Kaleidoscope escrita por Paradise


Capítulo 4
III


Notas iniciais do capítulo

Dançando - Agridoce



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Não conseguia pensar em outra coisa além de Joel e seu crush. Durante a tarde inteira de segunda e a manhã do dia seguinte nada além dos dois passava por minha cabeça. Me sentia idiota por não ter percebido antes. Por quanto tempo será que isso vem acontecendo? Deveria perguntar a ele? Não, só iria piorar as coisas. Ele nunca me diria a verdade e ainda ficaria bravo comigo. Conheço a figura. “Claro que não, enlouqueceu? Pare de inventar mentiras, Charlie! Achei que podia confiar em você! ” ele diria. Entraria no modo defensivo e me expulsaria completamente. Mais uma vez.

Na última aula de terça-feira, que no caso era biologia, cheguei a uma conclusão. Não falaria com Joel direto, só insinuaria que sabia. Provavelmente, ele deixaria escapar algum sentimento. Ele diria coisas como, “seus cachinhos estão particularmente brilhantes hoje” ou “Gabriel está mais sorridente. Isso lhe caí bem”. Seria assim até não aguentar mais se segurar e resolver contar tudo. Quem sabe assim eu também não abro meu coração para ele?

Ao sair da sala, meu professor de biologia me parou e comentou que eu estava me distraindo muito para alguém que não vai bem na sua matéria. Respondi qualquer merda e continuei andando, ainda planejando minhas táticas infalíveis. Peguei e deixei o material no armário e fui embora, me despedindo rapidamente de algumas pessoas só.

No carro foi a única hora que parei de pensar nos dois. Isso porque meu pai não esperou um minuto para perguntar porque eu não tinha ligado para minha mãe.

— Ela ficou me cobrando durante meu trabalho inteiro. Você sabe o quão desagradável isso é.

Merda. Eu esqueci de ligar para ela ontem. Minha descoberta me distraiu tanto que tinha me desligado do mundo. Passei a tarde inteira rolando na cama, ouvindo música e pensando. Nem olhei o celular para ver se tinha alguma notificação.

Caramba, fiquei dentro de minha cabeça por quase um dia inteiro.

— Nossa, desculpa. Esqueci completamente. Prometo ligar assim que chegar em casa.

— Hoje não vai dar, ela vai viajar, lembra? Seu voo pousa só amanhã à noite e vai passar quinta-feira inteira trabalhando. Por isso queria falar com você ontem.

— Ah, tudo bem. Eu falo com ela sexta à tarde.

— Você sabe que vai levar bronca, né?

Assenti e encostei a cabeça no vidro. Adiar a conversa com mamãe nem era tão ruim assim. Era sempre aquele clima estranho.

— Só para relembrar, temos almoço em família no domingo na casa do meu irmão.

— Oscar vai também?

— Sim, vamos busca-lo uma hora antes.

Me alegrei. Sentia muita falta do meu irmão morando no quarto ao lado. Agora ele estava dividindo um apartamento, que fica mais perto da faculdade, com alguns amigos. Somos relativamente próximos, já que conversamos sobre coisas além da escola. É que ninguém em nossa família realmente se abre um com o outro. Não sei a razão dos outros, mas eu tenho medo. Sempre que tentei, recebi olhares assustados, críticas e zombadas. Uma confissão para uma patada. Não quis mais me abrir com eles.

Mas ainda assim, os amo. No final das contas, são minha família.

Chegamos em casa e fui direto para meu quarto. Meu pai saiu para voltar ao trabalho logo depois. Comecei a fazer uma lição, mas me entediei. Foi então que ouvi alguém batendo na porta. Somente uma pessoa nesse mundo batia na porta ao invés de tocar a campainha. Desci correndo.

— Aposto que você esqueceu que a gente ia assistir Sherlock hoje. – Mesmo antes de abrir a porta completamente, Kayla já começou a falar.

A abracei e pedi que entrasse. Ela subiu as escadas e foi para o meu quarto. Ah, como eu queria que isso acontecesse em outro contexto.

Antes de segui-la, fui até a cozinha preparar um saco de pipocas. Gritei para ela já ir ligando o computador e colocando o episódio que queria assistir. Dois minutos e meio depois, subi com a pipoca pronta. Kayla estava deitada de bruços na cama mexendo no computador. O cabelo ainda estava preso e suas roupas eram as mesmas que as de manhã. Seus tênis ocupavam o caminho da porta e eu quase tropecei neles. Sentei do seu lado e apoiei o pote na cabeceira.

