09h54 da noite, saí do meu gabinete, e vi entrando pela porta de emergências várias pessoas com sangue a escorrer pela roupa, e outras sendo carregadas por enfermeiros, a sair de uma ambulância. Fui a correr para uma das pessoas, já quase perdendo os sentidos, com imenso sangue no peito. Lembro-me de ter olhado nos olhos dessa pessoa, de carrega-la nos meus braços, e de ter lido a seguinte frase dos seus lábios: ''eu sou tudo que eles têm''. 

E só assim me apercebi que atrás dela haviam duas crianças, muito parecidas com ela, com lágrimas nos olhos, e com ferimentos que aparentavam não ser graves. Rapidamente, o resto dos enfermeiros tiraram-na dos meus braços e a levaram para um dos quartos. Mas naquele momento eu já sabia que aquela mulher ia morrer.  

Eu trabalhava como médica há 4 anos, mas para situações como aquela eu nunca estava preparada. Nunca era fácil dizer à família que a pessoa estava morta, nunca era fácil ver a família chorar. Eu olhei para as crianças, que olhavam para mim também, como se estivessem a colocar nos meus braços a vida daquela que parecia ser sua mãe. 

Vi mais pessoas a atravessar a porta do hospital, em estados muito similares ao daquela mulher.  

— O quê que aconteceu?- perguntei à enfermeira que estava atrás de mim.

— Um acidente. Um camião que chocou com mais três carros. Quatro mortos e o resto está tudo aqui. 

Voltei a olhar a minha volta, e voltei a encarar a face daquelas duas crianças, que choravam muito. Não sabia o que fazer. Eu estava treinada para aquilo, mas eu não sabia o que fazer. Decidi ir ver a situação dos outros pacientes. Caminhei pelo corredor do andar, olhei o relógio, eram exatamente 10h10. O meu turno terminava as 11h00 da noite. Quis ir até ao quarto daquela senhora, mas hesitei. Não queria me envolver, não queria ir para casa com pensamentos ruins. Não naquela noite. 

Voltei para o meu gabinete, e ali passei o resto do turno. Quando sai, parecia que as coisas já estavam mais calmas. Saí pela porta dos fundos, pois ver aquelas duas crianças iria deixar-me pior do que já estava. 

Estava frio, meados de Dezembro. Subi pro meu carro, peguei no telefone e vi as 7 chamadas não atendidas da minha mãe. Voltei a guardar o telefone, e fui pra casa. Eu vivia num apartamento, sozinha. Abri a porta do prédio, vi o que estava no correio. Fatura de compras, e duas cartas. Uma dizendo ''Convite'' e a outra sem nada escrito. 

Subi, abri a porta do apartamento, fui pro quarto e deitei na cama como se não houvesse amanhã. Não era um cansaço físico, era um cansaço psicologico. Finalmente sentei, e abri a carta que dizia ''convite''. Era o convite de casamento da minha irmã, Luisa. Não a via desde o natal passado. Na verdade, não via ninguém da minha família desde o natal. Havia muita raiva, muito rancor em mim. Tomei um duche e dormi. Dormi como se o amanhã fosse um dia inexistente para mim.