O belo adormecido. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 1
Festa, junk food e maldições.


Notas iniciais do capítulo

Não faço ideia se minha comédia "presta", mas eu me diverti escrevendo!

E meu irmão me ajudou, e também se divertiu!

Meio longo, mas compensa!

Aproveite!



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                Era uma vez um reino. Simples assim, apenas um reino. Não era o reino mais belo, não era o reino mais rico, não era o reino mais poderoso, era só um reino decente. Ninguém passava fome e o crime era controlado. Entretanto, nesse lugar tão ordinário, aconteceu algo inesperado: o nascimento do príncipe, herdeiro único da família real.

                Não foi exatamente o nascimento o evento inesperado, obviamente. A rainha, mais cedo ou mais tarde, teria que perceber que algo estava crescendo em seu ventre, certo? Ela podia não ser a mulher mais brilhante, mas não era burra. Felizmente, o parto foi relativamente tranquilo. Claro que o rei esperou em outro cômodo por não aguentar ver sangue e a rainha passou boa parte do tempo gritando xingamentos sobre ele, por ser frouxo, ou mesmo sobre a dor em si... Mas isso é perfeitamente compreensível, não? No fim, tudo deu certo e nasceu um menininho, o primeiro filho do casal e, mesmo que não soubessem na época, o único filho que teriam.

                Como mandava a tradição, trataram de preparar uma grande festa para comemorar assim que o menino veio ao mundo (isso é, assim que a raiva da rainha passou e o rei acordou depois de desmaiar por ver o lençol manchado de sangue) e, já na noite seguinte, o salão estava decorado e todos no reino receberam um convite... Digo, quase todos, mas voltamos nesse assunto depois.

                Com apenas um dia de vida, o garoto recebeu pilhas de presentes e foi o homenageado da maior festa que viu na vida... Se bem que, tecnicamente, era a única festa que ele viu na vida... Mas você entendeu. A decoração estava linda, o banquete era uma delícia, os convidados estavam se divertindo, a rainha “recém-parida” cumprimentava alegremente os convidados, mas evitava passar muito tempo em pé por precisar descansar e o rei se gabava para os amigos de ter sido forte e apoiado sua esposa durante o momento delicado do parto, que fragiliza qualquer mulher.

                Ao fim da tarde, quando o sol se punha e o céu se coloria com belos tons de vermelho, chegou o ponto alto da festa: apresentar o recém-nascido a todos do reino. Seu nome era Belo e todos estavam ansiosos para vê-lo. Porém, quando o momento finalmente chegou, foi uma surpresa geral.

                Belo era um bebê esquisito, seu nariz era de batata, suas orelhas eram grandes demais e pareciam se projetar um pouco para frente, seus olhos eram arregalados e de uma cor indefinida, seus membros eram finos e desengonçados. Ninguém sabia como reagir a tal figura... Felizmente, não precisaram, pois justamente nessa hora a grande porta do salão foi explodida e um bruxo furioso o adentrou, causando extremo alívio aos convidados, que não precisavam mais arrumar elogios falsos àquele bebê peculiar e se contentaram em gritar de horror e arregalar os olhos.

                —COMO SE ATREVERAM? COMO SE ATREVERAM? COMO? —Ele repetia irado olhando ameaçadoramente para todos da festa. —TODOS ESTÃO AQUI E NINGUÉM ME CONVIDOU! —Exclamou e cruzou os braços, emburrado.

                —A-Ah... O-Olá, Senhor Malévolo, d-desculpe, é que preparamos tudo tão rápido, fica difícil lembrar de todo mundo... Mas s-sinta-se à vontade para aproveitar a festa. —O rei tentou apaziguar a situação, mesmo que sua vontade fosse correr e se esconder debaixo da cama real.

                —AGORA NÃO ADIANTA MAIS! VOCÊS TODOS VÃO PAGAR! —Ele gritou e, se possível, a expressão mal-humorada ficou ainda mais evidente. Todos os convidados estremeceram ao ouvir isso.

