À espera do VLT escrita por Kalyn


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Trigger warning: Este conto menciona suicídio.

Entretanto, os motivos apresentados no diálogo entre Maísa e Guilherme não são reais. Não são uma tentativa de zombar ou incentivar a depressão, o suicídio, nada disso. São uma alegoria. Um exemplo de quão perdidos as pessoas podem estar, mesmo sendo jovens. Das besteiras (sim, besteiras, porque os motivos apresentados foram escolhidos com o motivo de serem irreais) que podem ser levados a fazer porque, muitas vezes, falta uma palavra.

Já aviso também: Maísa e Guilherme não vão se jogar. A intenção da história é falar de como os jovens são perdidos. Se você considera esse tema infeliz, se acha que não tem a mente preparada para isso ou se simplesmente não gosta, peço que nem leia. Só vai machucar.

Enquanto escrevia "À espera do VLT", nunca quis rir dos motivos reais que alguém pode ter para querer acabar com a sua vida. Quem sou eu? Quem somos nós para julgarmos e acusarmos alguém?

Nós merecemos uma chance de tentar descobrir se estamos fazendo por nós ou pelos outros. Espero que, ao ler este conto, alguém se dê conta disso. Se ofendi algum leitor, não foi essa a intenção.

Boa leitura.



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Dizem que, se você estiver no lugar certo, o pôr do sol pode ser mágico.

Dizem que o VLT em Caucaia sempre passa quando o sol se põe.

Dizem que...

Maísa estava esperando há mais de dez minutos em frente ao ponto do pastel. Ela já tinha comido um pastel após o outro, mas estava vendo a hora do sol se pôr e o menino não sair de cima da calçada. A calçada que ela já tinha escolhido.

Quando planejara se jogar na frente do trem, Maísa pensara na calçada do outro lado dos trilhos. Ela comeria pastel e se sentaria lá para esperar o sol se pôr.

Sua mãe achava que ela estava no cinema com seus amigos. Coitada.

Maísa começou a perceber que talvez o menino não fosse sair da calçada tão cedo, então decidiu atravessar a rua e o trilho até chegar onde ele estava. Ela havia escolhido aquele lugar primeiro.

O menino que se intrometera em seu destino nem se limitou a olhar para o lado ou se afastar um pouquinho.

Ótimo. Maísa também estava cansada das pessoas.

Após alguns minutos, entretanto, ele decidiu falar.

— Você não está com calor?

— Não estou com mais calor do que vontade de prender o cabelo.

— Existem outras formas de prender o cabelo além de usar um gorro.

Pausa.

— Por que não conta o que aconteceu com você?

Maísa cruzou as pernas e o menino ficou balançando as suas para frente e para trás.

— Eu posso te contar um segredo?

— Pode. Não tenho nada para fazer.

— Promete não tentar me impedir?

— Por que eu iria te impedir?

— Eu vou me jogar na frente do trem assim que o sol se pôr.

— Não diga isso.

— Por que não?

— Eu também vou. Não se jogue hoje. Volte amanhã.

— Você é louco? Quer morrer?

— Eu quero. Você não?

— Não. Eu só quero sentir dor e me sentir punida para poder pedir desculpas adequadamente.

— Desculpas pelo quê?

— Eu fiz merda.

— Que tipo de merda precisa que você se jogue na frente do trem para ser perdoada? Você massacrou um pequeno país na vida passada?

Era para ser uma piada?

Nenhum dos dois conseguiu rir.

— Meus amigos. Eu não mereço viver nessa sociedade do jeito que estou — ela suspirou e tirou um pastel da sacola. — Quantos anos você tem, menino que quer morrer?

— Dezessete. Quantos anos você tem, menina que não quer morrer?

— Quinze. Quer um pastel? Pode ser seu último.

Aquela era para ser uma piada.

Guilherme sorriu.

— Não, obrigado. Você parece estar ansiosa por um pastel.

— Pode ser o meu último também. Por que você quer morrer?

— Minha pontuação no ENEM passou de oitocentos.

— Não consigo sentir pena de você por isso. Desculpe.

— Eu passei na primeira chamada de Engenharia Civil.

— Garoto, você é louco? Sabe quanta gente por aí é suicida e nenhum deles é porque passou em um curso super concorrido no SISU?

— Minha mãe disse que tentou me abortar nove vezes, mas eu não presto nem para morrer.

— Ainda assim. Se jogar na frente de um trem é um pouco radical demais, você não acha?

— Todos dizem que eu não sou capaz de me matar. Eles disseram que eu não tenho coragem.

