Triângulo do Dragão- A comunidade das estrelas escrita por Rute Martins


Capítulo 2
Capitulo 1




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Acordei confusa e inquieta naquela manhã chuvosa. Abri os olhos lentamente, tentando rever cada detalhe do sonho que tivera. Me sentei na beira da cama, pressionando com força as minhas têmporas, pensando um pouco sobre tudo o que havia visto no mesmo. A minha cabeça girava em busca de respostas, tentando encontrar um significado para tudo aquilo que tinha sonhado.

Só quando decidi que seria melhor anotar tudo num papel, para que mais tarde não esquecesse, é que me apercebi de que não estava sozinha no meu pequeno quarto partilhado. A minha pequena colega de quarto e melhor amiga, Shirley, dormia serenamente em uma outra cama do outro lado do dormitório. O seu cabelo ruivo era a única coisa que conseguia ver daquela distância, o seu rosto sardento estava coberto de almofadas e de odiosos ursinhos de pelúcia, oferecidos pela sua avó paterna no Natal anterior. Ela passava a vida reclamando de como ninguém a via como uma adolescente, já quase “adulta” de 17 anos.

O nosso quarto não era muito grande, na verdade era minúsculo para duas adolescentes como nós. As paredes estavam pintadas de um branco monótono, quase chato. As coloridas pinturas de Shirley , que estavam dispostas um pouco por todas as paredes, ajudavam a dar um pouco mais de vida ao local. O pequeno dormitório continha duas pequenas camas, um armário partilhado, duas secretárias e uma pequena poltrona. A mãe dela havia comprado uma pequena estante para livros, mas Shirley decidiu que precisava de mais espaço para colocar os seus sapatos, por isso tratou de se livrar dela. Com muita pena minha e das dezenas de livros que tenho que manter empacotados.

Shirley havia sido transferida de Londres para aquela escola não muito antes de eu mesma ter sido aceite. A academia de Broken Hill se situava no estado Americano do Connecticut, não muito longe da capital Hartford. Era um prestigiado colégio interno exclusivamente para garotas, facto que não deixava o público feminino muito feliz. Era conhecido pelos seus ótimos programas músicais e de teatro, mesmo que nenhum tenha estado em cena desde o ano passado. Eu mesma já havia feito parte do grupo teatral, nomeado de “Grotesco”, mas quando a palavra começou a ganhar verdadeiro significado resolvi desistir.

O barulho contínuo e forte da chuva, que batia insistentemente nos vidros das pequenas janelas do quarto, não parecia perturbar o seu sono. Continuava imóvel que nem uma pedra, pelo que decidi aproveitar para por em prática o meu plano inicial. Me apressei a pegar uma folha e papel, relatando nele tudo o que havia experienciado naquele sonho. Processo que já me era tão familiar. Não era algo difícil de ser descrito, porém era algo complexo de se ser entendido. Relatei tudo o melhor que pude, confessando no papel todos os sentimentos que me atolavam naquele momento.

Só parei de escrever quando me apercebi de que não era mais a única pessoa desperta naquele dormitório. A pequena ruiva estava agora sentada na sua cama, esfregando os olhos com força, esborratando alguns restos de maquilhagem do dia anterior. Me olhou meio aturdida e sonolenta e depois saiu da cama de um pulo, se jogando na minha em seguida.

—Juro que não entendo como consegue acordar tão cedo.- essa era a frase matinal favorita de Shirley. Sorri perante as suas expressões carinhosas e quase infantis, me perguntando como alguém se poderia parecer tanto a uma boneca de porcelana.- Ainda para mais quando passou a noite toda gritando!

O sorriso que antes estivera estampado no meu rosto gelou por completo, dando lugar a uma expressão pesada e insegura. Estivera eu mesmo gritando enquanto dormia? Apertei o papel onde havia descrito o pavor da noite anterior contra o meu peito, ainda sem saber como responder ao que ela havia dito. Olhei ao redor do quarto sobressaltada, tentando encontrar o sitio ideal para o esconder de olhos intrusos.

—Eu gritei mesmo, foi?- perguntei eu, tentando parecer o mais desinteressada possível. Ela tinha conhecimento desses meus sonhos estranhos, até porque seria impossível tentar esconder algo de Shirley. Contudo, era ainda era um assunto delicado, do qual não gostava de partilhar com ninguém.

—Você voltou a ter esses malditos sonhos não é mesmo? Pensava que eles tinham acabado.- comentou a ruiva enquanto brincava com a minha velha coberta laranja e verde. Me endireitei na cama, tentando manter uma expressão neutra e impávida, mas era algo impossível. Ela me olhava atentamente enquanto eu tentava arranjar uma boa resposta, e quando ela chegou não passava de uma mentira.