— Tudo bem se assistirmos o terceiro episódio da primeira temporada? Eu só assisti até aí.

— Qualquer episódio está bom. – Respondi, me encostando na parede.

O episódio começou e ela continuou do mesmo jeito. Suas pernas estavam entrelaçadas e ela apoiava a cabeça nas mãos. Logo ela ia cansar dessa posição e iria se juntar a mim. Seu cabelo tinha caído para frente de seus ombros, então ela bufou e os jogou de volta para trás. Não demorou mais um minuto e ela se ajeitou sentada ao meu lado. Abraçava meu travesseiro, mas continuava a apoiar a cabeça nas mãos. Fazia comentários aleatórios sobre os personagens, mas eu não prestava muita atenção. Ri algumas vezes, mais por educação do que por graça.

Ela realmente estava entretida com o episódio. Eu não podia estar cagando mais para o que se passava na tela. Kayla sentava ao meu lado, na minha cama. E eu não podia fazer nada. A perna dela enroscava na minha de vez em quando, principalmente quando ficava tensa. Seu braço estava constantemente encostado no meu. Quando ria, ela se inclinava para meu lado e seu cabelo balançava em frente ao meu rosto. Cheirava a shampoo de camomila.

Eu quero toca-la. Braço com braço já não é o bastante. Eu preciso de mais.

A pele bronzeada dela exala cheiro de praia e seu cabelo é macio como a brisa. Ela ria com tanta graça e delicadeza, era difícil se concentrar em algo que não sua boca. Seus lábios estavam mais rosados que o normal. A sincronia dos dois enquanto ela fala me fascina. Tudo nela me lembrava a música que mencionou na aula de física ontem. É sobre uma menina linda que encantou o eu lírico. Ouvi sem parar desde que Kayla me mostrara.

Na minha cabeça, o cenário era diferente. Ela pausava o episódio e se virava para mim. Colocava o computador no chão e falava que não queria mais ver. Tínhamos uma conversa inútil só para que nossos lábios pudessem se encontrar. Sem pressa, nós deitávamos e logo as roupas iam parar no chão.

Ao invés disso, assistimos o episódio até o final.

Com a garganta seca e sem vontade de ficar ali, perguntei se ela queria um copo de água. Desci correndo e fiquei um tempo na cozinha. Lavei meu rosto e enchi dois copos e voltei para cima.

Quando cheguei, ela mexia no Spotify do computador. Logo que entrei, Kayla perguntou se eu tinha algum pedido. Neguei com a cabeça e sentei no chão, em frente a cama. Entreguei o copo e ela disse que colocaria no aleatório.

Realmente, uma música bem aleatória começou a tocar.

— E aí, o que achou do episódio? – Perguntei, dando um gole

— Nossa, gostei demais. Melhor episódio até agora, na minha opinião.

— Você precisa ver os outros, então. Só melhora.

Ela sorriu e voltou para o computador. Pelo visto, não queria mais ouvir no modo aleatório.

— O que foi? Por que você está me encarando? – Ela perguntou, rindo. Corei e virei a cara, respondendo que era só impressão. Então, mexendo as mãos e fazendo uma voz engraçada, ela completou – Que nada, você estava quase que transe. Sei que sou maravilhosa, mas não precisa de tanto.

Kayla riu da própria brincadeira e continuou procurando uma música.

— Está difícil aí, hein? Só coloca uma música logo. – Pedi

Ela mostrou a língua, sem me olhar.

— Meu Deus! Você me mostrou a língua! Mas que horror, estou em choque! Qual vai ser o próximo passo? Xingar usando “bobo”? – Ironizei, rindo.

Ela também riu e empurrou meus ombros de leve. Retruquei o golpe. Ela enfim me olhou e me empurrou direito, ainda rindo. Entramos em uma leve briga de brincadeira. Levantei e comecei a fazer cócegas. Ela retribuía, tentando me fazer cair no chão. Acabei pulando em cima dela e nós começamos a rolar pela cama, rindo.

— Chega. – Kayla pediu, se afastando. – Vou morrer sem ar.

Me recompus, afastando o computador da beirada. Ela sentou e arrumou o cabelo.

— Quando você tem que voltar para casa? – Perguntei, apoiando minhas mãos atrás da minha cabeça

— Não sei, talvez daqui a pouco.

