A Marca do Pecado escrita por Kyra_Spring


Capítulo 4
Daniel Strathmore




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"Não... Deixe-o em paz... Saia daí... Não!"

Ed acordou sobressaltado, despertado por um grito dentro de sua cabeça. Quando abriu os olhos, porém, descobriu que estava no trem que rumava para Dublin. Olhou sobre os ombros, ainda impressionado pelo sonho que acabara de ter, e então se lembrou que, onde estava, nada do que vira em seu sonho poderia acontecer. "Aqui as coisas são irritantemente banais...", ele pensou, e suspirou, voltando a afundar na poltrona.

O motivo de toda aquela desconfiança era uma pessoa, ou melhor, algo abaixo de uma pessoa, que se denominava Envy. Envy era um homúnculo, um ser sem alma criado alquimicamente, e que tinha o poder de se transformar em qualquer pessoa que quisesse, copiar sua voz, sua aparência, seus trejeitos. Ele havia cruzado a porta junto com Ed, naquela mesma noite, e desde então nunca mais foi visto. O motivo do temor do ex-alquimista era que ele não sabia se Envy havia perdido os poderes ao cruzar a porta, como havia acontecido com ele mesmo.

"Pelo menos ele está desse lado, e não do outro", um pensamento funesto lhe cruzou a mente, antes que pudesse ser detido. "Se Envy voltar a aparecer, é atrás de mim que ele virá, e não do Alphonse ou de qualquer outro dos meus amigos". Mas, quando pensou nisso, um rosto veio à sua mente, um rosto feminino, belo e delicado como uma estátua de mármore.

"Mas e a Tatiana?...". Ele a havia encontrado apenas duas vezes, uma no balcão da farmácia, e outra num passeio comum, mas se flagrara pensando nela várias vezes depois disso. Gostava da companhia dela, das risadas, brincadeiras, da conversa, e mesmo tendo-a visto tão pouco sentia-se como se a conhecesse há anos. Ela lembrava Winry Rockbell, sua amiga protética, que o fazia odiá-la e amá-la ao mesmo tempo, que parecia estar sempre certa, sempre com a razão, e que mesmo que ele agisse como se não a suportasse, era impossível ignorá-la por muito tempo. As duas despertaram nele uma coisa parecida, uma espécie de confusão, como se fosse difícil identificar até onde ia a amizade e o carinho normal por um amigo e a partir de onde esse carinho atingia outro nível. Se algo acontecesse à jovem russa, não sabia como iria agir.

E como seria deixá-la? Se tudo desse certo, talvez nunca mais voltasse para Londres. Por um momento, a idéia de partir se tornou levemente agridoce. Por um lado, voltar para sua terra, rever todas as pessoas de quem gostava, voltar para a alquimia e usá-la pelo bem das pessoas novamente era uma idéia maravilhosa. Mas, por outra, a idéia de abandonar aquela vida calma e tranqüila, sem preocupações com homúnculos ou pedras filosofais, em que o maior dos problemas era o pagamento das pequenas dívidas no final do mês, não tinha o sabor que parecia ter no dia em que chegou ali. Mas era sua obrigação, ele havia jurado voltar, ele havia jurado jamais abandonar o irmão, e se havia uma coisa no mundo que Edward Elric prezava era o cumprimento de suas promessas.

Depois de algum tempo, o trem parou na estação. Descendo lentamente e arrastando a pesada mala, Ed se deparou com um homem alto, de cabelos castanho-claros com fios brancos começando a se insinuar, e um terno preto já meio puído. O homem o encarou longamente, como se estivesse tentando reconhecê-lo. Por fim, disse:

–O senhor é o senhor Elric?

–Sou, sim, como o senhor sabe? – respondeu ele, desconfiado.

–Chequei a lista de passageiros. Havia poucas pessoas, e como você foi o único rapaz a embarcar na estação de Londres, supus que fosse quem eu procuro – o homem se desculpou – Meu nome é Daniel Strathmore, nós temos nos correspondido por carta, não é?

–É sim... o senhor disse que tinha uma informação importante para me dar – concordou Ed, ainda não totalmente convencido da história do outro.

–Podemos ir até o meu laboratório, onde posso lhe mostrar minha descoberta mais recente. Tem um carro nos esperando, siga-me.

Ed tinha um sexto sentido extremamente apurado para problemas, e ele apitava em alerta máximo naquele momento. Não podia dizer se aquele era mesmo o doutor Strathmore, e se era, o que queria dele. Como sabia o seu nome? A história da lista de passageiros não era convincente o bastante. A menos que já o conhecesse antes...

