O Boteco dos Escritores escrita por tomm, O Boteco dos Escritores


Capítulo 1
Oneshot




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    Naquela região esquecida do mundo, a terra que um dia fora úmida, agora era deformada pelas rachaduras, que marcavam o imenso deserto como placas. Chuvas não eram tão raras, apenas raras o suficiente para que a terra se esquecesse de que tinha sede. Naquela imensidão bege e plana se destacava uma listra escura sinuosa. Uma estrada. Para onde ia ou de onde vinha não era do interesse de seus usuários. Na sua exata metade, existia a Comunidade. O que era a Comunidade? Há muito que ninguém sabia. Porém a pequena cidade de quase dez mil pessoas era marcante para todos que chegavam nela. A Comunidade era sustentada pela grande metrópole que a fundara, a Grande Cidanyahna. No início, a Comunidade servia como colônia de férias para os incansáveis trabalhadores da cidade-grande, uma fonte de descanso e diversão. Não havia a tarefa de compromisso ali. Vinham, escreviam quando queriam o que quer que quisessem. Discutiam assuntos inúteis longe das garras da opinião pública - pelo menos na maioria das vezes. Com o tempo, porém, a Grande Cidanyahna esqueceu de sua cidade-satélite do mesmo jeito que as chuvas esqueceram o Grande Deserto onde ela existia.

    A cidade era empoeirada devido a falta de construções altas que a protegessem dos ventos furiosos que traziam a areia seca do deserto amarelado. Montes de areia se acumulavam nos cantos, endureciam e ali ficavam. A maior parte das casas era vazia, a maior presença ali dentro eram os fantasmas de memórias daqueles que haviam conseguido se divertir na Comunidade. Móveis estavam ali, assim como eletrodomésticos e utensílios, sujos porém intocados e intactos. Não existiam lojas, pois a metrópole disponibilizava todos os consumáveis à Comunidade, assim como eletricidade e abastecimento de água. Não havia comércio pois a cidade vivia da diversão. Grandes, esparsos e esquecidos estavam distribuídos pelas poucas maiores avenidas da pequena cidade os 'cassinos', casas de diversão que disponibilizavam jogos variados aos moradores. Cada estabelecimento dava um tipo específico de entretenimento, que ia desde as famosas listas de discussão às avaliações do trabalho dos usuários, algo que todos gostavam.

    Nyahnenses tinham apreço por seu trabalho. Eram escritores, e aquela cidade era mundialmente conhecida pela sua titânica produção literária. Há muito tempo atrás fora conhecida pela sua qualidade, conceito que caiu no esquecimento. Porém, para todos os moradores, a crítica de seu trabalho, o mais simples sinal de que alguém o estava acompanhando nas linhas que escrevia, era algo mais importante que o salário. Na Comunidade os escritores encontravam isso através dos jogos. Porém a Comunidade havia sido esquecida pela maioria. Não havia um motivo especial para isso, no entanto. Simplesmente o movimento havia rareado com o passar do tempo, e logo havia mais uma vítima da falta de chuva: sua população.

    Porém a cidade não estava completamente morta. 

 

    Aquele cara andava como se fosse domingo. Chinelos de dedo de madeira altos, uma bermuda de náilon de cor verde e uma camisa branca de botões com imagens de uma frutas verdes espalhadas pelo tecido. Peras. Os cabelos eram castanhos-escuros assim como os olhos, ondulados e elegantemente desarrumados, os cachos caindo por toda a cabeça. Sua pele era bronzeada, e existiam vestígios de sedentarismo se pronunciando debaixo da camisa, ainda que bem disfarçados. A figura andava displicentemente no meio de uma avenida na cidade vazia, com fones de ouvido, quase gingando entre um passo e outro. A figura movia os lábios cantarolando para si mesma as músicas que ouvia enquanto andava. Súbito, parou em frente à uma porta, sorrindo ao notar que quase passara reto pelo seu destino. A porta era desnivelada do chão, para se chegar nela ele teve que descer uma pequena escada de cinco degraus. Abriu-a e ouviu sorrindo o barulho do sino que anunciava a sua chegada.

- Pera! - Os menos entretidos disseram ao notar a chegada do companheiro.

    Era o Boteco dos Escritores.