—Não. Foi apenas um pesadelo.- respondi. Ela me olhou séria durante alguns segundos e depois rebentou num riso frenético, como resposta ao que havia dito. A encarei incrédula perante aquela reação. O seu pequeno corpo se contorcia em cima da cama durante aquele ataque de riso. Não consegui manter uma expressão séria muito tempo. O seu riso era demasiado engraçado para resistir a dar uma gargalhada que fosse. Ela parou de rir passados alguns segundos, depois de recuperar o fôlego soltou enormes suspiros incrédulos .

—E quando foi a última vez que conseguiu mentir para mim, Rebecca Hill?- perguntou ela muito divertida. Depois de se acalmar de todo aquele alarido, apoiou a sua face pálida nas suas pequenas mãos, pronta para continuar a dialogar sobre o meu próprio tormento.- Sabe o que eu acho, Becca? Acho que você deveria ir à casa daquela bruxa amiga da minha mãe. Não fica muito longe daqui. Ela sabe muito sobre sonhos e essas coisas esquisitas como você. Quem sabe? Talvez ela se ofereça para te ajudar.

Abri um sorriso irónico e depois saltei para fora da cama, guardando em seguida o papel por baixo do colchão, lugar onde não permaneceria por muito tempo. Em seguida me encaminhei para a frente do espelho, onde comecei a pentear o meu cabelo. Conseguia ver pelo seu reflexo o rosto esperançoso de Shirley, que mordia o lábio ansiosa pela minha resposta.

—Você só quer ir lá porque o filho dela é bonito.- retorqui irónicamente.- E para além disso, todos sabem que ela não passa de uma fraude em busca de dinheiro. Ela percebe tanto desse assunto como você de cozinhar.

—Ah, não seja assim Becca.- disse ela impaciente, ficando agora de barriga para cima.- Ela é bastante boa no que faz. E ela te faz um desconto com toda a certeza, por ser minha amiga é claro.

—Logo vejo, tudo bem?- acabei por dizer cansada.

O assunto morreu ali. Como poderia eu explicar tudo o que havia acontecido a alguém? Quando nem eu tinha uma explicação que me satisfizesse? Por isso mesmo, eu e Shirley, seguimos em frente para mais um dia de aulas cansativas, na igualmente cansativa Academia de Broken Hill. Todas as alunas do colégio tinham um uniforme obrigatório. Uma camisa branca e um casaco azul escuro com o emblema da escola, que se destacava de muitas outras, por ser bastante diferente. Na maioria das escolas o símbolo continha um animal ou mesmo uma pessoa, já o nosso era uma paisagem. Paisagem essa que ilustrava um monte e um prado repleto de flores, que um dia já havia sido um quadro de um pintor bastante famoso, que o ofereceu à escola como prova da sua gratidão. Já os desconfortáveis sapatos pretos de sola plana, não só eram comuns a todas as alunas, como também obrigatórios.

A escola se caracterizava por ter um aspeto demasiado pesado e formal. Muitas das escolas ao seu redor poderiam ser confundidas com um mero hospital, mas não Broken Hill. Era constituída por três edifícios principais, revestidos por um grossa camada de tijolos vermelhos e algumas plantas trepadeiras que já se acumulavam no local. Tinha um magnifico jardim que rodeava todo o recinto, coberto de belas plantações, várias fontes e até um pequeno lago. Do outro lado dos imponentes e maçudos edifícios, havia também uma antiquada piscina coberta e um campo de lacrosse, mesmo que usado apenas para o propósito das aulas de educação física.

As horas passaram demasiado lentamente, mesmo que naquela manhã só tivesse três aulas. Inglês, Biologia e História. Shirley e eu tínhamos Inglês e Biologia juntas, mas na hora de História, ela teria a sua aula de matemática. A sua companhia me distraía de todas as minhas dúvidas e preocupações, assim como das matérias chatas que eram abordadas. Mas, de facto, a aula de História era sempre uma dor de cabeça. Não era uma disciplina na qual fosse má, era na verdade uma excelente aluna. A verdade é que eu não tinha mais amigos para além dela naquela escola, talvez mais um ou dois. Isso se a bibliotecária de serviço contasse para a média. Isso se devia ao facto de ser uma pessoa demasiado fechada, não queria chatear ninguém com a minha estranheza. E também, uma pequena parte da razão, residia no facto de todas as alunas daquele instituto serem um pouco...maldosas umas para as outras, não que isso me afetasse. Receber indiretas sobre as minhas peculiaridades já era algo comum.

