Au Lait escrita por Ikarus


Capítulo 1
Capítulo 1 — Espresso


Notas iniciais do capítulo

OIE eu sei que já faz um tempo que eu não escrevo, mas sei lá, dei um jeito de sentar a bunda na cadeira e escrever alguma coisa.

É uma fic que eu estive pensando em escrever faz um tempo já, mas nunca tive coragem, acho. De qualquer forma, espero que gostem.

Boa leitura!



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/724316/chapter/1

Duas boas horas passaram-se desde o fim oficial do expediente daquela empresa, mas uma luz não se apagava naquele imenso prédio comercial de cinquenta e tantos andares. Olhos fixos na planilha do Excel, nunca desviando da tela e dos números encarceirados naqueles pequenos retângulos; olhos azuis atentos, que quase nunca piscavam e encontravam-se constantemente ressecados e vermelhos. Os dedos longos e magros dançavam sobre as pequenas teclas de um notebook caro, sem nunca cometer um erro ou deslize. Claro que não cometeria erros ao digitar os números dos lucros do mês: Já o fazia havia, quantos, dez anos?

Viktor Nikiforov, o herdeiro e, agora, diretor de uma grande empresa multinacional, fazia os últimos acertos naquela planilha ridiculamente infinita para finalmente ir para casa. Era sempre o primeiro a entrar e o último a sair. Sua nova secretária ficara até um pouco surpresa ao poder confirmar os boatos sobre o chefe pessoalmente, ao perceber que ainda podia ouvir o incessante barulho do teclado ecoar no andar já vazio. Por educação, até bateu na porta do jovem diretor, comunicando-o que já estava indo embora. Apesar da falta de contato visual, Viktor sorriu, assentiu com a cabeça e desejou-lhe um ótimo fim de semana.

Isso foi há duas horas. E a luz solitária daquela janela só finalmente se apagou nos últimos minutos daquele dia. O homem revisou as planilhas, verificou cada linha e coluna antes de permitir-se esticar os braços (com uma estalada aqui e ali nas juntas negligenciadas) e bocejar alto, já que ninguém mais se encontrava num prédio comercial às onze e meia de uma sexta-feira no começo de dezembro.

Fechou o notebook e levantou-se, sentindo o corpo puni-lo por passar mais de dez horas sentado na mesma posição durante cinco dias agora. Já estava sentindo os efeitos do sono provocados pela mudança de fuso-horários desde as oito da noite. Ainda que tivesse chegado de Moscou na segunda, ele era péssimo em lidar com o jetlag. Arrumou a camisa meio amassada, soltou um pouco a gravata e vestiu o paletó, anteriormente pendurado por sobre a cadeira em que esteve sentado todo esse tempo. Mecanicamente pôs o aparelho em sua pasta de couro e certificou-se de que o escritório estava todo organizado. E finalmente permitir-se olhar pela janela e ver a silhueta de prédios num horizonte noturno, um mar de luzes de postes, carros e lâmpadas entre a linha em que o céu se encontrava com o concreto e ele. Viktor Nikiforov, um jovem homem empoleirado no topo do prédio mais alto do centro da cidade, desejando nada mais do que chegar em seu apartamento após uma semana cansativa de trabalho…

Pra quê? Para que outra semana cansativa começasse depois do domingo?

Até quando isso vai continuar…? Era o que ele sempre se perguntava ao final de toda sexta-feira à noite, por dez anos.

Novamente, olhou janela abaixo, e contemplou a vista do concreto, de cima. Só percebeu o quão próximo do vidro estava quando este começou a embaçar ao condensar o ar quente de sua respiração devagar, calculada.

Suspirou, cabisbaixo, a franja caindo para a frente e cobrindo seu olho esquerdo como uma cortina prateada. Forçou-se a parar de pensar num futuro de mesmices infinitas, vestiu o casaco e pegou sua pasta. Apagou as luzes de seu escritório e foi em direção ao elevador. A descida era longa o suficiente para que ele puxasse o celular, abrisse a pasta de fotos e ficasse passando por elas, sem nenhum motivo aparentemente.

Havia um monte de fotos, mas principalmente de seu cachorro, Makkachin. Um poodle velhinho, seu companheiro de longa data. Respirou aliviado ao saber que poderia passar algum tempo com o amigo canino após cinco longos dias de ajustes e planilhas intermináveis.

