I see your star (you left it burning for me) escrita por desumask


Capítulo 2
I dig my hole, you build a wall


Notas iniciais do capítulo

sobre Kanon e seus pesadelos.



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Now the waves they drag you down
Carry you to broken ground
Though I find you in the sand
Wipe you clean with dirty hands

Você tem pesadelos desde que você tem lembranças; sonhos confusos com seu irmão, os cabelos dele esbranquiçados, os olhos vermelhos, e você não sabe se estão vermelhos de tanto chorar ou de nunca dormir; você sabe que Saga dorme muito pouco (e você não sabe o porquê, sua mãe só diz que ele é “diferente de você nisso”). Você o vê de longe em seus sonhos, distante e encoberto por ondas, e você mal consegue se mexer porque você está se afogando – você está sempre se afogando –, e sair de onde você está para alcançá-lo é impossível quando você mal consegue respirar, os pulmões cheios de água, sal e – você descobriu depois como se chamava esse sentimento – ódio.

Você sente raiva de Saga. Você o ama, é claro, mais do que tudo e acima de tudo, e você faria qualquer coisa para garantir uma noite de sono tranquila para ele. Mas você sente raiva, tanta raiva, dele, de sua mãe, do mundo—você sempre acorda de seus pesadelos para encontrar Saga ali do seu lado, com você, deixando em silêncio você arrancar tufos de cabelo dele no seu desespero para acordar, lágrimas de dor escorrendo pelo rosto dele e caindo sobre o seu, sua voz fraca e quebrada lhe dizendo que está tudo bem, que foi só um sonho, e você sente raiva de tê-lo machucado enquanto deseja machucá-lo ainda mais.

Há também os sonhos sem ele. Não deixam de ser pesadelos, nunca deixam de ser pesadelos, mas ao menos não há a sensação de afogamento; você tem controle sobre seu corpo e seus movimentos. Há o mar, uma eterna constante em seu subconsciente; há altíssimos pilares, rachados e agredidos por lampejos dourados e borrões coloridos, e há você, e você sente que está intervindo em algo sério demais para você, algo além de sua compreensão – e humanidade –; você não sente medo algum até os pilares ruírem e o mundo ao seu redor começar a desmoronar, e o menino-pássaro que invade seus sonhos e sua mente te diz que você está errado errado errado

Você acorda sozinho desses sonhos, silencioso, procurando Saga com o olhar aflito de quem teme ter perdido algo importante. Você vai até a cama dele, enfia um dedo sob seu nariz, espera que ele respire uma, duas, três vezes, e volta para a sua cama, o peso em suas costas aliviado apenas em alguns quilos e o peso do sono em suas pálpebras te levando contra a sua vontade para mais uma rodada de pesadelos.

Seus pesadelos mais recentes costumam envolver um enorme par de asas negras e muita, muita dor. Você sente seu irmão morrer em todos eles, e a dor da perda já é familiar – é como se não fosse a primeira vez que você o sente esvair da existência.

No entanto, desta vez você está pronto para acompanhá-lo.

Aos oito anos, você acorda de uma versão particularmente nítida desse pesadelo e

de repente

você lembra de tudo

(E você sente mais raiva ainda de Saga, porque mesmo que Saga não durma, mesmo que Saga esteja indo mal na escola, mesmo que Saga esteja fazendo visitas semanais a uma “moça” que “irá ajudá-lo”, segundo sua mãe, Saga não lembra de nada. Você fala de seus sonhos, fala do mar, do menino-pássaro, das asas negras para Saga e ele apenas te olha com aqueles olhos grandes e tristes e cansados e dá de ombros porque ele realmente não entende o que você quer contar para ele e isso te mata um pouco por dentro--)

você lembra de cada instante daquela existência miserável, e você se sente sujo

indigno

de Saga

(e você sabe que é besteira sentir-se assim quando o próprio Saga não fora um santo na existência anterior)

e de repente você é um garoto de oito anos com vinte e oito anos de informação e lembranças na cabeça e você só quer ter alguém para conversar sobre isso—

mas você não é doente que nem Saga e nem precisa de ajuda de ninguém; você vai bem na escola, tirando uma briga ou outra, não dá trabalho algum para sua mãe ou para sua avó, e até ajuda fazendo companhia para Saga em seus dias ruins.

Você é perfeitamente normal

mas você lembra nitidamente de uma vida muito menos normal do que a que você leva agora (e se lembra nitidamente de ter sido uma pessoa muito menos normal do que você é agora).