                Malev Ollo, ou Malévolo, como a maioria o chamava, era o melhor bruxo do reino, não que o reino tivesse muitos bruxos... Mas ele também era o melhor bruxo entre os outros reinos, então, sim, ele era realmente bom. A despeito do apelido, Malev não era exatamente malvado, na verdade ele até ajudava pessoas vez ou outras, quando estava de bom humor. Esse era o problema, o humor.

Malev era um bruxo extremamente temperamental, infantil e impulsivo, sendo assim, nunca sabiam o que esperar dele. Quando estava feliz, reanimava flores mortas simplesmente para “alegrar a paisagem”, curava algumas doenças sem pedir nada em troca, dava gorjeta para o atendente no restaurante... Entretanto, quando estava bravo, transformava pessoas em pedra simplesmente porque elas estavam em seu caminho, fazia a terra ficar estéril por onde passasse e assustava criancinhas a seu bel prazer. Poucos conseguiam domar seu temperamento tempestuoso.

No momento, o bruxo estava furioso e, como você pode imaginar, nenhuma dessas pessoas estava na festa.

—Para de gritar, sem noção, vai acabar acordando o bebê! —A rainha o repreendeu. Sendo a mais velha de cinco irmãos, estava acostumada a lidar com infantilidade e pessoas emburradas.

—DANE-SE O BEBÊ! QUE ELE CHORE! —Malévolo bateu o pé no chão e, fazendo jus à alcunha, lançou um feitiço num azarado convidado próximo, que se transformou em um porco.

...Claro que nenhum dos irmãos da rainha era um bruxo.

Malev ainda ficou um tempo com seu ataque histérico e, depois de transformar mais alguns desafortunados em uma galinha, um boi, um rato, uma lebre e um poodle com pedigree, se acalmou o bastante para voltar a conversar como um adulto... Ou quase, pelo menos como uma criança crescida.

—Muito bem, vamos ver o pestinha. —Ele disse num tom mais baixo e se dirigiu ao bebê. Uma pessoa tentou impedi-lo, mas foi devidamente transformada num lêmure. —Qual é o nome da criança, meu rei? —Havia ironia na última parte.

—B-Belo.

—Belo. —Ele repetiu e, assim que alcançou o berço onde estava o pequeno, uma risada foi ouvida. —Como você é feinho, Belo. Tem essa carinha esquisita e tudo o mais... Acho que seus pais te deram o nome por ironia, e eu achando que eu era irônico... —Ele disse o que os convidados temiam dizer, com uma voz fina e infantil, dirigindo-se ao bebê. Essa brincadeira foi tomada como um sinal de bom humor pelos demais convidados e pela família real.

Eles estavam errados.

—Então, Belinho, seu papai e sua mamãe não convidaram o titio Malev aqui para a festinha, então acho que você vai ter que pagar pelo erro deles... —Completou num tom entre sério e infantilizado.

—O que você pensa que vai fazer? —A rainha cruzou os braços e tomou a palavra para si, já que seu marido não estava em condição de fazê-lo.

—Ora, majestade, vou apenas entregar meu presente assim como todos aqui... Hm, o que eu poderia dar ao pequeno que refletisse a traição que eu senti ao saber que fui o único não convidado? —Perguntou dramaticamente. — Já sei! Quando o pequeno alcançar dezesseis anos, ele espetará seu dedo em uma roca e morrerá! —Exclamou maquiavelicamente.

Todos ficaram em silêncio ante a maldição cruel, todos exceto uma fada:

—Você não pode fazer isso! É infame demais até para você!

Os olhares do salão se voltaram a ela, a maioria esperando que o bruxo a transformasse em algo antes de concluir a maldição e ir embora. Surpreendentemente, isso não aconteceu.

—É... Acho que você tem razão. Amaldiçoar alguém para morrer por causa de um convite é um pouquinho exagerado. —Ele ponderou. —Então, quando o pequeno alcançar dezesseis vai espetar o dedo numa roca e dormir para sempre.