–Olha, senhor, eu preciso me alojar antes – decidido a ganhar tempo, Ed resolveu desconversar – Me dê o seu endereço e eu vou depois.

–Por que não agora? Garanto que você não vai se arrepender – Daniel insistiu – Se for o caso, você pode até se hospedar na minha casa.

Então, ao prestar atenção no homem, viu algo que o deixou repugnado: no pescoço, algo parecido com pedaços de pele se soltava, deixando para trás a carne viva. Daniel percebeu que Ed o observava chocado, e cobriu o pescoço, se desculpando:

–Isso é uma alergia. Um tanto desagradável, eu concordo, mas não é contagiosa...

–Você não é o doutor Strathmore... – disse ele, quase sem voz, recuando alguns passos para trás – Você não é ele... Você é o...

–Não diga besteiras! Venha comigo! – agora já perdendo a paciência, o outro o agarrou pelo pulso e o puxou pela estação.

–ME LARGUE! – Ed puxou o braço com tanta força que a luva de seda ficou para trás, deixando à mostra seu braço de metal. O homem olhou a prótese e estreitou os olhos, depois fez uma careta, como se algo doesse muito, e outro pedaço de pele soltou-se do seu pescoço – VOCÊ NÃO É O DOUTOR STRATHMORE! FIQUE LONGE DE MIM!

Sem pensar duas vezes, Ed largou a mala no chão e disparou a correr sem rumo pelas ruas de Dublin. Olhou para trás duas vezes, tempo suficiente para descobrir que o falso doutor Strathmore permanecia em sua cola, e que se aproximava cada vez mais. Seus piores temores se confirmavam naquele momento: aquele homem que corria atrás dele não era outro senão Envy, o homúnculo que dedicava sua vida a tentar matá-lo.

"Mais um passo.. mais um passo...". Ele começava a ficar sem ar, e o homúnculo parecia ter asas nos pés. Mais alguns passos, e seria alcançado. "Não, cara... não dessa vez!". Subitamente, então, o rapaz se virou e o encarou. Por um minuto, Envy parou sobressaltado, mas logo no segundo seguinte já o golpeou com um soco na cara.

Uma esquiva rápida, e um contra-ataque. Houve um minuto de silêncio tenso, quebrado por uma risada cínica vinda do falso doutor Strathmore:

–Parece que nos encontramos de novo, Edward.

–Por que você não morre? – sibilou Ed, os olhos estreitos – POR QUE NÃO ME DEIXA EM PAZ?

–Achou mesmo que eu não te procuraria? – Envy riu outra vez – Eu já matei você uma vez, se lembra? E adoraria fazer isso de novo.

–O que o faz pensar que vai conseguir dessa vez? – foi a vez de Ed rir – Pelo que vejo, você não está muito melhor que eu. Está fazendo a muda, meu caro? – e apontou para os pedaços de pele que iam caindo pelo chão à medida que Envy andava.

Mas o homúnculo não respondeu. Ao invés disso, saltou ameaçador sobre Ed, que se esquivou rapidamente. Antes de cair, porém, ele se virou, e com uma agilidade insuspeita golpeou o rapaz nas costas, que caiu com um baque surdo no chão. No instante seguinte, Ed se virou e deu uma rasteira em Envy, que caiu, e depois ele se levantou. O homúnculo também se levantou, e os dois começaram a trocar golpes e pontapés.

Edward esquivava e revidava o quanto podia, mas sabia que, numa luta corpo-a-corpo contra o outro, não tinha chance de vencer. Mas havia algo diferente... Ele também estava fraco, como se cruzar a porta tivesse mexido com sua estrutura física e química. Não que isso representasse uma vantagem muito grande, pois Ed, sem alquimia, não era um desafio extraordinário, mas pelo menos ambos estavam em pé de igualdade.

A luta continuava. Cada um dos lados lutava ser dar sinais de desistência, e a cada golpe a sanha assassina de Envy parecia aumentar. Em dado momento, ele berrou:

–DESGRAÇADO! SABE QUE EU NÃO VOU DESISTIR ATÉ ARRANCAR SEU CORAÇÃO FORA!

–PODE CONTINUAR TENTANDO ATÉ CANSAR! – berrou Ed, em resposta, enquanto chutava a cara do outro e o fazia voar até bater contra uma parede.