 

    A música enchia o ar, assim como o cheiro de todas as bebidas. Não existia sujeira no lugar bem cuidado, um capricho de seus donos e usuários. As mesas eram ocupadas por grupos aleatórios, cada qual com sua conversa alta regada à embriaguez ou animação genuína. Algumas mesas estavam engalfinhadas em discussões acirradas, mas dentro do boteco não existiam desafetos. Todos ali dentro eram companheiros em uma causa: manter a Comunidade viva, para sua própria diversão. De dentro daquele bar surgiram algumas das maiores idéias que fizeram da Grande Cidanyahna o que ela era hoje. Ali dentro todos os dias eram dia de reunião de família. Todos se conheciam e eram respeitados em seus devidos lugares.

    Havia a proprietária do local, uma mulher loira e altiva com feições de general, que encontrava-se bêbada e rindo muito nesse momento, Ana Hel Black. Havia o galanteador de mentira, Pera por causa de suas roupas que sugeriram o nome. Haviam as duas meninas carismáticas, Isa e Laissa, a primeira de cabelos vermelhos e roupas chamativas de anime com uma touca verde que imitava a cabeça de um sapo e a segunda, um pouco mais nova, de cabelos negros e feições enganosamente inofensivas com uma fantasia rosa de coelho. Havia o bartender e único garçon do lugar, uma carismática, baixinha e gordinha raposa vermelha a quem todos chamavam de Mixx. Havia aquele que ninguém sabia se era aquela, que mudava a aparência de menina como mudava de roupa, a Rainha de Ildr que todos chamavam de Quill. Havia aquele com a camisa com desenho de dragão e óculos de cético, Ryuu. Havia aquela com a voz doce e em resto provocante no canto mais escuro iluminado de vermelho, Unknown. Havia a sua companheira que tomava a forma dos mais variados felinos, que nesse momento era dois, Danny. Havia aquele com os headphones e as roupas pretas e brancas, que junto com as manchas nos olhos era chamado de panda, Siadk ou K. Havia aquele que tomava o microfone e cantava letras cômicas tirando as gargalhadas de todos com suas poses e carões, Diego. Havia a beldade inocente com sotaque do outro lado do oceano, Elyon. Havia a mais nova membra que todos haviam aprendido a amar, com vontade de ferro moldada à açúcar, Mah. Havia aquele que observava e ria internamente, de quem todos tinham medo de receber um comentário cáustico, Palas. E haviam outros, muitos para serem mencionados. Eles eram o Boteco, o coração que fazia o deficiente sangue da Comunidade correr pelas veias.

- Fora Diego! Coloquem a Unk pra cantar ali! - Mah gritou, sendo apoiada pela maioria.

- Eu não! Que vá o Pera, já o ouvi cantando. - Rebateu a garota em seu canto, acariciando os dois gatinhos que eram Danny.

- Se eu cantar vocês vão começar a me idolatrar... Melhor a gente continuar rindo e se divertindo com o Diego ali. - Disse o garoto rindo.

- Isa-chii! Isa-chii - A voz infantil de Quill se fez ouvida quando ela subiu em sua cadeira gritando pelo nome da atual autoridade maior no lugar.

    Isa havia desbancado todos os homens que quiseram competir com ela, tornando-se além da dona do maior carisma, a matriarca dali. Sua voz era sempre ouvida por todos e suas vontades... Na maior... Bem... Algumas vezes... Respeitadas.

- Então vai o Ryuu! - Ela disse batendo a mão na mesa, rindo da possibilidade.

- Nem ferrando! Eu indico o Quill!

- Danny!

- Ana!

- Siadk!

    E assim continuaram por um bom tempo, até que a própria Mah se ofereceu e tomou o microfone. Foi uma noite feliz e divertida. Com o avançar das horas o boteco se esvaziou, cada um vencido pelo seu cansaço. Como todos os dias. Amanhã aconteceria tudo de novo.

    Eram felizes na companhia uns dos outros, porém tristes ao notar que vez por outra uma face deixava de ser comum, se tornava especial e depois sumia para sempre. Viviam rindo e discutindo, mas sempre com o medo de o amigo de hoje se tornar um ex-companheiro de caneca, tivesse ela a pior cachaça ou o melhor milk-shake.

    Não sabiam o que lhes esperava.

 

    O maior prédio na Grande Cidanyahna, o que vinha a ser algo realmente contundente, era o Centro de Conveções da Staff, o grupo de conselheiros do Administrador. Naquele colosso eram tomadas as decisões que iriam influenciar as vidas de todos os habitantes da metrópole e consequentemente da pequena Comunidade. Ali estavam as cinco membras do Conselho reunidas em torno de uma mesa: Platiskeh, Anne L., Anne Witter, Kaline Bogard e Aluada. A mesa era encabeçada pelo Administrador da Cidade, Seiji.

