Guarda-chuva escrita por Vênus


Capítulo 1
— Capítulo Único.


Notas iniciais do capítulo



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Eu gostava muito do seu guarda-chuva amarelo. Gostava do contraste que ele tinha com os cabelos ruivos que percorriam seu corpo e chegava até a cintura. Gostava do contraste que seus fios alaranjados tinham com o guarda-chuva amarelo e as manhãs ensolaradas. Ainda que não pudesse ver seu rosto, eu gostava muito do seu guarda-chuva amarelo.

Via-a frequentemente nos dias de semana, porém, nos fins de semana me passava de invisível, imerso em um monte de cobertores e uma xícara de café ao lado, lendo ou assistindo qualquer coisa que me prendesse a atenção. E ainda que saísse para fazer algo, eu não via. Nem você, nem seu guarda-chuva amarelo — que tanto me instigava.

Instigava a ponto de eu ir num dia desses ao porteiro do seu apartamento e indagar, em meio a cochichos:

— Por que ela usa sempre aquele guarda-chuva amarelo?

— Pois pergunte. — ele respondeu, com um sorriso encorajador.

Eu tentei. Virei pra você, abri os lábios e tentei perguntar. Mas não saía nada. Nem mesmo uma respiração emperrada, ou um suspiro derrotado. E você ainda nem me vira.

Então, hoje, eu estou saindo de casa. Não tenho guarda-chuva. Saí do elevador e, assim que fui embora do prédio, gotas frias caíram do céu e fizeram cócegas em meu nariz. Eu corri até o ponto, mas era muito cedo. Era muito cedo e eu já estava ensopado enquanto esperava o ônibus. Entretanto, 10 segundos — eu inconscientemente contei — que estava lá, você permaneceu em silêncio. Esperou até que eu me ajeitasse ao seu lado e virou-se para mim. Vi pela visão periférica e rapidamente virei-me para ti. E, naquele encontro de olhares você sorriu — atraindo minha atenção para seus lábios carnudos e adoravelmente rachados — e balbuciou algo como: “Vem aqui embaixo”.

Eu fui. Você tentou erguer o guarda-chuva e eu me curvei, porém, não era o bastante. Rimos atrapalhados e eu segurei no seu guarda-chuva, erguendo-o. Nossos dedos se roçaram e você permaneceu com sua mão ali.

— Obrigado. — murmurei, voltando timidamente meus olhos para você.

— Não há de quê.

Olhei no relógio que havia no pulso dela. Faltavam 15 minutos para que nosso ônibus chegasse. Lá, seguiríamos o caminho inteiro juntos: ônibus 1, ônibus 2, metrô 1, metrô 2, metrô 3, ônibus 3, trabalho. Eu trabalhava na metade da rua e ela trabalhava no fim. Nunca nos encontrávamos por lá, mas íamos e voltávamos juntos.

— Por que você sempre está com esse guarda-chuva amarelo?

Ela corou e pareceu nos olhar, observando a forma que estávamos encolhidos ali embaixo. Então, ergueu os olhos novamente para os meus e sorriu de forma simpática.

— Para situações como essa.

Rimos novamente, sim. E ficamos em silêncio. Não havia muito a se falar; a chuva aumentara e o som era agradável aos nossos ouvidos — ainda que molhasse a barra de nossas calças.

Olhei-a. Ela fitava os olhos castanho-claros na chuva, parecendo imersa ali. Tinha sardas pequenas que se juntavam ao redor do seu nariz, e o rosto em forma de coração. Além, é claro, do brilho melancólico que havia em sua face e dos lábios carnudos entreabertos.

— Você gosta de chuva? — perguntei, fazendo com que ela voltasse a me olhar.

— Eu amo a chuva.

Sorri.

— “Você diz que ama a chuva, mas você abre seu guarda-chuva quando chove.

Apesar de suas faces terem corado naquele mesmo instante, ela me lançou um sorriso zombeteiro.

— Citando Shakespeare de uma forma nada sutil. Eu poderia te chutar para fora daqui agora mesmo, você sabe.

Soltei uma risada baixa e desviei os olhos dos dela, focando-os em uma pequena poça próxima.

— Eu sei, mas não pude resistir. Você é meio shakespeariana.

— Digo o mesmo, pessoa... Que eu ainda não sei o nome.

— Louis.

— Amélie.

— Lindo nome. — comentei; e acrescentei em seguida: — Bem shakespeariano. Imagine só...

— Não...

E naquela manhã chuvosa em uma das ruas menos movimentadas na França, em um ponto de ônibus, Louis e Amélie enfim se encontraram...

— Acho que eu não deveria ter te trazido aqui, Louis. — ela retrucou, ainda que sua voz denunciasse risos.

Dei de ombros, com um sorriso irônico. No entanto, tornamos a ficar em silêncio após aquela provocação que havia no ar.

Infelizmente, minutos depois, nosso ônibus chegou. Eu não queria... Sair dali. Porque eu sabia que se saísse, as coisas voltariam a ser como antes, e talvez amanhã não chovesse. Talvez os raios de sol que antes eu adorava tornassem eternos, porque é assim que a vida faz. Nos dá uma amostra de algo que temos certeza que pode nos tornar pessoas felizes. Depois, tira. E era isso que a vida estava me fazendo agora, enquanto eu voltava meu olhar para o seu rosto e tentava não expressar saudade naquele olhar. Amélie parecia sentir o mesmo.