Aquele último golpe só fez aumentar a fúria do homúnculo metamorfo, que, assim que se recuperou, partiu correndo para cima do alquimista e o jogou no chão. Então, pulou sobre ele e começou a socar a cara do rapaz sem parar, rindo insanamente. Golpeado sem piedade, o outro tentava se esquivar, revidar, fugir, mas não conseguia mover um único músculo. Então, com o coração cheio de pavor, viu Envy puxando do bolso uma faca. O braço de metal, que poderia salvá-lo, estava imobilizado, prensado contra o chão pelo peso do seu próprio corpo. Sua respiração, ofegante e descompassada, era o som mais assustador que já ouvira na vida.

Quando a ponta da faca já perfurava levemente a pele de sua garganta, ouviu o som de freios e de pneus rangendo. Então, tudo aconteceu muito rápido: no instante em que olhou para o lado, viu um carro parando violentamente à sua frente. Sem querer saber de onde o carro viera, aproveitou-se do único instante de distração de Envy e se desvencilhou dele, acertando-o na cabeça com o braço de metal. A porta do carro se abriu, e o rapaz entrou sem nem parar para pensar. No segundo seguinte, o motorista fez o veículo cantar os pneus e disparar à toda pela rua.

–Q-q-quem é o senhor? – a voz dele estava fraca e débil.

–Sou o verdadeiro doutor Strathmore. Aquele desgraçado pegou a minha aparência – respondeu o motorista do carro – A propósito, você deve ser o Edward, não é?

–Como sabe o meu nome? – perguntou Ed, sentindo a cabeça rodar, enquanto sacolejava no banco de trás do carro – E como me encontrou?

–Foi fácil. Lá estava eu, na estação, com um cartaz enorme com o seu nome, e de repente vi outro cara igualzinho a mim – respondeu ele, dando uma risadinha. O rapaz, então, percebeu que estava deitado num cartaz de papelão pardo com o seu nome escrito – A propósito, sua mala está aqui, no porta-malas. Achei que você precisaria dela. Mas, voltando ao assunto, quando vi aquele monstro arrastando-o pelo braço e você correndo, na hora peguei o carro e o segui. Esse trânsito é horrível, por isso não cheguei muito cedo.

–O senhor chegou cedo o suficiente para salvar a minha vida – respondeu ele, tentando sorrir – Ele não vai voltar... ou vai?

–Não se preocupe. Sei que isso é algo que talvez lhe pareça estranho e inacreditável, mas quando ele veio para esse mundo, sua estrutura molecular foi alterada de tal forma que ele não pode mais mudar de forma quando quiser. Quando se transforma em uma pessoa, é obrigado a ficar com a mesma aparência até poder trocar totalmente de pele e formar uma nova, o que leva algumas semanas.

"Estranho e inacreditável, sei...". Ed quase deu uma risada alta, mas não conseguiu. Uma letargia foi tomando conta do seu corpo lentamente, e a última coisa que se lembra de ter visto foi o vulto de um prédio passando rapidamente pela janela, para depois desmaiar.

–Ah, já acordou? Realmente, temos muito o que conversar.

Ed abriu os olhos, confuso. Havia no ar um cheio que ele conhecia muito bem: anti-séptico para arranhões. Sobre a testa, havia qualquer coisa úmida e gelada, e um tecido áspero circundava a sua mão esquerda. Pensou em mexer o braço mecânico para ver se havia alguma peça quebrada, mas mudou de idéia. Sua cabeça doía muito, mas não tanto quanto a mão de carne e osso.

–Onde é que eu estou? E como eu cheguei aqui?

–Eu te trouxe, lembra? – o homem estava sentado numa cadeira, em frente ao sofá onde Ed estava deitado – Foi uma briga feia, não? Ainda bem que a sua prótese não se quebrou.

O rapaz sentiu-se nervoso. Será que ele sabia sobre a prótese? Se soubesse, logo concluiria que ainda não havia tecnologia suficiente para construir uma igual àquela daquele lado da Porta e começaria a fazer perguntas sem resposta.

–É muita originalidade sua, uma prótese metálica – continuou Strathmore – Mais duráveis e resistentes que as de madeira, e muito bem-feita. Dá até a impressão que elas são capazes de se mover!

–Pois é... – o primeiro respondeu, aliviado – Vim aqui porque o senhor disse que tinha algo a me mostrar. Posso ver agora?