—Você não pode fazer isso! —Outra fada, parecida com a primeira, teve a coragem de repetir as palavras. O bruxo suspirou.

—Quando eu tento ser razoável os outros abusam! —Reclamou para si mesmo. —Muito bem, quando a criaturinha fizer dezesseis vai furar o dedo numa roca e... Pera aí, quem ainda usa roca hoje em dia? Melhor ainda, vai espetar o dedo em uma agulha e dormir até... Até... —Ele pensou. —Até que todos no reino tenham morrido ou ido embora. —Concluiu de improviso. —O garoto vai ficar sozinho.

—V-Você não p-pode fazer isso! —Uma terceira fada, mais insegura que as outras duas, tentou intervir também, e Malévolo se perguntava por que ele simplesmente não transformava o guri num gambá e considerava isso uma vingança. Mas, agora que começou a maldição, iria até o fim.

—Tá, tá, que chato. A próxima pessoa que disser isso, eu transformo em pedra! Muito bem, quando o Belo fizer dezesseis anos vai espetar o dedo numa agulha e... Pensando bem, quais as chances do garoto querer costurar? Quer saber, ele vai comer muita besteira e dormir até, sei lá, receber um beijo de amor verdadeiro. —Malev finalizou irritado, já que detestava apelar para os clichês. —Está lançada a maldição e assim será. Agora, se me dão licença, eu vou cair fora antes que mais alguém queira reclamar da minha praga, até porque eu não fui convidado. —Disse com um ressentimento infantil e se dirigiu à porta quebrada.

—Ah, e antes que eu esqueça: rainha, você não poderá mais ter filhos. Só para ter certeza que vai sofrer o máximo possível, nada pessoal, mas assim será. —Antes de sair, estalou os dedos para que todos os animais voltassem a ser humanos e reconstruiu a porta simplesmente para batê-la e fazer uma saída dramática.

*

—Uau, isso foi... Intenso. —Disse uma das fadas assim que Malev saiu.

—Com certeza. —A outra concordou. —Sério que ele fez todo esse drama por um convite? —Revirou os olhos.

—E-Então, majestade, o q-que pretende fazer sobre a maldição? —A terceira se dirigiu ao rei.

—Eu... Hm, veja bem... —Ele buscava uma solução segura e pacífica, de preferência uma que não envolvesse falar com Malévolo.

—VAMOS ATRÁS DAQUELE DESGRAÇADO E OBRIGÁ-LO A DESFAZER TUDO! —A rainha o interrompeu furiosa.

—Querida, se acalme. Nós n-não devíamos ir atrás dele, isso pode só piorar as coisas.

—Deuses, como eu me casei com um homem fraco desses? —Ela perguntou olhando para o teto. —Tudo bem, tem razão... Mas temos que evitar a praga de algum jeito.

—Sim, claro. —Seu tom era apaziguador. —A partir de hoje, só comidas saudáveis são permitidas no reino. —Decretou.

Obviamente, algumas pessoas (e outros seres) reclamaram, especialmente os fãs de fast food e os chocólatras, mas o rei foi inflexível. No fim, o rei usou de argumentos lógicos e fala mansa para convencê-los que era o necessário e, por bem ou por mal, todos acabaram o acatando.

*

Como o tempo voa, não é mesmo? Dezesseis anos se passaram desde aquele fatídico dia. Belo nem sonha que foi amaldiçoado, pois esse assunto é uma espécie de tabu entre os habitantes. E, justamente hoje, o garoto comemoraria seu décimo sexto aniversário. Todos do reino foram convidados, incluindo um bruxo que Belo não conhecia e, francamente, não entendia porque seu pai fazia questão de sempre mandar um convite para ele se ele nunca aparecia. Tudo que o garoto sabia sobre o bruxo era que o chamavam de Malévolo, que ele não costumava ir à cidade e, por fim, que Belo jamais devia se aproximar de sua casa na floresta. Nunca explicaram o motivo.

