Eu, Kindred escrita por MaurraseC


Capítulo 4
Para todo o sempre


Notas iniciais do capítulo

Kindred é um campeão que gosto muito, sua criação e filosofia de existência é algo que me trouxe admiração desde o dia que o conheci.
Essa é uma homenagem para esse campeão.
Espero que gostem.

—Diga-me de novo, Ovelhinha, que coisas posso tomar?
—Tudo o que existir, caro Lobo.



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— Há quanto tempos existimos, Ovelha?

— Mais tempo que aqueles cujos passos há muito desapareceram.

— Muitos anos.

— Eu me lembro de todos eles.

— Sim — O Lobo descansava em meus pés.

— Oh... Olá minha criança, vejo que escapou mais um dia.

— Que pena — disse o Lobo decepcionado. — Quero muito lhe conhecer.

— O que lhe faria Lobo?

— Iria brincar um pouco — ele abriu um sorriso. — Perseguir é o jogo mais legal do mundo... E eu sempre ganho.

— Claro que sim, caro Lobo. Mas temo que nossa aventura esteja chegando ao fim.

— Mas eu tenho fome.

— Então não percamos tempo. Nossa caça nos espera. Espero que nosso convidado tenha tempo de ouvir mais uma de nossas aventuras enquanto partimos.

— Vamos logo, Ovelha.

— A trama e o tecer do destino guiam...

— Palavras estragam a perseguição.

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— Eu sinto presas, Ovelha.

— Sim Lobo, aqui há muitas marcas para serem removidas.

— Irei devorar todas.

— Não Lobo, alguns ouvirão apenas a minha voz.

Era uma manhã nublada quando chegamos naquele hospital de grande porte.

Na entrada havia muitas pessoas. Algumas tristes outras impassíveis. Carros entravam e saiam. Lágrimas e choros, além de brados e palavras de baixo calão contra os funcionários.

Entramos sem sermos interrompidos. Em verdade eram poucos que podiam nos ver. Apenas aqueles que tinham nossa marca. Ou estava próximo de tê-la.

— O caminho deles é destinado a cruzar o nosso — eu dizia enquanto adentrava mais a instituição.

Passamos em frente a uma sala cirúrgica no momento exato que o médico fazia uma incisão no paciente com um bisturi frio.

— Afiado o suficiente para cortar o véu entre a vida e a morte — observei a lâmina.

Andei até as enfermarias. O local que mais nos atraia. Podíamos sentir nossas marcas nos chamando em demasia. Fomos até a segunda enfermaria onde um garoto estava ferido em sua coxa direita. Um corte profundo que dilacerou o musculo.

A causa foi um acidente automobilístico. Talvez só esse dano não fosse o suficiente para seu fim. E não seria. Mas o impacto sofrido no acidente ocasionou num coágulo sanguíneo que foi ignorado pelos exames e profissionais... E agora nossa marca pairava sobre ele.

O garoto acordava de seu tranquilo sono e se deparava com nossa existência. Ele arregalou os olhos assustados e tentou gritar, mas o próprio medo lhe calou.

Era uma madrugada fria e silenciosa Os pacientes e acompanhantes que estavam na mesma enfermaria estavam dormindo pesadamente. Obviamente, por nossa conta.

— Escolha agora minhas flechas — eu revelava meu arco.

— Ou meus dentes — O Lobo lhe intimidava.

Porém o garoto não reagiu. Seu medo era demasiado a ponto de paralisa-lo.

— Seu coração bate rápido agora — O Lobo dançava no meu corpo.

— Pois sabe — Me afastei dois passos para o lado.

Às vezes não é necessário ouvir ou ver um gesto de conformidade. Posso entender muito bem que, para ele, eu não era bem vinda.

— Tome, é seu – falei.

— Sim — respondeu olhando diretamente para o garoto que engoliu em seco.

O Lobo afastou-se um pouco desaparecendo do campo de visão da presa. Permitindo que a entrada ficasse a vista para fugir.

Eu permanecia observando com curiosidade.

