma hora acordado sem conseguir dormir, desceu as escadas e deitou no sofá, as dores abdominais vindo em lances mais incomodantes e constantes. Ouviu, vindo lá de cima, Juliana trancar a porta do quarto.

Sozinho, conseguiu dormir.

 

TERCEIRA SEMANA

 

20º DIA — DOMINGO, 13

JEFF PASSOU TODO O domingo-de-descanso — como dizia Socorro —, dentro do banheiro.

No entanto, para ser sincero, Jefferson estava em casa desde quinta-feira. As dores abdominais pioraram de vez na terça-feira. Durante a terça e quarta-feira, tomou — antes de tirar o veículo da garagem — o remédio receitado por seu médico particular, para diminuir as cólicas e acabar de vez com os vômitos. E até abrandava as dores e o fluxo líquido; uma pena que somente durante os trinta minutos que levava do caminho de casa até a empresa. Os dias não estavam sendo bem produtivos, então a insistência e orientação de Dr. Joel para que Jeff pegasse o atestado e repousasse por uns dias foi acatada.

 As cólicas estavam insuportáveis, os vômitos incessantes davam a sensação de que sua garganta estava assada. A garrafa de Coca-Cola de dois litros cheia de água filtrada amenizava toda a situação. Ao menos estava bebendo para não desidratar.

Angie estava no seu quarto de brinquedos, brincando com ela mesma. Alternava entre momentos de sonolência e passatempo, de cochilos profundos à criação de encenações para suas bonecas jogadas em dramas comoventes.

E Julie... bem... Sozinha. Na cama, debaixo dos lençóis, as janelas do quarto cerradas, a porta trancada, a luz apagada.

Parecia que aquela comoção não acabaria nunca.

 

QUARTA SEMANA

 

23º DIA — QUARTA-FEIRA, 16

Nada havia mudado. Parecia ter piorado.

Todo dia Jeff ia até o quarto da filha e a via parada como estátua, cada momento em uma posição diferente, mas respirava. Então o pai dava de ombros e voltava a fechar a porta do quarto.

 

QUINTA — E ÚLTIMA — SEMANA

 

32º DIA — SEXTA-FEIRA, 25

JEFFERSON NÃO AGUENTAVA MAIS aquelas retrações.

Com Julie trancada no quarto — há mais de duas semanas! Ainda bem que estava sem clientes! —, tiveram — ele e Socorro —, que colocar as refeições em uma bandeja à frente da porta cerrada.

A última vez que viu Angie acordada, assistiu à todas suas bonecas mergulhadas na banheira transbordando de água — "uma história de tragédia, papai" —; a professora mandou bilhete dizendo que quando não dormia durante a aula, Angie se comportava de maneira retraída, não respondendo absolutamente ninguém.

E ele, pobre sofredor observador — o único que contatava a comoção anual de sua família! — perdeu a sensibilidade do abdômen. A garganta além do gosto amargo, queimava como se tivesse engolido uma jalapeño trazida por Socorro.

Mas o fim de semana estava chegando. E com notícias promissoras. Segundo a previsão do tempo na DBC5, o calor infernal abrandaria aos poucos, até chegar 29 de agosto, onde uma baita chuva estava anunciada para ser transbordada.

E realmente o dia não estava tão quente assim como os anteriores.

Entrou na cozinha, com um baldinho preso pelo braço para o caso do inevitável acontecer. As novidades o tinham animado e despertado seu apetite.

Socorro já estava ali, fazendo um nó no cordão em volta da cintura para aquietar o avental.

— Esses dias de calor não faz bem para os Wash. Vocês têm que rezar muitíssimo a la milagrosa virgencita Guadalupe.

— Que rezar o quê! Os dias de cão estão contados! — exclamou Jefferson.

Como que para afirmar o que ele tinha dito, Angie apareceu na cozinha, esfregando os olhos, mas com um risinho no canto dos lábios.

— Titia Help6 — bocejou. — Tô com fome.

O clique da fechadura da porta do quarto do casal sendo destrancada quase reverberou pela casa, não por estar silenciosa, mas por ser um som raro nos últimos dias. Os passos arrastados descendo os degraus da escada foram ouvidos.

Os olhos de Jeff e Angie se iluminaram quando viram a pantufa rosa pisar na cozinha — depois do que pareceram séculos!

A empregada bufou.

— Todo ano es la misma cosa. — Socorro revirou os olhos.

Jeff não notou que mais alguém, além dele, era também observador e percebera que aquele replay infinito de temporada, podendo ser chamado secundariamente de maldição da família Wash, era causado pelos de dias de canícula que ao invés de afetar os cães das redondezas, afetava os três integrantes.


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Notas finais do capítulo

1 Dias de canícula ou dias de cão são a mesma coisa.
2 País não existente na vida real; talvez uma brincadeira de palavras feita para ironizar o nome de um país que anda dividido com seu atual presidente (aquela carinha). O estado de Maim também não existe no mundo real.
3 O mencionado personagem e frase foram retirados do livro Harry Potter e a pedra filosofal, de J. K. ROWLING.
4 Jogo de palavras com o sobrenome do personagem. “Wash” traduzido para o português como v.t. e v.i.: limpar(-se).
5 Divided Broadcasting Corporation. Emissora pública não existente no mundo real.
6 “Socorro” traduzido para o inglês como interjeição: Help.

A ideia para o conto surgiu quando li um pequeno trecho narrando o pensamento de um personagem (Harold Lauder) do livro A Dança da Morte, de Stephen King: “Estamos agora nos dias de canícula, pensou. Os dias de canícula, que iam de 25 de julho a 28 de agosto. Ou dias de cão, segundo o dicionário Webster, porque se supunha que nessa época eram mais comuns os casos de raiva canina”.
Então pensei: E se essa comoção de raiva ao invés de atingir cães, atingissem pessoas?



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