- Vocês todas sabem por que estamos aqui.

- Sabemos? - Platiskeh.

- Eu acho que sabemos... - Anne, ambas.

- Perda de tempo... - Kaline.

- Seiji está tentando falar... - Aluada.

- Sabemos, Platiskeh. - A voz de Seiji retumbou. Todos obedeceram, todos sabiam.

    Há alguns dias que haviam recebido uma carta em nome de um grupo cada vez maior na metrópole. O grupo se entitulava "Os Ninjas Vampiros da Vila Oculta do Glitter Brilhoso", e reivindicavam um espaço específico para divulgarem seu trabalho. Apesar de centralizado, os governantes da cidade agiam de forma democrática, levando as opiniões dos cidadãos em consideração. Como o grupo em questão era gigantesco e arrecadava cada vez mais membros, os liderantes se sentiam mais do que obrigados a escutarem a solicitação.

- Eles pedem por mais  divulgação... Apesar de serem o grupo mais popular dos últimos tempos - Disse Kaline, sempre pensativa.

- Não temos muita opção... Vocês sabem como funciona com esse tipo de trabalhador. Se não aceitamos as reivindicações eles arranjam um jeito de se amotinar.

- Motim não é problema para mim - Disse Platiskeh - Todos nós sabemos que eles podem ser mais populares, mas quem realmente trabalha não sairia daqui por nada.

- O problema é que sendo amotinadores ou não, nós precisamos de seu trabalho. - disse Aluada.

- Sim... Grande Cidanyahna chegou em um ponto em que precisa de toda a renda que puder gerar e contamos com essas pessoas para a renda ser suficiente - Anne Witter, carismática.

- Não temos escolha, teremos que atendê-los. Nem vai dar tanto trabalho assim, então... - Anne L, tentando apaziguar as opiniões e chegar em um consenso.

- Teremos trabalho sim Anne L. - Seiji, todas se calaram - Não temos onde colocá-los. Onde teríamos destaque nesse lugar apinhado de gente?

- Bem, na carta deles eles apontam um lugar...

- Anne L, aquilo está fora de questão...

- Está fora de questão apenas se o Seiji disser que está, Anne Witter.

    Silêncio. Seiji pensava. O lugar apontado para a divulgação dos Ninjas Brilhantes era o pequeno terreno comprado há anos pela Staff para a Comunidade, o local de confraternização dos trabalhadores, que estava esquecido há anos. Era verdade que alguns ainda moravam por lá, mas a opção era razoável.

- Seiji, ainda existem pessoas que moram lá e gostam daquele lugar. - Aluada, repentinamente preocupada.

- Poucas. - Anne L., os ânimos começavam a se alterar de forma subliminar.

- Ainda assim... Elas merecem a chance de se manterem no local de que tanto gostam.

- Eu tomei uma decisão. - Seiji, depois de pensar - Os Ninjas Porpurinados, ou qualquer que seja o nome deles, deverão tomar o lugar para si, mas apenas se conseguirem tomá-lo dos que moram lá. Mandem as mensagens.

    E por que Seiji tinha decidido, ninguém discutia.

 

    Era mais um dia de diversão dentro do Boteco. Pera e Ryuu haviam dado uma passada juntos em algumas das principais salas da Comunidade, se divertiram rindo das notas sobre as quedas de energia no Mural das Lamentações, leram trechos engraçados das Histórias de Três Palavras, onde eram montadas frases aleatórias de acordo com a vontade dos moradores e vinham matar a tarde no boteco bebendo um pouco de cerveja escura e gritando 'Yarr' escandalosamente, arrancando risadas. Sabia que era isso que aconteceria, por que era o que acontecia sempre, e era sempre divertido e engraçado. Entraram pela porta grossa, ouvindo o barulho do sino e adentrando o ambiente com a música de rock clássico pesado. Ao que parecia, Ana tinha chego perto demais da Jukebox. No mais, o ambiente continuava o mesmo com as várias conversas aqui e ali e as frequentes discussões por qualquer coisa. Pera sentou-se logo na mesa de Lahy,a moça de ex-cachos que estava sozinha em uma mesa. Ela era o estereótipo do que havia de normal no boteco: seus cabelos era lisos, suas roupas eram normais, uma calça jeans e uma camiseta de banda comum.