— Corra se puder! — O Lobo gritou com sua voz rouca no ouvido do garoto repentinamente lhe tirando da paralisia.

Amedrontado o garoto vacilou e caiu da cama logo em cima da coxa ferida fazendo-o gemer de dor. Levantou o olhar assustado nos proporcionando uma bela visão.

— O que pretende fazer, caro Lobo? — eu me encostava à parede.

— Vou rasga-lo em pedacinhos — revelou os dentes afiados.

— Não! — suplicou o garoto. — Não!

Sua perna não tinha forças para se erguer. Então começou a se arrastar desesperado para fora da enfermaria.

— Socorro — insistia. Mas ninguém podia ouvi-lo. — Por favor...

— O medo deixa a perseguição mais divertida — lentamente o Lobo se aproximava observando-o de cima. — Isso vai doer... muito — abriu o sorriso malicioso.

Antes de o garoto chegar à porta, sentiu os dentes fincar nos músculos de sua costa. Ele ergueu o corpo e logo arquejou por alguns segundos, morrendo em seguida. Nossa marca desaparecia de sua mão.

— Pegamos nossa marca — O Lobo lambia os beiços.

— Somente para colocar em outro lugar — eu saia da enfermaria.

Instantes depois gritos podiam ser ouvidos. Os acompanhantes e pacientes da enfermaria gritavam por ajuda pelo garoto que estava no chão inerte.

— Para onde vamos agora? — perguntou o Lobo.

— Buscar nossa próxima marca.

Entramos na quinta enfermaria onde tinha quatro acamados. Dois deles respiravam por aparelhos, sem chances de recuperar. Estavam apenas adiando o inevitável.

— O que estão fazendo, ovelhinha? Que máquinas são essas? — o Lobo me questionou.

— Não gosto delas — eu disse indignada.

— Por que, ovelhinha?

— Elas retardam o fim inevitável da vida.

— Significa que não podemos pegar nossa marca?

— Sim, podemos... Devíamos ter pegado há muito tempo.

— Significa que já estão mortos?

— Não por fora, caro Lobo. Mas por dentro. Tais máquinas atrapalham o equilíbrio.

— Eles acham que pode nos enganar! — sua voz estava irritada.

— Isso se chama... negação — me aproximei de um dos leitos.

— Posso devorar, ovelhinha?

— Não esses, Lobo. Esses ouvirão apenas a minha voz.

Empunhei meu arco e gentilmente desferi uma flecha no seu peito. Me aproximando da outra cama, desferi mais um disparo.

—Está feito.

Segundos depois um pequeno alvoroço se formou. Após o batimento cardíaco dos pacientes ter parado, um grupo de profissionais da saúde entraram na enfermaria, cada qual para um leito, e desesperadamente iniciaram o processo de ressuscitação.

As ordens do médico, a agitação dos enfermeiros e as corridas dos técnicos para buscar material que faltava era surpreendente. O apego que os humanos tinham pela vida era admirável, observei.

— O que estão fazendo, ovelhinha?

— Estão tentando traze-los de volta a vida.

O Lobo olhava curioso como eles se esforçavam em vão.

— É essa a sensação do fim? — ele perguntou sem virar o olhar.

— Eu não sei, pois esse não é o nosso fim.

— Existem outros que voltam?

— Só aqueles que... prefeririam não voltar — respondi saindo da sala. O Lobo logo me seguindo.

Ouvi o choro daqueles que perderam seus entes queridos. Eu não entendia por qual motivo eles tanto sofriam. Por que não nos aceitavam como deveriam?

— Abraçar a vida significa aceitar a morte – sussurrei.

Nesse andar já não havia mais nenhuma marca. Precisávamos ir para outra área.  Fomos até outra ala onde algumas de nossas marcas nos esperavam. E não podíamos demorar.

Nessa ala, havia três enfermarias da quais dois pacientes mostravam nossa marca. Retirei meu arco disparando minhas flechas. Uma morte indolor é o que a Ovelha proporciona. Logo minha marca fora removida.