Enfim, vamos deixar isso de lado e nos concentrar na parte feliz: a festa! O jovem príncipe estava muito animado, pois adorava comemorações. O castelo ficava alegre, com uma ótima decoração e muitas pessoas. Era muito mais animado que no dia a dia, quando apenas ele, seus pais e os empregados o habitavam. Ele já perguntou a sua mãe se podia ter um irmãozinho, mas ela pareceu ficar triste e desviou o assunto, então ele parou de pedir.

Além disso, em festas ele sempre encontrava as garotas do reino, que pareciam evitá-lo no cotidiano. De bebê esquisito, Belo virou uma criança esquisita e, agora, um adolescente esquisito. Suas orelhas continuavam grandes demais e ainda se projetavam para frente; seu nariz ainda era grande em relação ao rosto; seus olhos eram de um marrom escuro acinzentado, enquanto os de seus pais eram azuis e os da maior parte do reino eram verdes; seus cabelos eram rebeldes e, não importava o quanto ele tentasse arrumar, permaneciam arrepiados nas mais diversas direções; e, para completar, mesmo com a puberdade ele permanecia magrelo e desajeitado. As poucas garotas que falavam com ele já o tinham “friendzonado” e as outras sequer falavam.

Enquanto andava pela cidade, o garoto as encontrou conversando sobre ele e, mesmo sabendo que não devia, resolveu espiar. A conversa foi mais ou menos assim:

—Viu o Belo tentando andar com a gente hoje? Aquele esquisito...

—Pois é, por que será que o chamam de Belo? Quanta ironia!

—Vai ver é por causa daquele programa, “Bela, a feia”.

—Não era “Betty, a feia”?

—Hm... Não lembro. Era?

—Vai ver é por causa daquele cantor estrangeiro, o Belo. Aquele cara também é uma ironia!

—É, pode ser.

—E ele pensa que tem alguma chance com a gente... Nem sendo príncipe ele se salva!

As duas começaram a rir e Belo parou de espiar e se afastou, de certa forma arrependido por ter ouvido a conversa em primeiro lugar. Mesmo assim, em alguns minutos, ele já estava menos chateado, afinal, era seu aniversário e algumas pessoas malvadas não estragariam isso.

Antes de voltar para o castelo, o garoto decidiu parar na quitanda e comer algo. Ele passou pelas prateleiras cheias de frutas e verduras e, mesmo que as achasse deliciosas, sentiu uma súbita vontade de comer algo diferente, algo que nunca havia provado. Essa vontade o levou, quase inconscientemente, a uma rua mais afastada e praticamente deserta. Era outro ponto da cidade que ele devia evitar, as pessoas lá sempre agiam esquisito. Elas eram taciturnas, esquivas, pareciam estar fazendo algo errado.

Um cheio forte e delicioso tirou esses pensamentos precavidos de sua mente, era um cheiro que ele nunca sentiu antes, algo irresistível. Quando Belo percebeu, havia adentrado um estabelecimento suspeito e todos lá dentro pararam de comer para encará-lo assustados.

—Ah... Príncipe, o que faz por aqui? —Um homem, que aparentava ser o dono do lugar, forçou um sorriso enquanto os clientes escondiam alimentos e bebidas o melhor que podiam.

—Eu, é, senti um cheiro muito bom. —Admitiu. —O que é isso? —Apontou para o que parecia ser um sanduíche esquisito em um dos pratos, que estava mal escondido numa das cadeiras.

—Isso... Bem— O homem hesitou. —, chama-se hambúrguer. É uma iguaria proibida, então você deve prometer não contar para ninguém.

—Eu quero um. —Belo pediu, já sentindo sua boca salivar.

—Não! Você não pode! —O homem, assim como todos os presentes, pareceram assustados com o pedido.

—Ah, tudo bem... Eu devia mesmo voltar ao castelo. —Todos relaxaram visivelmente. —Afinal, meu pai deve estar com saudades, ele vai adorar ouvir sobre esse lugar. —Completou com um sorriso cínico. O jovem príncipe puxou a fala mansa de seu pai e a determinação de sua mãe, quando realmente queria algo, não desistia facilmente.