- Lahy, minha querida Lahy! Que 'tás fazendo por aqui sozinha moça? - O garoto chegou cheio de sorrisos.

- Não estava esperando por você, o que o torna automaticamente indesejado... - Ryuu cortou a garota no momento em que ela abriu a boca para falar, arrancando risos em volta.

- Você não cansa de me tirar da minha função! - Reclamou o Pera.

- Ele não tem escolha não é? É o que um troll faz! - Disse Lahy, desistindo de retribuir o galanteio.

- Ah, eu vou pra uma mesa onde me queiram! - O garoto se levantou fingindo brabeza, arrancando risadas novamente.

    Ele foi se sentar na mesa de Mah, e logo Diego havia tomado seu lugar.

- Lahy amorzinho!

- Ih... De mal a pior hein, Lahy?

- Coitado dele Ryuu! Como vai, Diego?

- Tudo bem, tudo bem. Tirando as pessoas que teimam em tentar me difamar...

- Mimimimimimimimimimi - falou Ryuu, os três riram.

    Era conhecida a gigantesca rivalidade que existia entre Diego e Ryuu, que em quase tudo tinham opiniões completamente opostas. Ryuu, por ter um gênio mais difícil, não conseguia ignorar as opiniões polêmicas, gerando comentários ácidos sempre que possível e sempre na presença de Diego. Discutiam, as vezes por dias seguidos, mas sempre estavam de volta à mesma mesa, as vezes até dividindo o mesmo caneco na falta de dinheiro. Era uma amizade regada à fogo, como diziam as más línguas.

- Vocês dois realmente se merecem. Querem que eu deixe a mesa? - Disse a garota montando mais uma vez seu sorriso malicioso.

- Não! Quem vai sair sou eu Lahy, você que aguente ele - Disse Ryuu - Eu vou cantar minha música de piratas! - Levantou da mesa com um pulo e foi aplaudido ao apanhar seu bandolim e tomar o palco.

- Aplausos para o Ryuu! - A voz fofa de Isa deixou claras a vontade de todos, que levantaram das cadeiras para festejar mais uma dia de pura alegria dentro do Boteco.

    Até que bateram na porta. Não se batia na porta no boteco, a regra era apenas entrar e fazer parte da festa. Tudo silenciou.

    Isa como representante de todos foi até lá e abriu-a. Do lado de fora, um tipo de pessoa bem conhecida por todos: chamado internamente de stalker. Era um homem baixo e efeminado. Vestia roupas aberrantemente coloridas, cabelos espetados e tinha olhos irrequietos, marcados pela vermelhidão da loucura. Em sua testa brilhava uma testeira feita de algum tipo de metal extremamente polido, que refletia até o brilho dos olhos de quem olhava para ela. Ele cuspiu no chão. No mesmo momento cadeiras foram ao chão, com os movimentos bruscos de quem levantava indignado. Isa era altiva, sem deixar a expressão de delicadeza com um visitante.

- Gostaria de algo mais do que aliviar a saliva grossa em nosso chão? - Ela disse, ajeitando a touca verde.

- ... Mensagem. - Disse o homem (?) apenas.

- Pois então entregue-a, e estaremos felizes em lhe retribuir com um bom copo de qualquer coisa que queira. - Ela disse afastando-se para que o homem entrasse. Dentro do Boteco, internamente todos desmentiram a oferta da garota.

    O homem deixou apenas cair um envelope e sumiu na frente dos olhos de todos. Era um Ninja. Isa fechou a porta e apanhou a carta do chão, antes de cair branca de medo no chão - tinha mantido a pose de coragem por mais tempo do que estava acostumada. A música tornou a tocar, um pouco mais baixa enquanto todos aliviavam a tensão. Mixx logo estava ao lado de Isa, que lia a carta com o rosto sereno. Enquanto ela lia ele limpava o chão, e quando ele terminou ela apenas sussurrou. Novamente a música parou, por que todos entenderam o que ela havia dito. Na verdade, todos já esperavam que ela dissesse algo do tipo.

    "Problemas", ela havia dito.