–Pode, claro, mas acho que você deveria descansar um pouco mais – disse o outro – Na verdade, quando recebi a sua carta fiquei espantado. Estou tão acostumado a receber críticas que quando vi uma pessoa interessada no meu trabalho pensei que fosse um trote ou coisa assim.

–E o... aquele cara? – o rapaz evitou as palavras "homúnculo" ou "Envy" – O que ele quer com a sua aparência?

–Ele já se passou por um rapaz, um pouco mais jovem que você, querendo ser meu assistente – respondeu o homem, suspirando – Mas, quando o vi largando pedaços da pele por aí, percebi que havia algo errado. Ele queria me usar para voltar para o mundo dele, mas não pude, porque ainda não tinha terminado de aperfeiçoar o Wirbel. A minha sorte é que ele estava fraco demais para tentar me ferir, mas o monstro desapareceu, e eu não soube mais do seu paradeiro... até hoje.

–E o que é Wirbel? – perguntou Ed, começando a ficar interessado. Ele sabia que wirbel era a palavra em alemão para whirl, ou redemoinho – Uma máquina? Uma fórmula?

–Na verdade, é um aparelho capaz de converter energia elétrica naquela usada em círculos de transmutação – respondeu o cientista, com os olhos brilhantes de excitação – Descobri que a única coisa que falta às transmutações é a energia adequada. Cumprindo-se a Lei da Conservação da Massa, nada mais pode dar errado.

A Lei da Conservação da Massa, um princípio criado por um cientista francês chamado Lavoisier, postulava que, numa reação química, a massa dos reagentes deveria ser igual à dos produtos. Ed conhecia isso como Lei da Troca Equivalente, uma mistura de princípio científico e filosofia de vida que os alquimistas seguiam, ou pelo menos deveriam seguir.

–E a sua máquina está pronta? – o rapaz não conseguia conter a empolgação.

–Sim, está, mas como não tenho acesso a uma fonte de energia muito grande, só consigo transmutações pequenas – respondeu o doutor – De qualquer forma, posso te mostrar. Venha comigo.

Andando com um pouco de dificuldade e tomando o cuidado de manter o braço de metal totalmente imóvel, Edward seguiu Daniel, e aproveitou para observar a casa. Era organizada, mas escura e deteriorada. O ar recendia a mofo, e praticamente todos os móveis e portas tinham marcas da ação do bolor ou dos cupins. Eles caminharam primeiro por um cômodo que lembrava uma biblioteca, depois foram por um corredor e desceram uma pequena escada, chegando a um lugar ainda mais escuro que o resto da casa. Havia uma mesa forrada de papéis e peças metálicas, as paredes estavam cobertas de desenhos de círculos de transmutação, havia uma lousa repleta de fórmulas e cálculos e num canto havia qualquer coisa muito grande, coberta por um pano.

–É o seu laboratório? – o alquimista olhou em volta, fascinado – É incrível... – e, ao ver o vulto coberto, acrescentou – Aquilo é o Wirbel?

–Sim, sim! Realmente, você é um rapaz muito inteligente! – Strathmore estava também admiradíssimo pelo interesse do outro – Vou fazer uma demonstração, e espero que seja interessante.

Então, ele puxou o pano que cobria a máquina, e o que estava sob o tecido fez os olhos dourados de Edward brilharem de fascínio. O aparelho consistia em duas barras verticais interligadas entre si por uma rede de finíssimos fios prateados. A rede estendia-se por várias direções, e dois fios mais longos estavam presos a um círculo de transmutação no chão. Conectado ao centro da rede, havia um aparelho complexo, com várias luzes e botões. Uma das barras estava conectada a algo que parecia um gerador elétrico, e a outra estava ligada a uma fornalha.

–Isso é prata? – disse ele, maravilhado com a delicadeza da estrutura.

–Sim. Prata, o melhor condutor de eletricidade e de calor conhecido pelo homem – respondeu Daniel, com reverência – Os fios conduzem a energia elétrica e o calor até esse transformador, que as amplifica da maneira desejada. Então, a energia transformada vem por esses fios até o círculo de transmutação, que também é feito de fios finos de prata. Para usar o círculo, há luvas especiais revestidas de prata e ligadas a uma bateria. O encontro das duas fontes de energia vai promover a transmutação.