Em uma fria manhã de dezembro, você decide que vai contar tudo para Saga. Não é justo, nem com ele nem com você, que só você carregue esse peso.

Você desce as escadas da pequena casa no subúrbio de Atenas que sua mãe conseguiu alugar a duras penas (ela não diz nada, mas você sabe que as coisas estão feias desde que você se conhece por gente) e senta-se à mesa do café, sua torrada e a caneca de leite quente te esperando no seu lugar (porque as coisas podem estar sempre feias, mas sua mãe nunca deixaria faltar um farelo de comida na casa) e você força um sorriso quando ela te beija a testa e pergunta pelo seu irmão.

Seu irmão que você deixou dormindo mais um pouco, porque Saga sempre dorme tão mal e está sempre tão cansado, e que mal há em se dormir em um sábado?, você responde, e acrescenta em sua cabeça que além disso, ele precisaria estar bem descansado para a longa conversa que vocês teriam mais tarde, e sua mãe te olha como se você estivesse vinte anos mais velho—

e talvez você esteja mesmo vinte anos mais velho.

Você estranha que ela ainda esteja em casa, o cabelo em desalinho e o robe amarrado sobre o pijama. Ela não costuma ter folgas aos sábados; você sabe disso porque a essa hora já é sua avó quem está em casa cuidando de vocês. Olhando para ela com mais atenção, você nota seu olhar, tão cansado quanto o de Saga, perdido entre papéis, o cenho franzido, e você quer sorrir com as semelhanças entre ela e seu irmão, sempre tão preocupado com tudo, mas você não encontra humor para sorrisos.

De repente, ela nota que você a está encarando e te sorri – os sorrisos de sua mãe nunca são simulados como os seus e os de seu irmão, não quando ela sorri para vocês –, guardando os papéis dentro de uma pasta, e ela se levanta e passa uma mão pelos cabelos, colocando rapidamente a pasta de volta na estante da televisão.

“Vamos dar um passeio hoje,” ela diz, voltando a sentar-se à sua frente, “depois que Saga acordar. O que você acha?”

Responder eu acho uma péssima ideia porque eu tinha planos de arruinar meu dia não é uma opção, não quando ela já te olhou diferente hoje, não quando o que sai da sua boca é vinte anos mais velho do que sua cabeça deveria ser. Você apenas dá de ombros, não querendo se comprometer, porque você sabe que “depois que Saga acordar” implica em muitas coisas

“depois que Saga acordar”

“se Saga estiver bem”

“se Saga não estiver tendo um dia ruim”

“se Saga estiver com vontade”

e você não é uma criança ciumenta, longe disso; Saga sempre foi prioridade em sua vida

(em suas duas vidas)

e você sabe que Saga precisa mais de atenção do que você

(e você se pergunta que vocês estão, de alguma maneira, pagando pelos seus erros de outras vidas; se a doença de Saga é um castigo, tanto para você quanto para ele, ou uma consequência)

então você aprendeu a aceitar que nem sempre você vai fazer o que quer porque Saga pode estar tendo um dia ruim, e isso acaba destruindo o seu dia também, apesar de não ser você quem fica no quarto encarando as paredes.

Mas Saga está descendo as escadas e você não tem tempo nem disposição para pensar em mais nada, seus olhos procurando os dele, que encaram o chão, as olheiras sempre presentes. Você prende o ar involuntariamente, apenas esperando os olhos dele encontrarem os seus e você enfim descobrir se está tudo bem.

Saga olha para você e abre um sorriso.

Você lembra de respirar novamente, pensando, desgostoso, em como até o ar que você respira é ditado pelos humores de Saga, e o assiste dar um beijo na mãe para depois sentar-se do seu lado e dar um beijo em você—

—e você esquece de respirar de novo, levando a mão à bochecha, esfregando o local que ele beijou. Você não está aborrecido de verdade, mas você precisa fazer seu papel e, no momento, seu papel é fazer Saga rir de como você é besta.

“Acho que ele está tendo um bom dia, mãe”, você diz, mais seco do que queria, para sua mãe, e ela sorri, desatenta, sem dar bola para seu tom, porque há coisas mais importantes do que implicar com você quando Saga ainda sorria.

O sorriso de Saga te faz questionar, por um momento, se seus sonhos vívidos demais não eram só fruto de sua imaginação fértil demais (ou de jogar videogame demais. Para sua avó, a culpa era sempre dos videogames).

Talvez você devesse mesmo deixar essa conversa para mais tarde.


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Notas finais do capítulo

soundtrack: foals - spanish sahara



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