Ele se virou para sair e esperou o que sabia que ocorreria.

—Espera! —O homem o impediu, assim como previsto. —Eu acho que... Bem, só um não faz mal. Mas só um! Se você não contar para ninguém.

—Combinado.

Mesmo seguido por olhares temerosos, o garoto se deixou ser conduzido até a cozinha, onde o homem preparou um daqueles tais “hambúrgueres” para ele. Assim que deu a primeira mordida, Belo sentiu um êxtase que nunca sentiu antes e teve apenas um pensamento: ele precisava de mais! Mas aquele homem não o deixaria ter mais, só se...

—Acho que chegou alguém, devia ir receber seu cliente. —Comentou. —Eu já estou acabando, logo vou sair. —Fez sua expressão mais inocente.

O homem acabou aceitando, provavelmente por não querer perder um cliente, e prometeu que voltaria em um minuto. Assim que ele saiu, Belo trancou a porta e, por garantia, a bloqueou com uma cadeira, gritando um pedido de desculpas, mas afirmando que aquilo era bom demais para resistir.

                O garoto engoliu seu hambúrguer numa só mordida, depois outro, provou aquela bebida esquisita, mas deliciosa, que parecia um suco preto borbulhante, encontrou uma substância cremosa suspeita num pote escrito “napolitano” e, quando provou, não conseguiu parar até acabar o pote. Experimentou uma barra marrom que derretia na boca, identificada apenas com os dizeres “diamante negro” na embalagem.

                Depois de devorar quase tudo da cozinha, se deliciando com as descobertas, Belo achou que já era o bastante e destrancou uma das estreitas janelas, se forçando para passar por ela. Acabou com alguns arranhões e, não fosse tão magro, sequer teria passado.

                Belo foi direto para o castelo, sentindo-se pesado e pensando que talvez tivesse passado um pouco dos limites, mas não deu para evitar... Aquilo era tão bom! Assim que chegou, se deparou com o salão arrumado e os empregados correndo para preparar o banquete a tempo. Alguns o cumprimentaram e desejaram parabéns e ele agradeceu educadamente, mas se esquivou alegando que ia para o quarto se arrumar. Por algum motivo, ele se sentia cansado.

                Apesar de tentar se manter alerta, o príncipe estava se rendendo ao cansaço. Ele sabia que precisava mesmo se arrumar e não podia se atrasar para receber os convidados, mas se deitar só por cinco minutinhos não faria mal, certo? E sua cama parecia tão tentadora... Só um pouquinho, depois ele voltaria às obrigações muito mais disposto.

                Com isso em mente, ele se deitou em sua luxuosa cama e fechou os olhos, repetindo mentalmente que só ficaria alguns minutos. Ele sequer reparou quando cinco minutos viraram dez, depois quinze, o sono foi aumentando, as pálpebras pesaram e, em poucos instantes, Belo estava adormecido. Para sempre.

                *

                Quando a festa começou e o aniversariante não apareceu, os convidados se preocuparam automaticamente. Aquele era o dia que a maldição devia se concluir, eles sabiam disso, mas pensaram que o rei e a rainha conseguiriam evitá-la. Logo, encontraram o garoto adormecido no quarto e o pior foi confirmado. Malévolo venceu.

                A rainha não se conformou, se enfureceu, gritou, queria a pele do bruxo, queria esfolá-lo vivo, queria vingança. Já o rei, hesitante, conseguiu acalmá-la repetindo que violência não levava a nada e lembrando que havia um modo de quebrar a maldição: um beijo de amor verdadeiro.

                Imediatamente, todas as garotas do reino foram convocadas, mesmo que a contragosto, para beijá-lo. Por causa do olhar mortal da rainha, todas o fizeram sem reclamar. Uma a uma, o beijaram, mesmo assim ele não acordou.

                Convocaram todas as garotas de reinos vizinhos, prometendo uma recompensa para coagi-las. Elas acabaram aceitando e, uma a uma, o beijaram. Ele não acordou.