Então, o doutor pegou as luvas de cima da mesa e as vestiu, depois acionou pequenos botões nos pulsos e então ligou o Wirbel. Ed podia ouvir o barulho da energia passando pelos fios, e ficou empolgado. Strathmore colocou um punhado de serragem sobre o círculo de prata que estava ligado aos fios e depois tocou as bordas. Assim que isso aconteceu, uma luz começou a emanar do círculo, enquanto as lâmpadas piscavam insanamente. Depois de alguns instantes, Strathmore tirou as mãos do círculo, e no lugar da serragem havia um bloco maciço de madeira.

–Isso é fantástico! – o tom de Ed era de pura veneração – É... incrível! Posso tentar uma vez?

–Ora, não haverá problema! – respondeu o cientista, rindo – Aliás, não sabe o quanto me dá prazer ver alguém tão interessado como você. Só tome cuidado para não tocar no círculo sem proteção, porque os fios estão muitos quentes e eletrizados. Tome, coloque as luvas e ligue-as.

Edward repetiu os mesmos passos do doutor Strathmore, até a parte da serragem. Estava emocionado: aquela seria a primeira vez que realizaria alquimia desde que cruzara a Porta. Então, com cuidado, tocou as bordas do círculo apenas com a mão esquerda. Mas algo aconteceu, algo que não estava previsto...

Seus dedos se colaram de tal forma às linhas prateadas que ele não conseguia se mexer. Esquecendo-se totalmente da presença do doutor Strathmore, ele tentou se soltar com a ajuda da mão direita, que também ficou presa ao círculo. Então, uma carga de energia pareceu atravessar seu corpo, de um jeito que só acontecera uma única vez.

"A porta...", ele pensava, tentando colocar as idéias em ordem. Ele só havia sentido aquela carga destrutiva de energia quando cruzara a porta pela última vez. Abriu os olhos e olhou para a malha de prata da máquina, mas ela deu lugar a um borrão de luz. O som à sua volta parecia o deu um enxame de abelhas furiosas.

E foi então que ele viu, as imagens se sucedendo como num filme...

A porta aberta, e os olhos dentro dela.

Os campos de Rizenbul, banhados pela lua.

O movimento nas ruas da Cidade Central.

Os militares trabalhando no Quartel-General, alheios ao resto.

E, no final, a imagem que ele mais desejou ver durantes todos aqueles anos...

Seu irmão, Alphonse. Jovem. Despreocupado. Olhando para o céu, como se procurasse alguma coisa em especial. Ed via claramente o olhar do irmão, como se esse olhar estivesse sendo direcionado diretamente a ele. Nesse momento, ouviu o barulho de uma chave sendo desligada. Suas mãos se soltaram, e ele caiu no chão, de costas. Instantes depois, sob a luz de uma vela, ele viu o rosto do professor, com uma expressão dura, dizendo:

–Parece que você não me contou tudo, não é, senhor Elric?

Ed levantou-se, ainda atordoado e exausto pelo que tinha acabado de acontecer. Mesmo assim, apoiou-se numa mesa e, com uma voz neutra, começou a contar resumidamente sua história:

–Sempre soube de tudo o que você descreve em suas pesquisas porque eu mesmo já vivi isso. Eu era um alquimista, e vim para cá junto com o Envy, graças a uma transmutação. Preciso descobrir uma maneira de voltar para casa, e pensei que o senhor poderia me ajudar. Infelizmente, sua máquina é fraca demais, e eu não consegui cruzar a porta.

–Entendo... – o doutor parecia ao mesmo tempo espantado e desconfiado – Quer dizer então que você é um alquimista verdadeiro? Então como a alquimia funciona em seu mundo?

–Não precisamos de toda essa parafernália. A energia provém desse mundo – Edward resolveu evitar entrar em detalhes – Basta um círculo e alguém que saiba usá-lo. Alguns alquimistas chegam a nem precisar mais usar o círculo.

–E como eles fazem?

–Acredite, há um preço a se pagar. Eu era um deles. Todos os que tentaram fazer transmutações humanas acabaram perdendo muito mais do que podiam pagar, mas em troca receberam esse dom. É por isso que meu braço é de metal, assim como minha perna esquerda. Quando tentei transformar a serragem em madeira sólida, pude até ver através da porta, mas não cruzá-la. – então, como se um quebra-cabeça terminasse de ser montado em sua cabeça, ele disse lentamente – Mas você já deve saber de tudo isso, não é? A única explicação para você conhecer tanto sobre a alquimia é exatamente o fato de já tê-la visto... Eu estaria errado em supor que nos dez anos que o senhor ficou desaparecido, estava em Amestris, vivendo entre alquimistas?

