The Call escrita por Pat Black


Capítulo 1
O amor, quando se revela, não se sabe revelar.


Notas iniciais do capítulo

O nome do capítulo é o início do poema "Presságio" de Fernando Pessoa.



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"You and me

We used to be together

Everyday together always

I really feel

That I'm losing my best friend

I can't believe this could be the end

It looks as though you're letting go

And if it's real Well I don't want to know…"

 

A música do No Doubt tocava no rádio. Quase toda a manhã daquele outono a rádio me acordava com a maldita, mas não foi isso que me despertou realmente.

Cobri a cabeça e tentei não me mexer, mas o infeliz do telefone não parou.

Quem ligaria a essa hora da manhã? Pensei, ainda sonolento, enfiando a cara no travesseiro e gemendo de leve.

Meus pais estavam viajando e eu estava por minha conta e risco. Claro que eles não sabiam que eu tinha quebrado o pé dois dias atrás. Caso tivesse lhes avisado, amorosos como eram, teriam voltado imediatamente.

Diferente do pai indiferente de meu melhor amigo, os meus coroas eram pessoas que demonstravam todo o amor que sentiam por nós.

Sim, infelizmente, tenho um irmão. Um capetinha que quase nunca me deixa em paz.

Fechei os olhos, satisfeito, porque o telefone tinha parado de tocar e só podia ouvia a Gwen a cantar, e sua voz era tudo o que um garoto podia sonhar.

O telefone voltou a tocar e gemi novamente, ergui a cabeça, olhei para o relógio e me assombrei.

Oito da manhã?

Droga! Estava atrasado.

Levantei, procurei as muletas, capenguei até o banheiro, e Jeff estava saindo dali.

— O telefone está tocando — ele me avisou o óbvio.

— Por que não atendeu?

— Estava no banheiro.

— Idiota.

— Babaca.

Aquele era nosso momento matinal de carinho fraternal.

Desviei do banheiro e cacei o telefone, atendi e a ligação caiu.

Pensei que poderia ser meus pais, mas eles estavam em um cruzeiro, não iam se preocupar em ligar às oito da manhã.

Tomei banho fazendo muito de acrobacia e corri para a cozinha.

— Estou com fome.

— Você tem treze anos, Jeff. Já sabe preparar seu próprio café da manhã.

— Gosto de suas panquecas.

— Não vai rolar — informei.

— E o que vou comer? 

Coloquei uma caixa de cereal à sua frente, depois a do leite.

— Bom apetite.

— Estou em fase de crescimento, Rick, preciso de uma refeição balanceada, rica em...

— Estou atrasado. Coma seu cereal e não enche — falei entregando-lhe uma colher.

— A mamãe não vai gostar de saber que você me fez passar fome.

— Jeff, meu pé está me matando, não começa.

Meu irmão calou e fez cara de culpado, agarrou a caixa do cereal, despejou uma grande quantidade no prato, junto com o leite, e começou a comer.

Bom. Pensei. O pestinha sabia quando não devia passar dos limites. Afinal, se tinha quebrado o pé, a culpa foi toda dele.

Olhei pela janela e o céu estava feio. Liguei a TV, apenas para saber a previsão do tempo enquanto esperava que Jeff terminasse o desjejum, aproveitando para tomar um pouco do leite também. 

“...Ontem tivemos uma das piores tempestades dos últimos anos aqui em Atlanta. Alguns rios transbordaram na zona leste da cidade e um raio atingiu as imediações de Candler...”

Mudei do canal das notícias e zapeei até encontrar o que queria da previsão do tempo.

Chuva. Foi o que a previsão anunciou. O outono estava sendo o mais chuvoso dos últimos anos.

Olhei para o relógio e já estava no meu limite. Teria uma prova às nove, e ainda deveria deixar Jeff na escola.

— Vamos, pestinha.

— Ainda estou comendo o maldito cereal.

— Olha a boca.

— Ah, tá! Como se você se importasse.

— Está certo. Não me importo. — Era verdade. — Vamos!

Arranquei o prato da frente dele, a colher de sua mão e joguei tudo na pia.

Ele me seguiu resmungando, mas me ajudou carregando minha mochila até chegarmos ao carro. Quando saíamos do elevador, nossa vizinha da frente, Sra. Hernandes, chegava de seu emprego no hospital.

— Bom dia, garotos.