— Você é depressivo?

— Não.

— Eu ainda estou tentando entender o que está acontecendo aqui. É uma pegadinha?

— Você não tem como entender mesmo. Só tem quinze anos.

— E você tem dezessete. Grande bosta.

— Você quer se jogar na frente de um trem e não morrer. O que é, viu isso em um post do tumblr e resolveu que é um ótimo jeito de chamar atenção?

— Eu sou realista. Tenho um ótimo plano de sair viva dessa. E, para a sua informação, eu nem tenho uma conta no tumblr.

— Grande bosta.

— Você assiste American Horror Story?

— Por que a pergunta de repente?

— Você parece o tipo de pessoa que compartilha frases no Facebook como "O amor entre um psicopata e uma suicida é o mais lindo que existe. Ele mataria por ela, e ela morreria por ele".

— E você parece o tipo de pessoa que coloca como biografia do Instagram que toda garota fria, irônica e um pouco maliciosa já foi uma garota meiga, carinhosa e cheia de amor.

— Só que veio um idiota e entrou na vida dela — Maísa completou. — Eu preferiria me jogar na frente do VLT.

— Você vai se jogar na frente do VLT.

— Foi o que eu quis dizer.

— Acho que entendi por que você precisa ser atropelada por um trem para ter direito de ser perdoada.

— O que você está dizendo?

— A gente acabou de se conhecer e já está menosprezando meus motivos para me matar.

— Você só fala uma merda atrás da outra.

— Você também.

— Eu sei — Maísa olhou para o trilho, desejando que o aviso de que o trem estava a caminho baixasse. — É por isso que eu não mereço estar bem como estou agora.

— A vida é uma merda. E eu não sei por que estou aqui. Se não estou fazendo nada de útil, então para que continuar?

Maísa respirou fundo e jogou a sacola do pastel no meio da rua. Ela merecia fazer uma atitude ecologicamente incorreta.

— Desculpe. Você não merece ter alguém te desestimulando até na morte.

— Desculpe. Você não merece mais uma pessoa te lembrando das besteiras que faz.

— Eu estou com calor — Maísa respondeu a pergunta que fez com que começassem o diálogo. — Mas pintei meu cabelo de azul e minha mãe vai me matar.

— Ela já vai te matar só porque você vai fazer essa loucura.

— E eu acho que está feio.

— Não tem como estar tão ruim. Quer tirar o gorro?

— Está horrível.

Guilherme puxou seu gorro e não conseguiu evitar a surpresa. Parecia um chiclete azul barato e mastigado.

— Está...

— Ele caiu — Maísa escondeu o rosto com as mãos.

— Tudo bem. Você pode colocar a culpa no trem.

Já era quase cinco e meia e eles não viam nem o pôr do sol nem o VLT chegando.

— Qual o seu nome? Meu nome é Guilherme.

— Que nome mais mauricinho.

— Você é realmente uma coisa — ele jogou o gorro em seu colo.

— Meu nome é Maísa.

— Nhem nhem nhem?

— Me respeita!

— Você deve ter sofrido bastante.

— Quisera eu que meu sobrenome não fosse Silva.

— É sério? — Guilherme riu.

— Você tem o nome do Guilherme Leicam. Eu tenho o nome da Maísa.

— Ninguém nunca me falou do Leicam.

— As pessoas mais velhas ficam cantando coisa da Maysa Matarazzo comigo também.

— Você tem algum talento para a música, pelo menos?

— Eu sou menos musical do que um mosquito. Um soldadinho perdidinho.

— Você não tem jeito de quem escuta Supercombo no chuveiro.

— Eu não escuto Supercombo no chuveiro. Prefiro Scalene. Na verdade, eu canto até Wesley Safadão se vier. Não me importo.

— É por isso que você é péssima com amizades?

— Você tem jeito de quem canta Amianto e Wonderwall no chuveiro — Maísa não respondeu, mas também decidiu por não fazer silêncio.

— Amianto é música de suicida?

— Supercombo é banda de suicida.

— Poxa, Maísa, você é péssima.

— Eu sei, eu sei. É que tem tanta gente que queria estar viva... Tanta gente que queria ter a chance. Tanta gente que queria passar em qualquer porcaria no SISU.

— Eu nunca fiz questão de existir — Guilherme arriscou citar Piloto Automático.

— Nem vem. Eu estou prestes a me jogar na frente de um veículo leve sobre rodas e não mereço escutar música modinha logo agora.

— A culpa não é minha.

— Nesse mundo a culpa não é de ninguém, Guilherme. Nós que queremos culpar e assim nos sentirmos melhores.