Chegando ao térreo, percebeu que nevava um pouco. É dezembro, explicou para si mesmo. Apesar de estar acostumado ao frio mais rigoroso de Moscou, não podia evitar encolher-se dentro de seu casaco toda vez que nevava. O cachecol grosso cobria seu pescoço e a metade inferior de seu rosto. Suas mãos estavam devidamente protegidas do frio com luvas de couro. Viktor olhou rapidamente o relógio de marca que agarrava-se a seu pulso direito e percebeu que já era quase meia-noite.

Chegaria em casa e provavelmente se jogaria na cama, com o mesmo sentimento vazio de sempre. Dormiria, enfim, pela exaustão…

Ou poderia fazer algo diferente esta noite. Geralmente, voltava para casa de táxi, mas decidira voltar a pé. Talvez passar pela vizinhança, conhecer um pouco a nova cidade. Ligou o 3G de seu aparelho celular e deixou o aplicativo de mapas mostrar-lhe o caminho mais rápido pelas ruas tranquilas do centro urbano daquela cidade. Carros passavam por ele, alguns pouquíssimos estabelecimentos continuavam abertos naquela sexta-feira…

E então lembrou-se de que não comera nada desde o almoço. Talvez devesse parar em algum lugar para beliscar alguma coisa, beber algo quente e simplesmente relaxar e não pensar em nada. Mas é claro, era sexta-feira de madrugada; quase todos os estabelecimentos abertos àquela hora eram ou bares ou “clubes”, nenhum dos dois sendo lugares lá muito atrativos para Viktor naquele momento.

Uma chuva fria começava a cair sobre o solitário homem, que viu-se obrigado a apressar-se em sua busca, na ausência de um guarda-chuva. Qualquer coisa bastaria naquele momento. E como se alguma força superior houvesse escutado às suas preces resmungadas sob o tecido do cachecol, uma pequena cafeteria revelou-se na esquina de uma rua. Viktor apressou-se e, ao perceber que ainda estava aberta, quase jogou-se porta adentro (para a surpresa do pobre garoto que limpava o chão).

Viktor não podia esconder a frustração de ter sido pêgo no meio de uma chuva gelada em sua respiração meio afobada. Ao olhar para o garoto, agarrado ao esfregão e meio confuso, percebeu que estava prestes a falar algo como “Desculpa, mas estamos fechando”, mas que em algum momento, decidira optar por um “Posso te ajudar?”.

“Me desculpe, mas estava voltando a pé para casa e estava sem guarda-chuva.” Riu, um pouco sem-graça. Percebendo que poderia estar incomodando o jovem ao interroper seu fim de expediente de sexta-feira (já praticamente um sábado), foi se acostumando com a ideia de não pedir nada para beber ou comer. Provavelmente não haveria nada para ser consumido naquela hora ou o equipamento já deveria ter sido desativado e limpo. Seria injusto dar todo aquele trabalho ao pobre garoto que provavelmente só queria ir pra casa.

“Ah, não se preocupe. Fique o tempo que precisar. Logo, a chuva para.” Disse o outro com um sorriso amarelo e genuíno. “Sinta-se à vontade pra se sentar em algum lugar e fazer um pedido, senhor.” E voltou a limpar o chão com seu esfregão.

Dividido entre a fome e a culpa de ter de fazer o barista preparar alguma coisa para ele, Viktor apenas sentou-se encolhido num dos confortáveis sofás próximos à janela que dava para a rua. Alguma música genérica de jazz tocava ao fundo e Viktor tentava processar sua frustração de alguma maneira. Parou para absorver os detalhes do local.

Seus olhos azuis corriam pelas paredes de madeira e pelo chão azulejado. Perto de si, outros três sofás estavam virados para uma mesa de madeira, onde havia algumas revistas. No balcão, havia algumas banquetas para os clientes. Não era um lugar muito grande, mas com certeza era confortável. Algumas mesas mais perto da porta, cadeiras meio velhas…

O jovem parecia exausto, o avental sujo de café, os músculos cansados do antebraço vísiveis no contraste da iluminação fraca do local, um resquício de suor na testa dele. O rosto tinha traços orientais, olhos amendoados por trás das lentes de um óculos, bochechas proeminentes, cabelos negros como o céu da meia-noite. Seu corpo lembrava seu rosto: vagamente redondo. Era gordinho, conseguia ver a saliência de uma pança sob o avental e o uniforme da cafeteria. O pouco que conseguia lembrar de sua voz era o tom meio doce, e até tímido.

Olhou janela afora. Não queria incomodar o garoto, de jeito nenhum. Poderia aguentar firme até a chuva acabar e voltaria para casa, onde… faria um omelete qualquer, já que não sabia cozinhar e—

“O que vocês têm pra comer?” Perguntou sem cerimônias.