Ela fechou o guarda-chuva.

Quando as portas do ônibus se abriram, o motorista parecia animado demais para um dia qualquer de semana. Principalmente por ser de manhã. Estranhei. Olhei de relance para Amélie, e ela parecia estar igualmente confusa. O motorista, claramente notando nossos olhares e, principalmente a roupa que vestíamos, desatou a soltar uma gargalhada.

— Por Deus... Não me digam que vocês esqueceram que hoje é domingo.

Franzi o cenho.

— Não, senhor. Hoje é segunda.

— Louis. — Amélie me chamou, antes que o motorista respondesse. — Acho que ele está certo. Olhe para o ônibus.

De fato. Quando meus olhos voltaram-se para as janelas do ônibus, constatei que estava errado. Absurdamente. Mulheres, homens e crianças pareciam animadas demais naquele horário, com roupas que ninguém usaria para, digamos... Um dia de trabalho. Também não notei ninguém que costumava andar de ônibus nos dias de semana.

O motorista, agora bem humorado por estar certo, nos chamou a atenção:

— Vocês vêm?

— Onde? — ela perguntou; o guarda-chuva fechado pendendo em uma de suas mãos.

— Passear, ora essa.

Negamos. Mais uma vez ele insistiu, e felizmente não chamou o ônibus inteiro para que o fizesse. Não dava para passear, ir a praças e centros com uma maleta de trabalho na mão. E não dava para desperdiçar um dia de domingo na cama. Uma das coisas consideradas mais felizes era acordar e ver que tinha mais horas para dormir. Esse era um sentimento parecido. Até mesmo igual.

Entretanto, quando o ônibus partiu, algo me corroeu por dentro. Sabia que, se tivesse aceitado e insistido para que Amélie fosse comigo, teríamos um dia diferente.

Ficamos parados, num silêncio sem jeito.

Observei-a. Esse momento poderia ser clichê, mas pareceu a coisa mais única da minha vida quando os raios de sol — atravessando as nuvens cinzentas que agora se afastavam aos poucos e deixando uma garoa agradável molhar a cidade — tocaram os fios ruivos e úmidos dela, cheios de gotículas brilhantes.

Amélie, notando meu olhar, sorriu e balançou a cabeça antes de murmurar:

— Deveríamos ter ido.

— Deveríamos.

— Por que não fomos?

Franzi o cenho, ponderando sua pergunta. Fazia muito tempo desde que eu ouvia uma indagação tão inocente e baixa, vinda de alguém centímetros mais baixa que eu, mas que havia me emprestado o guarda-chuva amarelo. Dei de ombros, mas sorri. Não demorou para que ela retribuísse o sorriso. Vendo sua expressão desanimada, tive uma ideia e comecei a andar enquanto murmurava:

— Se não vamos de ônibus, vamos de pernas.

— Isso é um ditado ou algo do tipo? — ela indagou sarcasticamente, mas pude notar um resquício de riso em sua voz.

— Pode ser um ditado só nosso. Não acho que mais pessoas no mundo, principalmente duas, iriam esperar o ônibus no ponto para trabalhar sendo um dia de domingo.

— Oh. Estou honrada por isso, eu acho.

Continuamos andando, em silêncio. Mas agora o silêncio era agradável e eu podia apreciá-lo, assim como apreciava os passos lentos sobre a calçada ao lado de Amélie e os raios de sol, que transmitiam um calor igualmente agradável. Nisso, pensei no que falar. Coisas assim não aconteciam todos os dias, e geralmente eu beberia álcool para começar qualquer assunto que me colocasse numa situação indecifrável assim. Gostaria de saber se ela gostava de flores. Ou de comer chocolate nos fins de tarde. Se ela assistia todos os gêneros de filmes ou se encolhia no sofá, junto a alguma almofada ou até mesmo com alguém enquanto assistia a filmes de terror. Porque ela tinha liberdade para isso. Gostaria de saber se ela era alérgica a alguma coisa, mas não se chega numa pessoa perguntando se ela tem alergia. Também não se chega perguntando se ela já havia comido algum chocolate delicioso enquanto tentava se equilibrar no meio-fio. Não se pode indagar, de repente, se ela por acaso tentara ouvir The Doors ou Seafret num fim de tarde parecido com essa manhã, tomando um café quente o suficiente para que a aquecesse por dentro, sem que queimasse ou machucasse.

Mas não foi assim que o rumo da conversa seguiu, pois, num impulso, comecei:

— Seu guarda-chuva amarelo sempre me intrigou. Não posso mais esconder isso. Queria saber o motivo louco que você tem para carrega-lo até nos dias mais quentes. Até no dia que não tem previsão alguma de chuva. Mas o que mais me intriga é ficar intrigado. Eu não sou disso, francamente... Vejo as coisas sem realmente ver. Mas eu realmente vejo você. Então, além de saciar minha curiosidade, eu quero v...

— Esse guarda-chuva — ela me interrompeu, antes que eu concluísse enfim a maluquice que estava dizendo. — Tem uma história.

— Uma história? — parei, fitando-a com curiosidade. Ela também parou, com um sorriso calmo esboçando em seus lábios.

— Sim. De uma pessoa que queria ser notada por alguém que não via nada. Acho que ela vai se concluir em breve.

— Tenho certeza. — comentei, tentando parecer sério enquanto um novo sorriso brotava em meu rosto.


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Notas finais do capítulo



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