 

    A mensagem era simples. Com o aval da staff, um grupo intitulado Ninjas Vampiros da Vila Oculta do Glitter Brilhoso iriam tomar posse da Comunidade, e usar o local como ponto de encontro para seus membros. O grupo era gigantesco e iriam popularizar-se facilmente tendo um local fixo para servir como ponto de encontro de seus escritores. Era simples: Saiam ou faremos com que saiam.

- Isso é viadagem! - Disse Pera depois que a Isa terminava de entregar aos outros a mensagem - Essas fãbixas não vão nos tirar daqui! Nós damos a nós mesmos por este lugar e a Staff nos retribui com isso?!

- Nós não damos lucro, é compreensível que eles tenham tomado esta decisão. - Quill tomou a atenção para si do outro lado do salão - O que não torna correta, não é? - Ela completou com uma risada simples e inocente.

- Pro inferno com isso! Eles que venham tomar o lugar da gente!

- Não é como se a gente tivesse chance, Siadk. - Mixx falou, enquanto secava uns copos detrás do balcão.

- Claro que temos! Nós somos infinitamente melhores que eles.

- Mas eles já ganharam uma batalha contra a gente há muito tempo, quando tornaram este lugar o que ele é hoje. - Falou Elyon que sempre ponderava, arrastando seu sotaque.

- Não houve combate. Tudo pode ser resolvido com combate, ué. Até nisso somos melhores - Ryuu de novo, com palavras bonitas.

- É, agora arranje um elmo de corno e uma bigode e vá beber vinho no crânio de seus inimigos. Pelo amor dos Deuses, Ryuu. - Unknown se fazia ouvir. Desta vez ela tinha vindo na forma de gatinho, fazendo par com Danny. Unknown era preta, a outra era branca.

- Nós estamos esquecendo de uma coisa. - Mah com a voz tímida de recém-chegada - Não sei se posso falar isso por que sou a mais nova por aqui, e bastante gente fez mais do que falar palavras bonitas pra ser ouvida. Mas... Nós escrevemos fantasia. É pra isso que serve a nossa escrita, caramba. Nós fugimos da realidade, criamos nossa própria fantasia, e dentro do que queremos, tudo é possível.

- Falou bonito garota. - O sino da porta bateu junto com a voz decidida.

    Entrava a beldade de cabelos rosas, roupas brancas rendadas e o eterno pirulito na boca.

- Não faço a menor idéia de quem seja você, mas gostei do que disse. Fala sério, vocês sabem que nada pode nos ganhar, temos as palavras do nosso lado. Nós fomos foda demais pra eles aguentarem no braço.

    Falava Lucy Gaunt.

    Os abraços foram repelidos com socos e chutes, ditos frescuras pela garota durona que entrava. O Pera recebeu uma mordida mais forte das que estava acostumado a receber. E foi uma noite de festa novamente quando todos receberam de volta a Lucy que há muito tempo não era vista por ali.

- Eles vieram com aquela conversa de humanos malvados de Avatar pra cima da gente, então vamos pagar com a mesma moeda! Que se foda, eles querem destruir este lugar, então não vamos perder nada tentando salvá-lo. - Ela disse, decretando.

- Mas... Lutar...? - Isa, ainda temerosa sentada em seu lugar de destaque.

- Sim, lutar! - Mare, a garota ruiva trocava de música e aumentava o volume novamente - Lembre-se de que aqui eles não vão morrer nem nada Isa. Vamos apenas ferir o ego daqueles filhos de uma puta.

- Lutar é feio. - Quill choramingando.

- Ninguém vai obrigar ninguém a lutar seu veado. - Disse o Pera - Só quem quiser vai ir lá fora e dar um soco na mente daqueles babacas que eles nunca mais vão cogitar a possibilidade de chegar perto daqui de novo. E além do mais, quem não sabe brigar não teria muito que fazer, né?

- Eu acho que seria bom se déssemos um chance de eles dizerem o que quisessem e - 

- CALA BOCA DIEGO - Pera, Ryuu e mais alguns ao mesmo tempo.

 

    Iriam combater em grupos. Ryuu, Pera e Quill (que afinal decidira que a batalha seria uma ótima oportunidade de estrear uma roupa nova de Guerreira Mágica), Maah, Siadk, Danny e Unknown, então Mare, Ana e Lucy. Os outros ficariam provendo suporte de dentro do Boteco. Saíram do boteco como um risco, porém foram notados. Seguiram cada grupo em uma direção para afastá-los dos membros do boteco que não iriam lutar, que afinal eram maioria.