Eu me sentia diferente, aquelas pessoas já deviam ter partido há muito tempo e só agora que as encontrei. Tantas marcas. O Lobo parecia entender meus pensamentos. Ele se divertida muito enquanto eu tentava sentir tal emoção.

— Tenho fome, tenho fome. Que tédio, perseguir, perseguir, perseguir! — eu dizia enquanto seguia para a próxima enfermaria.

— Agora você entendeu! — o Lobo sorria me seguindo.

Quando chegamos à outra enfermaria, nossa presa era um homem de muita idade. E já não tinha mais medo de nós, não mais... Minha flecha voou em seu peito gentilmente.

— Não se mova, Lobo — eu lhe chamei atenção no momento que ele se aproximava do homem.

— Aaahhh, não atire em mim! — disse voltando para perto. — O que acontece se você errar? — me questionou duvidoso.

— Eu não sei — respondi lhe provocando. Eu não erro minhas flechas, e ele sabia disso.

Subimos o próximo andar. Uma área mais confortante que a anterior. Até mesmo a aparência dos pacientes era mais estético, mais suave. Talvez devesse ser uma ala para pessoas mais ricas, pensei.

Nossa presa estava no quarto cinco, um local privado sem luxos. O Lobo se aproximou curioso, novamente, para as máquinas ao lado do leito da pequena mulher deitada, descansando serenamente.

Eu podia ouvir sua respiração pela máscara de oxigênio fazendo aquele chiado estranho. O som dos bips do monitor cardíaco acelerou no mesmo momento que a mulher havia aberto os olhos.

Não parecia ansiosa, assustada ou desesperançosa.  Estava serena frente a nós, a morte.

— Vocês são os demônios que vieram me buscar? — ela perguntou com dificuldade. —Me diga que estou sonhando?

Pela cultura dos humanos, demônios e anjos são seres rivais criados por um Deus. Algo difícil de entender. Acreditam num Deus, mas não aceitam a morte.

— Não somos sonhos — eu dizia. — Somos o despertar.

— Se vieram me buscar, vou avisando que não quero ir — seus olhos eram confiantes —, não agora. Vocês teriam tempo para me ouvir?

— Mais palavras? — O Lobo resmungou.

— Tudo bem — respondi guardando meu arco. Estava curiosa por saber por que ela não tinha medo de nós.

— Quando mais jovem, eu era muito bela — começou. — Desejo de qualquer homem, causando inveja em qualquer mulher — deu uma pequena pausa. — Concentrei minha vida inteira nisso acreditando que podia ter tudo que quisesse. Eu pedia algo, eles me davam... Alguns com sorte ganhavam algo a mais — disse com malicia. Um sorriso discreto surgiu em seu rosto. — Mas o tempo se passou e assim minha aparência...

— A beleza definha, por isso que é bela — eu disse interrompendo-a.

— Eu sei — continuou depois de alguns segundos. — Queria ter entendido isso muito antes — seu olhar era pensativo. — Assim como minha beleza, os homens me abandonaram. Eu não tinha muitas habilidades, não pude continuar com meu luxo. Trabalhei sendo humilhada e quase sem descanso. Acabei adoecendo — deu uma nova pausa. — Por eu ter mal tratado minha família quando mais jovem não tive com quem buscar ajuda. Entrei em depressão profunda, tempos difícil.  Mesmo assim, prometi a mim mesma que não iria desistir que iria continuar vivendo para o amanhã.

— O amanhã é uma esperança, nunca uma promessa — lhe interrompi mais uma vez, fazendo-a refletir.

— Me voluntariei para um experimento, uma nova droga que prometia renovar a juventude, trazer boa saúde e proporcionar a imortalidade. Bem acho que não deu certo — suspirou.

Sua respiração estava pesava cada vez que falava mais. Pelo jeito não deveria falar tanto, conclui.

O Lobo descansava sobre meus pés enquanto eu permanecia em minha paciência até o momento certo.