— Eu não me sinto nem um pouco melhor. E você?

Nadinha. Pausa.

— Você sabe que, se jogando, vai deixar eles vencerem, não é?

Eles quem?

— As pessoas que te trouxeram aqui. Com suas palavras, ações. Com a ausência de palavras e ações.

— Sou eu quem está planejando se jogar na frente de um trem por causa dos meus amigos? — E que amigos de merda eles devem ser.

— Você não entende.

— Você entende?

— Eu tenho que ser uma pessoa boa. Mas não sou uma pessoa boa — Maísa bagunçou seu cabelo horrivelmente azul. — Desisto de menosprezar os seus motivos.

— Por quê?

— Todo mundo te quer na cova, não é?

— Você me quer na cova?

— Eu nem te conheço.

Verdades.

— Você quer?

— Eu quero provar que sou dono da minha vida e da minha morte.

— Mas vai se jogar na frente de um trem porque ninguém te disse para não fazer.

Profundo. Para uma garota de quinze anos.

— E você? Qual é a sua estratégia para sair viva? Vai ligar para o 141?

Você deveria ligar para o 141.

— Talvez seja tarde demais.

Nunca é tarde demais. Maísa não sabia se falava.

— Eu vou ligar para o 190 assim que ouvir o barulho do trem. Avisar que uma menina foi atropelada. E esperar que eles cheguem a tempo.

— Mas seremos nós dois. Você quer viver, eu não. Como vão saber quem é a prioridade?

— Você não tem nenhum bilhete final?

Burro.

— Onde eu iria colocar um bilhete?

Esperto.

— Você deveria ter ao menos a decência de facilitar a sua identificação. Vai que eu morro e você não. O que vai fazer se isso acontecer? Vai se responsabilizar?

— Droga, eu não pensei nisso. E agora?

— Peça caneta na pastelaria, eu não tenho. Ia manchar minha roupa nova de tinta. Aí rabisca na blusa, na cara. Em tudo.

Que tudo? O trem vai acabar comigo.

— Eu posso pedir — Maísa continuou, já que Guilherme sequer respondeu. — Quer ir comigo?

— Não. Se eu sair daqui, posso perder a coragem. Ou pior, o trem.

— Sabe o que é pior do que viver sem ter vivido?

— O quê?

— É morrer sem ter morrido. Eu vou lá. Mas, se sobreviver, peça desculpas por mim.

— Volte antes que o trem venha, nhem nhem nhem.

— Por quê?

— Eu quero morrer com você ao meu lado.

Idiota. Ele fazia brincadeiras com coisas que nem entendia. Maísa até desejou que Guilherme não morresse de fato, porque ele não era digno de dar fim à própria vida.

Ninguém que conseguia passar em um curso tão concorrido no SISU era digno de morrer. Ele tinha pelo menos um ou dois motivos para estar vivo. Ou pessoas que o amassem.

Maísa atravessou o caminho até a pastelaria com cuidado. Se fosse atropelada por um carro, sua mãe iria lhe dar uma surra. Ainda mais com o cabelo daquele jeito.

Quando chegou na pastelaria, eles estavam tocando uma música que Maísa nunca tinha escutado. Uma música flopada, talvez. Mas a fez meditar. A fez hesitar até em pedir a caneta.

Ela tinha o direito de pensar.

Quando a música acabou, ela correu para o lado de fora sem nem dizer adeus. O sol havia se posto tão somente ela entrou na pastelaria, então.

Não via nem a cor do trem, só a cor do menino. Decidiu voltar assim mesmo, sem caneta nem vontade de morrer.

Ele parecia uma criança à luz do poste.

— Você demorou. Pensei que tivesse ido embora.

— Eu não trouxe caneta.

— Por quê?

— Porque a gente não vai se jogar.

— Por quê?

— Porque eu não quero. Porque eu não queria. Porque você não quer.

— Por quê?

— Porque eu escutei uma música boa e você deveria ter escutado. Porque suicídio é um problema sério e nós só estamos brincando. Porque faculdade não é tudo e daqui a um ano tenta SISU de novo. Porque meus amigos não merecem que eu me machuque por eles. Porque eu quero viver. E você?

 

— Eu não sei.

— Eu sei por nós dois. — Maísa olhou para o céu que estava nem tão escuro nem tão iluminado. Um começo de noite ou um começo de vida? — E acho que o trem não passa nessa hora nos finais de semana.

— É bom saber.

— Dizem que, se você tiver no lugar certo, o pôr do sol pode ser mágico. E a vida também.

Verdade.


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