                Chamaram garotas de reinos mais longínquos, ele não acordou.

                Tentaram os garotos do reino porque, bem, nunca se sabe, certo? Eles, ainda mais a contragosto que as garotas, aceitaram. Belo não acordou.

                Tentaram garotos de outros reinos, nada.

                Nessa “brincadeira”, vários meses se passaram, várias tentativas fracassaram e o garoto ainda dormia serenamente, ou quase, ele roncava... Enfim, os pais de Belo estavam quase se dando por vencidos quando uma estranha garota chegou ao reino.

                Ela não era uma princesa, aliás, não era exatamente nem uma donzela. Chegou montada em um cavalo manchado, com uma espada a tiracolo e vestes simples, rústicas. Tinha um olhar feroz e determinado e apresentou a si mesma como uma amazona. Ela não tinha bons modos, não era doce como as garotas do reino e parecia não temer perigo algum. Afirmou ter vindo de muito longe por ouvir rumores da maldição e que queria aceitar o desafio de quebrá-la. Os reis a levaram imediatamente ao quarto do príncipe, imaginando a reação que a virago teria ao conhecê-lo, se tentaria desistir como os outros.

                A visão da aparência “peculiar” do príncipe não pareceu afetá-la. Ela marchou imponente até a cama, sem hesitação alguma, e colou seus lábios aos de Belo com uma ferocidade animalesca.

                O garoto não acordou.

                *

                O rei e a rainha decidiram desistir e considerar o filho como morto. Meses e meses de esforços infrutíferos desgastaram seu entusiasmo e determinação. Mesmo a mulher, com toda sua fúria e teimosia, se sentia cansada disso. Seria melhor enterrá-lo, passar pela dor da perda e tentar seguir em frente.

                Assim, uma grande cerimônia fúnebre foi montada e toda a cidade compareceu. Um luxuoso caixão foi encomendado, flores falsas decoravam-no, já que estavam no inverno e flores verdadeiras estavam secas e mortas, e o sacerdote fez um grande discurso, além de alguns cânticos numa língua desconhecida. Tudo estava quase pronto para que o caixão fosse fechado e o corpo enterrado, mas, momentos antes, alguém chegou. Malévolo.

                O bruxo, pela primeira vez desde o nascimento do menino, apareceu em um “evento” da realeza. Ele não cumprimentou ninguém, não disse uma palavra, sequer fez uma de suas entradas triunfais, apenas se dirigiu a um dos cantos e ficou parado, quieto, observando o resto da cerimônia. Alguns o encararam, outros desviaram o olhar, mas ninguém se atreveu a questionar porque ele estava ali.

                Quando o último canto terminou e a cerimônia chegou ao fim, à hora de fazer as últimas homenagens e fechar o caixão. Nesse momento, Malev saiu de seu canto e andou a passos lentos até o caixão, ninguém o impediu. Sob o olhar curioso e temeroso de todos, o bruxo tocou o chão e fez brotar uma bela rosa branca, depositando-a sobre o peito do príncipe adormecido.

                —Realmente, foi uma bela cerimônia. Emocionante. —Comentou casualmente ao rei e à rainha, como se não estivesse em um enterro ou sequer fosse responsável por isso. —Não vão se despedir do seu filho, majestades? —Na fala do bruxo havia o típico tom de quem está tramando algo e a rainha teve que se conter para não avançar na garganta dele.

                —C-Claro, já íamos fazer isso. —O rei disse enquanto segurava sua esposa. —Não é, querida?

                —Sim. —A mulher praticamente sibilou.

                O casal se aproximou do caixão, seguido pelo olhar interessado de Malévolo, e encarou Belo, sem palavras. O que dizer numa situação dessas? O rei improvisou um discurso sentimental bastante eloquente, pois era o que sabia fazer de melhor quando a situação complicava. A despeito do típico nervosismo, discursou muito bem e sem grandes hesitações. Já a rainha, que era mais de ação que de palavras, simplesmente murmurou um “adeus” e se inclinou para beijar o garoto na testa.