 

    Comunalmente eram chamados de Quadrilátero Amoroso. Mas não se engane pelo 'amoroso', o nome foi apenas fruto de uma noite de conversas regadas a álcool (ou animação) demais, afinal. O primeiro a notar que eram seguidos foi Siadk, que olhou para trás e foi ofuscado pelo brilho demasiado intenso das testeiras do Ninja Porpurinado.

- Eles estão mesmo seguindo a gente? - Ele riu - É até engraçado.

- Vocês vão ter que cuidar de mim viu? - Mah, que ia na frente - Sabem que não sei brigar.

- Amham, uma punk de mosh que não briga. - Unknown comentou, rindo ironicamente.

- Até parece que vocês não estão preocupadas. Vamos brigar gente, que droga! - Danny na forma de um pequeno gatinho filhote e inofensivo, com um meio sorriso.

- Hehe... Não estamos preocupados Danny. - Siadk otimista, ao que todos gargalharam.

    Uma kunai foi arremessada, Siadk rapidamente sacou a katana que segurava pela bainha e a repeliu. Todos eles pararam, quando junto ao Ninja que havia sido detectado apareceram várias outras dezenas, seguido-o. As armas que eles seguravam eram variadas - iam desde kunais a katanas e lanças. Avançaram, com gritos em uma língua estranha e gramaticalmente incorreta. Danny foi a primeira a agir, metamorfoseando-se rapidamente de um gatinho inofensivo a uma gigantesca tigresa. As lâminas não alcançavam sua pele com facilidade, e quando alcançavam, apenas criavam ferimentos irrisórios, alertando a posição do atacante que era retalhado e mastigado com violência. A Katana de Siadk trabalhava incessantemente, atraindo os oponentes um a um e cortando certeiro, fazendo barulhos de sino quando o pequeno chaveiro de panda batia contra a lâmina, atraindo ainda mais oponentes. Unknown mantinha-se longe dos outros, cantando. Suas canções entoadas na voz doce e serena faziam com que os companheiros se sentissem motivados a batalhar mais, com mais força, apenas pelo prazer de continuar a ouvir a bela canção. Os inimigos que a ouviam entravam em transe, sendo abatidos facilmente. Mah era frenética, lutando apenas de posse de um soco inglês, gritando a cada oponente caído, e rindo como uma criança. Trazia uma guitarra alaranjada nas costas. Quando viu que os oponentes à sua volta haviam acabado, guardou o aparato de metal e tomou posse da guitarra, tocando notas pesadas e confusas, tirando a concentração dos inimigos e fazendo-os perder até mesmo o equilíbrio. Os inimigos caídos apenas sumiam com uma poeira brilhante que se dissipava. Era conhecido que os escritores estavam controlando esses 'bonecos' de longe, da Grande Cidanyahna. Era uma de suas maiores marcas: Nunca criar algo original, por isso usavam apenas um modelo que era multiplicado - um exército de alienação.


    Elas não tinham nome, mas se tivessem poderiam ser chamadas de qualquer coisa que tivesse a ver com o Inferno. Mare, Ana Hel Black e Lucy caminhavam calmamente. Quando eram atacadas, uma delas se movia, distribuía um golpe invisível e pronto, transformava o inimigo em poeira brilhante comum.

- Achei que fosse ser mais legal. Queria estripar alguém hoje. - Lucy arrumava os cachos cor de rosa forte.

- Ah vai, 'tá sendo divertido. Aliás Lucy, fazia tempo que não te víamos né? - Mare.

- É, tive umas tretas.

- Homens? - disse Ana, se interessando.

- Nem ferrando. Sei lá, me entediei. Agora parece que o Boteco está mais divertido né?

- Sim, mas ainda tem os inválidos. - Ana de novo, sem poupar palavras.

- Inválidos? Como assim?

- Pessoas nonsense. Concordo com a Ana. Boteco começou a virar creche. 

- Ah, pelo que vi... Dá pra se divertir. Pelo amor de Deus, volto lá depois de eras e entro uma briga por território! Tem como ser mais divertido?!

    Quando terminaram o passeio notaram que não tinha mais ninguém seguindo-as.

- Vamos voltar? Quero beber. - Disse Ana, dando a volta.

    Voltaram andando calmamente.