— Boa dia, Sra. Hernandes — dissemos juntos.

Segurei a porta para que ela entrasse,  e o Jeff a ajudou com a sacola de compras. Ela já devia ter mais de cinqüenta anos, era viúva e nunca teve filhos. Nossa mãe e ela se tornaram boas amigas. O que era bom, porque a minha mãe se sentia muito sozinha desde que se mudou para Atlanta.

Nos despedimos de nossa vizinha e seguimos para o carro do meu pai, uma ranger antiga.

— Acha que consegue dirigir com esse pé? — Jeff me perguntou avaliando o gesso quando entrei e coloquei o cinto.

— Você me perguntou isso ontem e no dia anterior também.

— Só quero te chatear.

— Honesto? Continue assim — falei manobrando para sair.

Meu pé não estava completamente engessado, por isso não tinha problema com os pedais, mesmo assim, dirigi abaixo do limite.

Deixei Jeff no fundamental e segui para o centro. Dei graças, porque o prédio onde cursava direito, a Universidade da Geórgia, não possuía escadarias e contava com elevadores confiáveis.

Cheguei à classe do Prof.º Horvart cinco minutos antes dele distribuir as provas.

— Rick, por que demorou tanto, seu desgraçado? — Shane me perguntou em um sussurro.

— Dormi demais — falei no mesmo tom, tirando da mochila o que iria precisar e a jogando ao lado das muletas, no canto do degrau.

Shane tinha guardado o lugar da ponta para mim, o que não era algo usual, geralmente eu guardava um lugar para ele.

— E o pé?

— Uma desgraça só — respondi, e não estava brincando.

— Acho que foi o remédio.

— Que fez o quê?

— Você dormir demais.

— Virou médico agora?

— Sempre foi minha segunda opção — Shane soltou dando uma piscada para a ruiva duas fileiras a nossa frente.

— Policial.

— O quê? — ele perguntou voltando a me encarar.

— Você disse que queria ser policial.

— Isso quando eu tinha dez anos — ele falou e agarrou o maço de avaliações, tirando a dele, dando-me a minha e esticando o braço para trás, passando o resto adiante.

— Dezesseis. Você tinha dezesseis.

— Cara, eu quis ser tanta coisa, que nem sei como vim parar nessa maldita faculdade.

— Isso aconteceu porque você me ama e não queria se separar de mim — falei, e ele sorriu sacana, aproximando-se e fazendo uma cara safada.

— Isso mesmo, amor. Não posso viver longe de você. Esses seus olhos azuis são a perdição de qualquer homem.

— Deixa de ser tapado — disse e o empurrei quando ele tentou enfiar a cara no meu pescoço.

Ele se afastou rindo e olhou novamente para a ruiva, e ela ria de nós, porque todos conheciam o Shane e sabiam que ele era o cara mais brincalhão que apareceu no campus em anos.

— Pensei que estava com a Andrea?! — meio que perguntei e afirmei, porque o Shane era sem vergonha, mas também um cara fiel.

Aquilo de dar mole para outra garota, enquanto tinha namorada, não era coisa dele.

— Terminamos — ele disparou, rabiscando algo no meu bloco de papel, rasgando metade da folha, amassando em uma bola e atirando na direção da ruiva.

— O que é isso? — perguntei a rir. — Voltamos ao colegial?

— Não enche! — ele respondeu e se inclinou sobre a mesa, apoiando os cotovelos ali, o queixo nas mãos entrelaçadas, a fitar a ruiva com os olhos a brilhar.

A porra do meu herói.

Queria ser como Shane, mas eu ainda possuía muito daquelas reservas de garoto criado no interior, meio nerd e um mundo de tímido. Só me tornei um pouco mais descolado, porque eu e o Shane nos conhecíamos desde sempre e ele não me abandonou quando entramos na adolescência e se tornou popular.

Olhei para a ruiva e ela abria o papel amassado, leu o que o desgraçado escreveu ali, sorriu e olhou para ele a confirmar em um aceno enquanto ajeitava o cabelo, um tanto envergonhada.

— Isso! — Shane soprou satisfeito e mordeu o lábio inferior, encarando-me e piscando sacana.

— Como você faz isso?

— Sex appeal, meu amigo.

E era verdade.

Mesmo sendo homem, podia compreender o apelo que Shane possuía com o mundo a sua volta. Ele era o tipo de pessoa que atraía pessoas, fosse de forma amorosa, ou apenas como amigo, isso sem muito de esforço, além de sua personalidade marcante.