Desde muito nova que eu tenho um talento. Talvez talento não seja a palavra correta para descrever tudo isso, penso que essa designação só é atribuível a capacidades boas. E essa era uma que me atormentava desde sempre. Todos o dia 5 de cada mês, sem exceção, tinha sonhos estranhos. Sonhos esses que me tiravam o sono e qualquer sentido de felicidade, como se sugassem toda a minha energia e emoção. Alguns desses sonhos eram inexplicáveis, como o mais recente, mas outros tinham a sua ponta sentido. Já havia conseguido prever alguns acontecimentos, nada de muito grande. Tais como a vez que eu alertei Shirley para que não usasse o vestido que ela tanto adorava, e mais tarde uma colega derrubou cola quente liquida nele, arruinando-o por completo. Coisas insignificantes. Mas tudo estava prestes a mudar.

Estava me dirigindo para a aula de História, depois de me despedir de Shirley, quando ouvimos a diretora Bernice Pollock, anunciando que a professora havia sofrido um pequeno acidente e que não poderia comparecer hoje na escola. Os alunos rebentaram em manifestos animados, felizes por não terem aquela aula. Eu não consegui festejar, a senhorita Madeline era uma querida, um doce de senhora. Seria errado festejar a sua ausência devido à sua causa. E a cara de desaprovação da diretora me fazia acreditar que partilhava da mesma opinião que eu.

—Podem parar de festejar.- anunciou ela em um tom ríspido e cortante.- Não vão deixar de ter a vossa aula de hoje, porque convidei uma velha amiga minha, formada em História para a vir substituir. Por isso mesmo, por favor, se dirijam para o interior da sala de aula e aguardem a chegada da professora Cassandra.

As alunas baixaram a cabeça resignadas, porém tristes, sem não antes deitarem alguns comentários maldosos sobre a diretora. Atravessei toda a multidão que agora se havia plantado junto da porta da sala de aula, e subi alguns degraus até ao último piso de cadeiras, me sentando na mais longe possível para que não tivesse que ceder passagem a ninguém.

Retirei os meus materiais enquanto via a sala enchendo lentamente. O burburinho inicial era angustiante, todas falavam de como odiavam a senhorita Madeline, e isso era muito maldoso das suas partes. Baixei a cabeça me concentrando na desinteressante capa do livro que se encontrava à minha frente, e só a voltei a levantar quando ouvi os passos de alguém entrando na sala. Todos os olhares curiosos se viraram para a velha mulher que se encontrava junto do quadro negro e empoeirado.

Senti o meu estômago se contorcendo quando reconheci a sua cara. A minha boca se abriu de espanto, e os meus olhos estavam arregalados perante o acontecido. Não podia ser, repetia para mim mesma. Senti os meus olhos se encherem de lágrimas, o meu corpo estava gelado. Um calafrio percorreu toda a minha espinha, quando me apercebi de que ali estava ela, de cabelos grisalhos e vestido longo e preto. A freira do meu sonho macabro.

Os seus lábios pintados de um vermelho escuro se moviam rapidamente, estava provavelmente se apresentando para a turma, mas eu não a conseguia ouvir. A minha cabeça dava voltas e mais voltas, me deixando desamparada e atordoada. Não podia ser. Não podia ser. Não podia ser.

Por impulso saltei da cadeira, e depois de sentir todos os olhares postos em mim, inclusivo o da mulher, comecei a correr para a porta. O meu coração batia descompassado no peito, como se a qualquer momento fosse criar uma enorme cratera no mesmo e sair para o mundo exterior. Sentia todos os olhos queimando sobre mim enquanto corria, e só parei de o fazer quando cheguei ao pátio principal do colégio. As poucas alunas que se encontravam no exterior dos pavilhões me olhavam como seu eu estivesse louca, e de facto, talvez até o estivesse. Não podia ser.O ar fresco entrava pelos meus pulmões como adagas cortantes, e eu precisei me segurar num banco para me manter de pé. Eu não percebia como tal poderia ser possível. Seria isso possível?

Puxei com grande custo o meu celular do bolso do casaco, e após alguma busca encontrei o número de Shirley. Me encontre no portão da escola, 18:00h em ponto. Nós vamos à casa daquela maldita bruxa, quando acabei de o digitar enviei a mensagem apressadamente e corri para os dormitórios.