 

    Pera, Ryuu e Quill haviam tomado a direção do centro, o que talvez tenha atraído mais inimigos. Ao invés de dezenas, haviam centenas seguido-os, sem a menor intenção de se esconder. Os três fugiam, Ryuu taciturno de ter que fugir de simples stalkers, Pera praguejando palavrões que nem sabia ter em seu vocabulário e Quill chorando. Tinham alguns machucados não sérios, mas sabiam que precisariam de uma estratégia no mínimo decente pra tentar ganhar. Ou pelo menos fugir, por que começavam a se cansar, e os conscritos dos Ninjas Vampiros da Vila do Glitter Brilhoso não pareciam sucumbir ao cansaço.  

- Que se foda, vou ser porra louca! - O Pera parou, virando-se.

    O pequeno exército parou junto com ele, os dois companheiros alguns metros depois, olhando com incerteza.

- Você não é foda o suficiente pra ser porra louca nessa hora, sabe? - Disse Renan, tirando um sabre da cintura - Não sozinho.

- Vocês tão querendo dar uma de machos, Quill odeia machos. - A Rainha de Ildr falava com a voz embargada de menininha - Eu vou fugir se ver que iremos perder, ok?

- É justo que nos sacrifiquemos pela Musa do Boteco. Ou não, mas tudo bem. - Renan disse, Pera riu ruidosamente.

- Quill, saiba que a partir de hoje meus comentários sobre sua sexualidade serão algumas vezes piores, ok?

    Ao verem que o pequeno diálogo acabara, talvez pra deixar a coisa mais dramática, os Ninjas atacaram, as centenas convergindo para os três pontos.

    Pera batia em desordem, enfiando os chinelos de madeira em narizes, canelas, espinhas, costelas, as mãos empurrando oponentes contra oponentes, quebrando maxilares, socando estômagos e barrando alguns golpes aleatórios. Ryuu gritava "YARR" em cada golpe, brincava com a ponta do sabre e atingia olhos, gargantas, orelhas. Movia-se rápido em vários lugares ao mesmo tempo. Quill era talvez o mais eficiente, atrapalhando os inimigos e os confundindo com sua aparência inocente. De um pequeno cajado ele conjurava luzes cegantes com as cores do arco-íris e sua magia lançava os oponentes longe.

    Mas perdiam. A vantagem numérica era grande demais, e logo se viram encurralados e machucados demais pelas lâminas dos inimigos.

- Quill, se quiser foge agora. - ofegou Pera - parece que não vou conseguir cumprir minha promessa, mas faz o favor de dizer pra eles que eu já era de forma bonita ok?

- Uma Rainha não foge, e agora eu não ia nem poder fugir muito.

- Bom, a gente morreu de uma forma legal pelo menos. - Ryuu cuspindo.

- A gente ainda não morreu Ryuu, e além do mais acho que seremos os únicos a morrer pra esses stalkers malditos. Isso não tem como ser bom. - Pera brigando, o meio sorriso do velho companheirismo aparecendo no canto da boca.

- Tom, que porra é essa? - A voz feminina se fez ouvir, retumbando e reinando. A primeira fileira de inimigos explodiu.

- Ren... Sama?! - Pera, ao ouvir seu nome um pouco mais verdadeiro, sem acreditar muito no que ouvia. Apenas seus companheiros mais antigos lembravam-se de seu nome.

- O meu nome eu sei seu inútil. O que eu perguntei foi que porra 'tá acontecendo aqui. - A garota de cabelos negros e mechas vermelhas, roupas provocantes e semblante de deusa estava no telhado da construção contra a qual os três estavam encurralados. - Mas eu acho que já entendi.

- Estamos apenas sendo fracos, como sempre. - Pera riu, com o gosto da vitória dançando na língua. Não exatamente uma vitória dele, mas uma vitória que ele gostaria de presenciar.

- Você sabe o que te espera depois que eu terminar né?

- Algumas horas de tortura e sado-masoquismo?

- Alguns dias Tom, alguns dias.

    Ren-sama, chamada de Boneca e Paadz desceu do telhado, e ganhou.

 

    No Boteco dos Escritores,a porta ameaçava cair a qualquer momento, esmurrada pelos invasores. A maior parte dos que haviam ficado ali não gostavam de ou não sabia brigar, o que tornava uma resistência pouco provável. Em volta da porta havia uma parca proteção feita com as mesas.

- É assim. Vamos acabar todos mortos aqui enquanto os trolls saíram pra não sei aonde. E nem sabemos se vão voltar. - Diego quase chorava, irrequieto andando de um lado para outro.