                Então Belo acordou.

                —Ah... Que foi? Me atrasei pra festa? —O garoto perguntou sonolento ao ver que todos o encaravam.

                —É... Bem... —Ninguém sabia como explicar ao príncipe o que aconteceu.

                —De certa forma, sim, isso já foi há uns meses. —Malev decidiu responder, já que todos permaneciam quietos.

                —Uh... Meses? E desculpa, mas quem é você? —Belo se esforçava para entender o que estava se passando ali.

                —Malev Ollo, a seu dispor, alteza. —O bruxo fez uma reverência exagerada. —Agora, se não se importam, é minha hora de ir. —Completou apressado e tentou sair enquanto todos ainda estavam surpresos demais para impedir.

                —Parado aí, Malévolo, você só sai quando explicar o que diabos aconteceu aqui! —A rainha o impediu. Aparentemente, ele esperou tempo demais para bater em retirada...

                —Ora, minha rainha, a maldição se cumpriu. Conhece amor mais verdadeiro que amor de mãe?

                Antes que a soberana tivesse tempo de tentar matá-lo, xingá-lo ou torturá-lo por deixá-la dar o filho como morto sem contar a simples solução, Malev estalou os dedos e desapareceu. Obviamente, a mulher ficou furiosa, mas decidiu que não valia a pena persegui-lo e se concentrou em seu filho, que estava muito confuso no momento.

                Algumas explicações foram dadas, a maior parte pela metade ou levemente distorcida. Afinal, eles não poderiam contar que tudo aquilo foi por capricho de um bruxo infantil e um erro do rei, podiam? Seria ridículo, acabaria com a reputação do reino. No lugar disso, disseram que Malévolo era um bruxo maligno que não foi convidado porque era mal e se vingou com uma maldição para matá-lo, que deu errado. Se o príncipe percebeu os furos da história mal contada, preferiu não comentar.

                Depois que tudo foi aceitavelmente esclarecido, a rainha deixou o filho de castigo por comer muita besteira escondido e sem permissão. Ela estava feliz por ele não estar morto, claro, mas mãe é mãe... Esse era seu papel afinal.

                E, como todo conto de fadas (mesmo que excessivamente longo), esse precisa de uma moral. Então:

                Moral aceitável um: não importa o quão feio você seja, sua mãe sempre vai te amar.

                Moral aceitável dois: não importa que você quase morra, quando ficar bom, seus pais vão brigar e te pôr de castigo (mas é o trabalho deles, não leve para o lado pessoal).

                Moral aceitável três: aquele sono depois de comer besteira pode ser uma armadilha, cuidado!

                Moral aceitável quatro: Convide todo mundo para suas festas, até aqueles parentes chatos, amigos sem noção e o tio do “pavê ou pacumê”, nunca se sabe quem vai querer te amaldiçoar por um convite não feito.

                Moral aceitável cinco: pessoas que não te conhecem dificilmente vão te amar verdadeiramente.

                Moral aceitável seis: seu narrador aqui não sabe contar histórias curtas e acaba enrolando até nos contos de fadas bobos (mas, ei, eu te dei seis lições de moral numa só história! Já são cinco a mais que o tradicional).

                E esse é o final da história, mas, como seu narrador ama enrolar, deixo uma cena “pós créditos” só para quem quiser mesmo. Extra.

                Se não quiser, sinta-se livre para partir. A história mesmo já acabou.

Vai ficar? Ok...

                Alguns meses depois, a rainha descobriu que estava grávida. Obviamente, isso causou alegria geral. O rei se alegrou por ter outro herdeiro, os súditos se alegraram por algum motivo (sério, o que eles ganham com isso?), as garotas se alegraram com a chance de nascer um príncipe bonito para elas namorarem e virarem princesas, Malev não se alegrou, mas riu porque sabia a verdade dessa gravidez... Enfim, felicidade para todos.