Estava decidida a enfrentar tudo aquilo, e aquela era a única maneira de encontrar algumas respostas. Não me importava mais com o facto de ela ser ou não uma fraude charlatona, eu só precisava de um pouco de informação. Um pouco de razão no meio de toda essa loucura.

Não almocei naquele dia, estava demasiado nervosa. Passei o resto da tarde deitada debaixo das cobertas, pensando numa razão plausível para tudo isso. Quando o relógio bateu as 18:00h da tarde, hora em que as aulas terminavam por completo, corri em direção ao portão da escola. O portão da escola era um local afastado do recinto principal, para além do lago e das piscinas. Tinha sido por aquele mesmo local que um dia o carro da minha tia Bethy havia entrado para me largar nesse inferno. Os meus pais haviam morrido à pouco mais de 3 meses, e ela decidiu que não conseguiria cuidar de mim sozinha. Já faziam mais de 4 anos.

Corri o mais depressa que pude pelo grande prado, que mais tarde tomou o aspeto de terra batida, que se estendia até ao ponto de encontro combinado. O grande aglomerado de pinheiros verdejantes me acompanhavam nessa corrida contra o tempo, me circulando como um escudo protetor, impedindo que algum professor ou aluna me visse. Como havia sido combinado lá estava ela, sentada numa grande pedra coberta de musgo. Parecia inquieta e preocupada, algo que não era comum em Shirley. Mal se apercebeu da minha presença, correu para mim o mais rápido que conseguiu.

—Onde é que você se meteu, Becca? Todo o mundo estava comentando que você saiu da aula sem qualquer explicação. Você está bem? A professora substituta está terrivelmente preocupada com você, segundo ouvi dizer algumas colegas suas. O que houve? E porquê essa decisão tão repentina de querer visitar a bruxa?- ela disparava as suas perguntas demasiado rápido, num tom demasiadamente preocupado, me deixando atordoada.

—Calma, eu estou ótima.- garanti eu antes de prosseguir.- Apenas aconteceu algo muito estranho comigo, algo que nem você vai acreditar. E eu acho que ela é a minha única chance nesse momento.

—O que aconteceu?- questionou ela impaciente, num tom demasiado alto. Olhei ao redor me certificando de que ninguém se encontrava perto de nós. Ninguém estava lá, apenas árvores e mato profundo. Respirei fundo algumas vezes antes de começar a relatar o ocorrido. Shirley me ouvia atentamente, a sua expressão ia mudando consoante o que eu dizia. Passando de preocupação para a incrédulidade. Expliquei cada detalhe, desde o sonho que tivera até ao acontecimento na aula de história com a misteriosa madame Cassandra.

—É por isso que temos que ir. Agora. O mais rápido possivel.

—M-mas já vai anoitecer não tarda. Você sabe que é proibido saír do colégio depois do anoitecer.- balbuciou ela ainda em choque.

—Não é proibido se ninguém o descobrir.-relembrei eu.

Com alguma ajuda mútua, e com a pouca agilidade física que me restara de toda aquela correria, conseguimos subir até ao topo dos altos portões de ferro. A sua estrutura era bastante ondulante, o que não facilitou a sua subida. O nosso uniforme ficava preso em cada farpa que encontrava, e já estava prestes a desistir, quando reparei que Shirley já estava sentada no seu topo de mão estendida para mim. Quando finalmente me encontrei lá no alto, olhei para Shirley já no chão, do outro lado do portão. Senti um pequeno laivo de culpa, por a estar metendo numa situação perigosa por mim.

Algum tempo depois, Shirley já não parecia preocupada por estar quebrando as regras. Pelo contrário, parecia bastante animada pelo nosso pequeno passeio noturno. As luzes da cidade já se começavam a acender de par em par, e isso significava que estava cada vez mais tarde. Olhei as horas e já eram precisamente 18:45h da tarde. O frio começou a apertar, mas Shirley parecia imune a tudo isso. Ajeitava o seu cabelo para todos os sentidos com as suas pequenas mãos, secretamente ansiando que fosse encontrar o filho do nosso alvo. Não consegui deixar de sorrir perante a sua animação.

 Passados alguns minutos já nos encontrávamos junto da porta da pequena casa da suposta bruxa. Junto da porta amarelada estava um grande panfleto informativo em tons de lilás e verde, com a fotografia de uma mulher sorridente, nos dando a certeza de que nos encontrávamos no sitio certo. Tem um problema na sua vida? Não sabe como o solucionar? Eu posso ajudar. Basta marcar um consulta comigo, bruxa e vidente Amber Rosalinda.

Estava no momento da verdade.

 

 

 

 

 


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