- Se eles ficassem aqui não seria muito melhor... Mas eu acho que ainda temos chances! - Isa se recusava a deixar a moral dos outros baixa, mas seus esforços eram cada vez maiores a cada batida mais forte na porta de madeira.

- Vamos morrer juntos, pelo menos. - Laissa, apesar da pouca idade ajudava a destruir a moral de todos com seu realismo exacerbado.

- Ah, eu vou lá fora. - A voz de Lahy se destacou com o comentário que todos esperavam. Ela era a única troll que havia ficado para trás, talvez para proteger o Boteco.

- Lahy, você é só uma! - Elyon disse, segurando a garota pelos ombros.

- É Lahy! Não seja que nem aqueles outros que querem resolver tudo na ignorância! - Diego ainda mais desesperado.

- Dane-se. - Ela se livrou de todos e foi na direção da porta, retirando calmamente os móveis colocados como barricadas.

    Antes que todos esperassem, Elyon estava junto a ela, ajudando-a. Uma sorriu para outra, e juntas saíram pela porta. Não se ouvia um pio dentro do recinto. Logo começaram os barulhos de brigas e das explosões brilhantes dos Ninjas. Elyon não parecia estar realmente brigando, mas Lahy era um demônio, protegendo a amiga e a entrada do bar com todo seu corpo, enviando os inimigos para o nada com a fúria de quem defende. Mas eles eram muitos, e logo ela foi lançada para dentro do lugar, meio desacordada. Eles começaram a entrar.

    Até que foram lançados para dentro, dando espaço para que outra pessoa entrasse. Ali estavam Palas e Moisés, os Loucos. Ambos com a serenidade de quem sabe o mundo inteiro é louco, não eles. E lutaram, como loucos é claro. Logo haviam outros os ajudando, por que o Boteco era importante. O Boteco era o coração da Comunidade, perder o Boteco era perder tudo.

 

    E assim, eles venceram. A qualidade venceu a quantidade no maior dos clichês, um que porém não poderia ser diferente.

 

    Alguns dias depois de tudo terminado, os moradores da Comunidade comemoravam a sua vitória e a carta que denunciava a derrota dos Ninjas Vampiros da Vila Oculta do Glitter Brilhante. A batalha havia sido documentada, e a história que havia rendido era lida em quase todo o mundo, como um relato de superação e outros conceitos em que ninguém realmente acredita.

- Foi assim mesmo! Ela apareceu, arrebentou os caras e depois eu nem a vi mais! - Pera contava a aparição de Ren para uma pequena multidão de pé em uma mesa. O Boteco estava lotado.

- Eu ainda tenho que compor um música sobre aquilo tudo! Acho que foram os melhores momentos da minha vida... - Ryuu estava quase chorando de tanta emoção, uma das primeiras vezes em que deixava o ceticismo para trás.

    Diego estava cantando e fazendo carões mais entusiasmado do que nunca. Isa e Laissa estavam sendo fofas e inocentes. Unk estava acariciando Danny e ambas dividiam a mesa com Siadk e Mah, em um companheirismo renascido na batalha. Lucy tomava parte nas novas da Comunidade depois de seu tempo fora. Lahy, Elyon, Brenda, Mixx, Quill, Palas e Moisés, Click, Camila, Hugo. Todos relembravam dos melhores momentos, por que a hora de lembrar é a hora da glória, para que as histórias se tornem ainda mais marcantes. 

    E a Comunidade renascia com a popularidade momentânea e gratuita. As pessoas viam que havia diversão na qualidade, e mais uma vez Grande Cidanyahna se enchia de uma esperança mórbida. Haviam pessoas perambulando pelas ruas frequentando e reabrindo estabelecimentos, buscando a diversão em seu melhor hobby. Haviam pessoas novas a se conhecer, pessoas novas com quem conversar e dividir experiências. Os stalkers haveriam sempre, mas com um soco bem dado no ego demorariam a voltar. 

    Mas naquele momento os stalkers eram apenas uma preocupação passada. O que importava é que o coração da Comunidade nunca bateu tão forte. O Boteco dos Escritores estava lá, para quem quisesse um bom copo de qualquer bebida e longas horas de risada. E flames, claro, sempre.

 

 


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Notas finais do capítulo

Agradecimentos a todos os membros que enchem minhas horas de tédio com risadas.

Agradecimentos também à Mah e Ana, que betaram pra mim. :B