                A mulher, desconfiada como era, decidiu tirar essa história a limpo. Ao contrário da opinião popular, ela não acreditava que quando seu filho acordou as duas maldições foram quebradas. Afinal, elas não foram feitas juntas. Com isso em mente, ela marchou pela floresta até a casa do bruxo, e não voltaria sem respostas.

                A floresta não era exatamente acolhedora. Na verdade, era hostil com suas plantas espinhosas, ervas venenosas, caminhos sinuosos e estreitos e que se cruzavam várias vezes, tornando fácil se perder. Mesmo assim, nada disso era páreo para a determinação implacável da rainha. Assim que ela alcançou a casa de Malévolo, preparou-se para derrubar a porta, mas foi pega de surpresa quando esta abriu sem que ela sequer a tocasse.

                —Olá, majestade, estava te esperando. —O conhecido tom irônico foi ouvido e Malev apareceu com um sorriso cínico e duas xícaras de chá. —Prefere com açúcar ou mel?

                —Não quero chá. —Ela firmou, não querendo cair em truques e falsa hospitalidade.

                —Certeza? Eu coloquei um pouco de gengibre. É bom para enjoo na gravidez. —Comentou no mesmo tom cínico e amigável.

                —Foi disso que eu vim falar. Por que eu estou grávida? —Exigiu ferozmente.

                —Bem... Quando uma mulher e um homem se amam muito, o homem põe uma sementinha na mamãe e um bebezinho cresce na barriga dela. —Zombou, seu tom dando a entender que estava falando com uma criança.

                —Não isso! —Ela se irritava mais com cada palavra dita pelo bruxo. —Como eu posso estar grávida se você me condenou a não ter filhos?!

                —Calma, devia se sentar. Tanta agitação não é boa para grávidas. —Permaneceu no cinismo.

                —APENAS RESPONDA!!!

                —Calma, para que tanta agressividade? Já que não está no clima para conversas... —Ele hesitou apenas para irritá-la mais. —Bem, entenda. Deixar um útero infértil é difícil e exige mais magia do que eu estava disposto a gastar por uma raivinha momentânea... Além do mais, depois da travessura com seu filhinho bebê, eu nem tinha tanta mágica. —Comentou casualmente. —Então eu, tecnicamente, só amaldiçoei seu marido. Espero que deixe esse segredinho entre nós, detestaria que o povo questionasse minhas capacidades com magia simplesmente porque eu não quis fazer algo complexo. Você entende, não é?

                —Ora, e o que me impede de contar? Você merece alguma humilhação depois de tudo! —A mulher ameaçou, sabendo que a reputação de bruxo era uma das poucas coisas que Malev prezava.

                —Quem é o pai do bebê? —O bruxo perguntou calmamente enquanto bebia um gole de chá. A mulher ruborizou.

                —Eu... Eu não te devo satisfação. Hunf. —Disfarçou com uma falsa raiva.

                —Tudo bem... Talvez eu possa perguntar ao rei. —Ameaçou. —Guarde meu segredo e eu guardo o seu, capisci?

                Ela apenas grunhiu algo irritada, mas aceitou. E acabou aceitando também o chá para acalmar os nervos. Aquilo foi só uma vez... O que ela faria se seu marido descobrisse? Como um mero deslize gerou uma criança? Enfim, era melhor deixar a história quieta e aceitar a ignorância popular de que sua maldição também foi quebrada quando seu filho acordou.

                Moral aceitável sete: o rei está certo, não vale a pena arrancar explicações de Malev.

                Fim.


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Notas finais do capítulo

Não sei se classifico como humor, como humor negro, como tentativa falha de humor... Mas tá aí!

Se um dia o Nyah pôr "tentativa de humor" como aviso, eu juro que coloco!

Mas, até lá, é isso!

Espero que tenha curtido! E rido também, nem que seja de tão ruim que riu pra não chorar!

"Rido"... Palavra estranha. Ri-do.

Enfim, bye!

p.s: agradecimentos ao meu maninho, porque se eu não deixar bem claro que ele me ajudou ele reclama depois.