Ela se levantou e foi andar pelo meu quarto. Passou pelo armário e parou na escrivaninha. Começou a mexer nos porta-retratos e pegou um deles. Era uma foto da minha família inteira reunida. Meus pais ainda estavam casados.

— Onde foi isso?

— Ilha bela.

— Vocês parecem felizes aqui.

Ela segurava com firmeza a foto. Parou de encara-la quando eu ri.

— Foi uma das piores viagens que já fizemos.

Ela parecia espantada. Apoiou o porta-retratos de volta na mesa e se virou completamente para mim.

— Por que você tem uma foto de uma viagem ruim exposta assim? – E, diminuindo o tom, como se fosse um segredo de estado, completou. – Seus pais são separados, você não gostaria de ter uma lembrança boa deles juntos?

Aqueles olhos verdes sugavam minha alma. Queria abrir a boca e falar. Queria sentar no chão e chorar. Queria dizer tudo que guardo dentro de mim. Queria explicar-lhe que tinha sim um significado para mim. Queria gritar que não sabia o porquê, porém.

— Ah, sei lá. Eu só tinha essa foto que cabia no espaço aí.

Ela pareceu decepcionada, provavelmente porque esperava um explicação melhor. Encarou meus olhos por mais um segundo, como se dissesse que sabia que eu mentia. Então voltou a mexer nas minhas coisas.

Kayla lia as folhas espalhadas pela mesa, pegava os lápis e canetas, arrumava algumas coisas no lugar. Eu voltei a me sentar na cama e escolher as músicas. Veio uma música direto e não deu tempo para eu mudar, mas ela gritou animada.

— Adoro essa música, deixa.

Obedeci e me encostei na parede, observando-a. Ela tinha deixado todas as coisas no lugar onde estavam antes e se afastou da escrivaninha. Começou a balançar a cabeça seguindo a música. Então, acompanhou a cantora. Sua voz não era nada de mais, mas ao mesmo tempo era encantadora.

— O mundo acaba hoje eu estarei dançando com você. – Ela cantou o refrão apontando para mim.

Kayla girava, colocava as mãos para cima e se entregava à música. Ela estava linda. Seu cabelo balançava e, as vezes, ela o jogava para trás. Seus olhos estavam fechados. Eu não conseguia desviar o olhar.

Então ela os abriu e esticou os braços em minha direção. Agarrou minhas mãos e me puxou para fora da cama. Ainda me segurando, ela começou a me guiar e nós ficamos dançando por um bom tempo.

Nada mais importava. A música nos rodeava e nós voávamos. Não sabemos dançar e se alguém de fora visse, nossa dança pareceria idiota . Mas não importava. Nossas mãos estavam entrelaçadas, nossas cabeças vazias e nossas vozes se fundiam. Ela me encarava profundamente. Não conseguíamos desviar o olhar. Não conseguíamos parar de rodar. Não conseguíamos parar. Não conseguíamos.

Mais um minuto seria preciso. Um minuto e eu a teria enlaçado com meus braços. Um minuto e eu teria segurado seu rosto bem perto do meu. Um minuto e nossos lábios se encostariam. Se eu tivesse só mais um minuto.

Mas seu telefone tocou e ela precisou ir embora. Eu, então, tive que ficar só na minha aura imaginária. Pensando que precisava de mais um minuto.

 

 

 

A noite estava estrelada. Eu sentava na beira da janela e observava o céu. A janela de Kayla estava completamente fechada. Será que ela pensava o mesmo que eu? Será que ela sentira o mesmo que eu? Será que ela também só precisava de mais um minuto?

Eu tinha uns 11 ou 12 anos e meus pais ainda estavam juntos. Fomos os quatro para Ilha Bela e tudo que me lembro dessa viagem são brigas. Minha mãe estava incomodada com os mosquitos, com as praias e com o hotel. Meu pai tentava de tudo para melhorar o clima, mas tudo acabava piorando. Meu irmão adorava se meter em encrenca. Eu só ficava em silêncio. Foi terrível.

A foto me lembra disso. Ela me lembra do quanto era ruim ter que ficar em silêncio ouvindo os três berrarem. De como nossa família é fragmentada. De como fingíamos ser a família perfeita. De como ficamos todos calados agora. Representa todos os problemas que temos. E, mais importante, mostra quem e como somos. Somos problemáticos mesmo, mas somos uma família.

Eu os amo.

Mas a viagem foi terrível.


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