— Aqueles que fogem da morte, estiveram inertes em vida — falei. O olhar dela era melancólico, mas ainda brilhante. Ainda apegada com a vida.

— Ovelha, chega de palavras! — O Lobo se levantou irritado olhando para nossa marca na mão dela.

— Sim. —concordei — Escolha agora, minhas flechas...

— Ou meus dentes — ele sorriu malicioso.

Assustada com o momento ela não conseguiu conter as lágrimas.

— Eu não quero morrer! — implorou. — Por favor, ainda quero viver, conhecer o mundo, as pessoas. Quero me desculpar com aqueles que tratei mal e...

— Sua morte reflete sua vida — a censurei.

— Por favor, eu não quero ir agora. Eu quero viver...

— Todo seu — eu abria caminho baixando meu arco.

— Meu! — O Lobo mostrou seus dentes afiados.

— Nosso — corrigi.

Ela continuou implorando enquanto o Lobo lhe devorava lentamente se divertindo com os gritos de suplicas e lágrimas.

— Não demore muito, Lobo. Há algo que desejo fazer antes de ir.

— Já acabei — ele lambeu os beiços e me seguiu para fora do hospital.

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— Onde estamos ovelhinha?

— Num local não muito importante.

— E quem é a presa?

— Dessa vez não, só viemos conversar.

—Palavras, palavras, lalala, priu, pra, priu — ele me provocava comicamente.

— Você está me imitando? — O Lobo dançou em meu corpo querendo amenizar o clima.

Entrei no enorme edifício subindo ao último andar onde é possível ter uma vista completa da cidade. Sentada a mesa única estava um homem concentrado em suas pilhas de papéis e aparelhos eletrônicos.

Normalmente pessoas como ele não podiam nos ver, mas dessa vez seria uma exceção.

— A trama e o tecer do destino guiam... hããn... ahn... como era mesmo o poema?

O homem nos ouvindo levantou o olhar e deu um grito de susto caindo com a cadeira para trás. Segundos depois levantou o olhar, assustado, pela beira da mesa.

A luz do escritório estava totalmente apagada, sendo o abajur e o computador as únicas fontes de luz existentes. Sendo assim não era possível que nos visse com nitidez. Apenas minha silhueta branca e os olhos flutuantes do Lobo.

— Quem são... O que são vocês?

— A morte às vezes é uma benção — eu dizia ignorando sua pergunta.

— O que quer dizer com isso?

— Você quebra o equilíbrio da vida... e da morte.

— Você está dizendo dos meus experimentos? Eu sei que está longe, mas logo terei os ingredientes para a imortalidade.

O Lobo grunhiu furioso.

— Abraçar a vida significa aceitar a morte.

— Por quê? Por que temos que morrer? Eu tenho certeza que se você perdesse alguém iria querê-lo de volta ao seu lado — insistiu o homem. — Imagine se essa pessoa nunca saísse do seu lado. E nem você do lado dela, não é maravilhoso?

— Isso não é vida — respondi. — Isso é apenas existir.

— Então me diga o que é viver? — Ele se erguia deixando de nos temer. — Pessoas chorando, mortes trágicas e famílias destruídas. Basta! Eu não posso permitir isso. Eu irei derrotar vocês... Morte — seu tom era ameaçador.

— Ovelhinha? — O Lobo me encarava como se pedindo permissão para devorá-lo. Não gostávamos do tom de voz dele.

— São tantas as maneiras de morrer — eu dizia acariciando a cabeça do Lobo, acalmando-o. — Fuja ou nos enfrente...

— Não importa — o Lobo completou em seu tom rouco e ameaçador.

Dentro da escuridão desaparecemos para futuramente voltar.

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— Está ai, caro Lobo?

— Sim estou.

— Está triste?

— Sim estou.

— Como é a sensação?

— De uma longa caçada sem mortes.


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Notas finais do capítulo

Aqui encerro esse conto.
Rezo para que no nosso próximo encontro, tu não tenhas a marca de Kindred.

— Por quanto tempo ficaremos juntos?
— Para todo o sempre.



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