O Profº. Horvart apagou e acendeu as luzes, e o burburinho morreu. O velho olhou na direção de toda a classe, varreu nossos rostos como se nos conhecesse intimamente e disse apenas uma palavra:

— Comecem.

Era nosso professor mais barra pesada, daquele tipo que te faz respeitá-lo apenas com um de seus olhares severos.

A avaliação foi difícil, como sempre desde que começamos o curso, mas me saí bem. Shane disse que a dele foi uma negação. Mas, pelo que conversamos depois, percebi que ele tinha mandado muito bem também.

Shane tinha conseguido bolsa integral por causa dos esportes, e isso era o único que podia abalar sua alta estima. Ele se achava pior do que era academicamente. Tinha uma inteligência acima da média, mas parecia não se dar o valor. Foi necessário muito esforço para que meu melhor amigo percebesse que era inteligente, mas isso ainda o abalava, mesmo que Shane não demonstrasse.

Eu? Nunca fui nenhum gênio, mas consegui bolsa parcial — nunca fui bom em esportes —, no que meus pais se mudaram para Atlanta para me apoiar.

Shane morava no campus, enquanto meus pais alugaram um apartamento na parte leste da cidade. O bairro não era dos melhores, mas ainda não se via tão decadente como algumas áreas próximas a nossa.

Nos despedimos pouco antes das quatro da tarde, ele tinha treino e eu iria buscar o Jeff.

— Vamos sair nesse fim de semana?

— Não posso, preciso cuidar do Jeff — respondi ainda sem entrar no carro.

— Merda, Rick! O garoto tem treze anos, pode ficar sozinho uma noite de sábado.

— Se você quiser que meus pais voltem para uma casa arruinada...

Falei e dei de ombros.

— Ele ainda não cresceu, não é?

— Ele pensa que ainda tem dez.

— Deixa ele descobrir as garotas — Shane soltou e riu.

Ri também, mas não por dentro.

O Jeff e as garotas? Isso não ia acontecer. Eu sabia, meus pais também, apenas o Shane não tinha percebido, porque ele e o Jeff não se davam muito bem.

Peguei meu irmão caçula na escola, e ele me azucrinou até chegarmos em casa, contando-me cada pormenor de seu dia — achei que tinha contado — como se eu me importasse.

A diferença de idade entre nós tornava nossa convivência um desafio diário de paciência e autodomínio. Se eu não fosse um cara pacífico, teria matado o garoto quando ele tinha seis anos e destruiu todos os meus cassetes.

— Qual vai ser o jantar?

— São cinco da tarde.

— Roubaram meu dinheiro do almoço e você me deixou com fome pela manhã.

O quê?

— Te roubaram novamente?

— Um daqueles babacas da escola.

— Disse a mamãe que eles tinham parado de mexer com você.

— Eu menti. E não quero falar sobre isso — ele disse e partiu para o quarto, fechou a porta, depois abriu novamente. — Pode ser pizza?

Olhei para meu irmão, e ele tinha aquele ar de quem poderia chorar a qualquer momento.

Senti por ele.

Alguém como Jeff ainda passaria por muito pela vida. Problemas que nunca terminariam. Mesmo sendo um pestinha, alguém que eu queria estrangular quase todos os dias, era meu irmão menor e eu o amava.

— Vou pedir. Mas não conta a mamãe.

Eu tinha prometido a coroa que não ia me empanturrar, nem ao Jeff, com besteiras, e ela me mataria se soubesse que foi praticamente o que comemos desde que eles saíram de férias há uma semana.

Fui para o quarto, larguei as muletas contra uma poltrona e me joguei na cama, acabado.

Acho que cochilei.

Acordei assustado, olhei pela janela e já tinha anoitecido. Agarrei o telefone, queria discar para a pizzaria, a bendita ficava no térreo de nosso prédio, mas alguém estava na linha.

É da pizzaria do Joe’s? — uma voz feminina, levemente rouca e jovial, perguntou a rir do outro lado. — Oi? Alô?

— Não, aqui não é da pizzaria — respondi passando a mão pelo rosto.

Além disso, a pizzaria no meu prédio se chamava Mama’s.

Gente! Detesto quando isso acontece.

— O quê? — perguntei ainda sonolento.