“Hm… Ainda tenho um croissant, um muffin de banana com gotas de chocolate…” O asiático parou de limpar o chão para pensar.

“Eu gostaria de pedir o croissant, então.”

“Sua bebida? Recomendo o chocolate quente, ou um café. Temos capuccino, frappuccino…”

“Hã… Acho que vou de capuccino.”

“Ok. Me dê uns minutinhos e já trago pra você.” Disse ele com um sorriso enquanto levava o equipamento de limpeza para os fundos, voltando para o balcão.

Viktor observou o garoto trabalhando e dificilmente mostrando qualquer sinal de desânimo enquanto trabalhava sozinho à meia-noite de uma sexta para sábado. Ele cantarolava baixo junto com a melodia do piano do jazz que tocava na cafeteria, enquanto eficientemente colocava o croissant para esquentar e fazia o café do empresário. O cheiro da bebida quente lentamente tomava-o, assegurando-lhe de que aquela foi uma ótima escolha. Ajeitou-se no sofá e contemplou a vista da janela novamente.

“Você trabalha sozinho?” Perguntou sem pensar, puxando algum papo qualquer para que não ficasse mergulhado naquele silêncio incômodo.

“Na verdade, não. Sou o gerente e responsável pelo funcionamento daqui.” Ele riu, enquanto a máquina de café operava. “Sabe… Primeiro a entrar, último a sair.”

“Sei bem como é isso.” Disse, não conseguindo esconder o tom meio melancólico da frase.

“É novo na cidade?” O barista perguntou, logo percebendo que poderia ter sido uma pergunta pessoal demais para se fazer àquele estranho homem de terno à meia-noite de uma sexta para um sábado. “É-É que eu moro por aqui, sabe? Acho que nunca te vi pela cidade.” A verdade é que queria denotar o estranho sotaque que discretamente permeava as palavras do cliente, nunca tendo a coragem de chegar a comentar nada a respeito.

“Ah. Cheguei na segunda. É minha primeira semana aqui.”

E, novamente, mergulharam num silêncio estranho, preenchido pelo jazz e o apito do pequeno forno. “O senhor vai levar para viagem? A chuva já parou.”

“A-Ah… Sim, por favor.” Respondeu o russo, levantando-se e indo em direção ao balcão. Puxou a carteira do bolso da calça, já separando algumas notas.

“Seu nome…?”

“Viktor. Com ‘k’.”

Viktor observou o garoto escrever algo (provavelmente seu nome) no copo de plástico de café, podendo perceber detalhes que não vira antes por estar sentado longe dele. Seus óculos tinham armações azuis. Suas mãos pareciam macias, com dedos gordinhos e ossos praticamente imperceptíveis sob a pele. Havia bandeides nas pontas de alguns dedos.

O barista entregou-lhe então o copo com o seu café e uma pequena sacolinha, com um leve cheiro amanteigado. Tudo isso enquanto sorria e trocava o que estava sendo o primeiro contato visual direto com o empresário naquela noite. Eram olhos marrons e mornos, como chocolate quente; uma bela combinação com aquele sorriso sereno e estranhamente amigável.

Viktor sorriu de volta e agradeceu silenciosamente antes de pagar-lhe a quantia certa e caminhar em direção à saída.

Seguiu o mapa no celular e finalmente voltou para casa, completamente incapaz de pensar em qualquer outra coisa que não fosse esse momento na cafeteria no meio da noite e no garoto que conseguia sorrir mesmo tendo que trabalhar até a meia-noite de uma sexta pra sábado. De vez em quando dava um gole ou outro na bebida quente.

Finalmente em casa, foi recebido por Makkachin, que já esperava por seu dono ao pé da porta e abanando o rabo. Viktor carinhosamente fez um carinho em sua cabeça, indo para seu quarto para se trocar rapidamente e finalmente tirar a barriga da miséria.

Enquanto comia seu croissant no silêncio da madrugada, deitado sobre o sofá com seu poodle, Viktor percebeu o calor dos olhos do garoto permear-lhe a tez; e embora as luzes estivessem apagadas, podia sentir a vermelhidão tomar conta de seu rosto. E não era culpa do café quente que bebia.

Sob a luz fraca dos postes da rua, ele lia e relia seu nome escrito no copo de café. Todavia, era uma pena ele não saber o nome do japonês dos olhos chocolate.

Naquela noite, Makkachin sentia uma dose extra de afeto no cafuné atrás de sua orelha.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

cara ele tá tão na sua



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Au Lait" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.