Silêncio. Depois de alguns instantes de tensão, o professor respondeu, cansado:

–Parece que você me pegou. Sim, eu já estive lá. Foi estranho, quase por acaso. Eu estava trabalhando com correntes elétricas quando um dos fios de alta tensão tocou numa rede condutora que eu estava projetando. Então, eu vi alguma coisa, parecida com uma porta... Anunciei que ia viajar, mas fiquei por aqui mesmo, e consegui repetir o primeiro experimento, com muito mais energia. Alguma coisa me puxou, e acabei indo parar no seu país. Lá, fui me virando e pesquisando, até o dia em que voltei.

–E como o senhor voltou para cá?

–Descobri que, do outro lado, quase nada se fala sobre a porta. Então, como eu já conseguia realizar algumas transmutações, consegui pedras filosofais e abri a porta por conta própria?

–Pedras filosofais? – Ed não estava acostumado a ouvir aquela palavra no plural.

–Sim. Havia um cientista... Tringham, eu acho... Pouco tempo depois que eu cheguei, descobri que ele estava trabalhando com uma substância que aumentava o poder das transmutações. Passei a ser seu assistente, e ele me ensinou a sintetizar a pedra filosofal. Fiz algumas, com a ajuda deles, e deixei guardadas para quando precisasse. Quando a guerra estourou, percebi que era a hora de partir, e usei as pedras para abrir a porta.

–E você achava mesmo que aquilo era uma pedra filosofal? – o outro quase riu – Aquilo é uma pedra à base de água vermelha! Ela aumenta, sim, o poder de um alquimista, e muito, mas nada que se compare à pedra filosofal. E o desgraçado do filho do Tringham roubou a minha identidade e ficou se passando por mim por muito tempo!

–Isso não vem ao caso. Quando cheguei aqui, percebi que, se pudéssemos imitar certas condições que observei nas transmutações de lá, poderíamos realizar a alquimia aqui, mas ninguém me deu ouvidos. Agora, tudo o que preciso é de uma fonte de energia poderosa o bastante para realizar transmutações maiores que bloquinhos de madeiras.

Edward nada disse. Estava pensando numa possibilidade... Podia dar certo ou não, dependendo da sua sorte, mas talvez fosse a sua única chance. Além do mais, pensou também, o doutor corria perigo naquele lugar. Quando Envy se recuperasse, provavelmente iria atrás dele, e o rapaz conhecia o homúnculo o bastante para saber que ele mataria o cientista, se tivesse ser chance.

–Olha... – ele começou, torcendo para não se arrepender disso depois – Em Londres, você pode ter mais estrutura para trabalhar do que aqui. Além do mais, se o homúnculo voltar, ele poderá ir atrás de você. O que acha de vir comigo? Leve sua pesquisa e eu ajudo o senhor no que puder.

–Está falando sério? – Strathmore ergueu uma sobrancelha.

–Claro que estou. O senhor quer terminar a sua pesquisa e eu quero voltar para o meu país. Se nos ajudarmos, todo mundo fica feliz – o primeiro continuou – E então, topa?

–É claro que sim! – o doutor ficou exultante, e apertou a mão de Ed – Sócios, então?

–Sim, sócios – o rapaz também sorriu, e retribuiu o cumprimento – Agora arrume as malas, se dermos sorte poderemos partir amanhã cedo.

No dia seguinte, no primeiro trem para Londres, eles embarcaram, levando um monte de bagagem. O experimento foi gentilmente acomodado na área de carga, desmontado para não quebrar ou amassar. Os contatos de prata torciam-se muito facilmente, o que poderia arruinar totalmente a máquina. Então, precisamente às sete horas da manhã, o trem partiu, apitando e soltando fumaça.

Naquele mesmo lugar, escondido atrás de uma coluna, um vulto, usando um sobretudo longo e um cachecol, observava a partida do trem, com um sentimento estranho nos olhos. Eles iam para Londres, não é? Apesar de seu desejo ser o de ir atrás daqueles dois malditos imediatamente, teve que esperar. Estava passando por uma época dolorosa, e precisaria se recuperar totalmente antes de qualquer coisa. E também, pensou, com um sorriso perverso, dar a eles uma falsa impressão de segurança só tornaria sua vingança mais doce. Ele, então, esperou o trem sumir de vista e, sem olhar para trás, saiu andando, sumindo entre as sombras dos prédios.

 


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