Ligar para o número errado — ela falou e riu.

— Dificilmente acontece comigo — mencionei e um relâmpago cruzou o céu.

Contei mentalmente até onze, antes de ouvir o barulho abafado de um...

Isso foi um trovão? — ela me perguntou parecendo muito curiosa.

— Foi sim.

Ontem não dormi direito por causa deles, parecia que os deuses estavam a guerrear pelo Olimpo, ou algo do tipo. Mas hoje? Nada. O céu está tão limpo aqui que nem acredito que ontem sofri com aquela tempestade.

— Estava tão acabado ontem que nem percebi a tempestade. Mas nessa parte da cidade vamos ter chuva novamente. Não demora a chegar aqui.

De repente me dei conta que estava a conversar com uma estranha sem nem mesmo saber por quê.

— Bem... — falei sem jeito, não imaginando como finalizar aquela ligação. – Você deve estar querendo desligar para tentar a pizzaria.

O quê? Ah, não. Está tudo bem. Minha amiga vai acabar ligando e fazendo o pedido.

Olhei para o aparelho, com certeza, com cara de quem não está entendendo nada.

— Certo...

Você deve estar achando que sou um tanto louca — ela estava certa sobre isso. — Geralmente não converso com estranhos, mas a festa aqui está uma chatice, e esse telefonema foi a coisa mais emocionante que aconteceu essa noite.

— Você está em um velório? — perguntei, porque não achava que conversar comigo pudesse ser taxado como algo emocionante.

Talvez se fosse o Shane...

Você é do tipo auto-depreciativo, não é? — ela perguntou, e acabei me questionando sobre isso.

É... Sempre fui um pouco.

Talvez tivesse algo a ver com o fato de sempre estar à sombra da popularidade do Shane. Não que eu tivesse ciúmes dele. Mas, na fatal comparação, eu acabava percebendo todas as minhas deficiências.

— Sou uma pessoa realista — falei por fim. — Não sou o tipo de cara com quem uma estranha vai se interessar em conversar pelo telefone.

Até agora você está se saindo muito bem.

— Se a noite está uma droga, qualquer coisa fora do normal vai ser um atrativo por algum tempo.

Garoto, você é como aquele desenho antigo com a hiena que só vê o lado ruim das coisas.

— Com certeza — falei e ri.

Pelo menos, tem senso de humor.

Alguém bateu na porta do meu quarto, e logo a única pessoa possível abriu esta um tanto e enfiou a cara pela fresta, encarando-me zangado.

— Rick, e a pizza?

— Estou no telefone moleque — resondi jogando um dos travesseiros na direção dele. — Peça a merda da pizza você mesmo.

— Babaca — ele soltou batendo a porta e saindo.

Aquilo de sentir pena do Jeff nunca durava muito.

— Alô? — chamei voltando para o aparelho.

Então, seu nome é Rick? — ela falou após um momento de silêncio.

— É sim.

Diminutivo de Richard?

— Não. É só Rick mesmo — respondi um tanto envergonhado.

Acredito que agora terei que me apresentar — ela falou um tanto mais humorada. — Achei que iríamos nos despedir como estranhos.

— E destruir uma amizade tão linda antes dela nascer? — questionei com algo que, achei, Shane teria dito.

Bem... não com o mesmo grau de carisma que ele; nem de perto.

Você pode estar certo. É uma boa ideia. Nunca fiz uma amizade por telefone. — Parecia animada com a ideia. — Sabe, é cientificamente comprovado que nos sentimos mais à vontade para conversar abertamente com as pessoas quando não há contato físico.

— De onde tirou isso? — perguntei sem acreditar naquela ideia.

Todas as redes sociais estão aí para comprovar isso.

— O que quer dizer... — Outro trovão me interrompeu, dessa vez mais próximo.

Rick?

— Oi?

Esse foi forte, hein?

— E me pegou de surpresa também — brinquei olhando pela janela, notando, só então, que a chuva castigava o vidro.

Sobre a nossa amizade...

— Costuma fazer amizade com estranhos?

Você parece um cara legal, por que não?

— Por quê? Porque ainda não me disse seu nome — pontuei e esperei.

Lane — Ela contou? e o nome soava exatamente como ela deveria ser.

— Prazer, Lane.

É bom te conhecer também, Rick.


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Notas finais do capítulo

Bem, foi isso. Amanhã posto o segundo capítulo.



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