Enquanto você dormia escrita por Any Marie Whitlock


Capítulo 6
3 Capitulo




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Só conheci a mulher que viria a transformar minha vida na segunda semana que passei no castelo. Foi um encontro que permanece vívido até hoje em minha memória, pois foi a primeira vez que vislumbrei as trevas que espreitavam por trás do aparato da corte. O primeiro pequenino passo na perda da minha inocência.

Eu havia passado os dias anteriores seguindo os passos de Rosalie, cuidando dos quartos das damas de companhia da rainha. Havia cerca de uma dúzia dessas mulheres. Esperava-se que servissem de acompanhantes, mas, na ausência da rainha, elas se dedicavam sobretudo aos flertes e às intrigas.
Com cautela, eu tinha começado a assumir sozinha algumas tarefas: levantar antes do amanhecer para varrer as cinzas da noite anterior e acender as lareiras novamente, esvaziar urinóis, encher bacias com água fresca, buscar na cozinha bandejas com o café da manhã e entregá-las no horário em que cada dama acordava. Com a ausência da rainha e de suas acompanhantes mais íntimas, o trabalho era menos duro que de hábito, mas toda noite eu desabava de exaustão, fatigada tanto do esforço para me adaptar quanto das tarefas em si. Deitada na cama, no escuro, eu ansiava por pedir conselhos à minha mãe. Muitas vezes, o fato de não poder fazê-lo me levava a soluçar de sofrimento. Eu abafava o som com o travesseiro, para não incomodar Rosalie e as outras criadas adormecidas.
Apesar de minha agitação interna, consegui cumprir meus deveres com competência suficiente para que a Sra. Norton concordasse em passar Rosalie para o Grande Salão, onde ela serviria refeições. Rosalie mal podia conter a alegria por deixar os urinóis para trás.
— Você ainda não foi liberada – advertiu a Sra. Norton. – Quero que ajude Branca por mais algum tempo, para ter certeza de que o trabalho dela é aceitável.
Mas, quando chegou a comitiva real de viajantes, um dia antes do esperado, fomos apanhados desprevenidos.
— Um dos homens do séquito da rainha acabou de chegar! – gritou um lacaio no Salão Inferior, onde eu estava terminando minha refeição do meio-dia.
— A carruagem dela está a poucos minutos dos portões!
Subi correndo os lances de escada até a sala de estar da rainha, para ver se podia ajudar em alguma coisa. Havia duas criadas varrendo o chão e polindo as cadeiras. O cômodo era enorme, em consonância com a posição de sua dona, e adornado com objetos que o deixavam bem feminino. Nas paredes havia tapeçarias que retratavam donzelas em roseirais e no espaldar de cadeiras altas de madeira havia imagens de flores entalhadas.Num canto ficava uma harpa e em outro uma mesa com pilhas bem arrumadas de tecidos e linhas coloridas. Por uma porta no fundo do aposento, pude ver a cama de dossel da rainha, em solitário esplendor, cercada por cortinas de veludo púrpura.
A Sra. Norton apareceu atrás de mim e meneou a cabeça em sinal de aprovação.
— Ótimo, ótimo – murmurou. – Agora, para as cozinhas. Talvez a rainha queira um banho depois da viagem, e precisaremos de muita água quente.
Eu já ia seguindo as outras moças porta afora quando a Sra. Norton pôs a mão no meu ombro.
— Branca, acenda o fogo – ordenou. – Ainda há uma friagem no ar.

Os anos à beira da lareira de minha família tinham me ensinado a melhor maneira de produzir uma chama com gravetos e mecha, e minha habilidade já havia me rendido elogios e inveja entre as outras criadas.Ainda na véspera, a Sra. Norton tinha decretado que eu deveria, pela manhã, acender o fogo nos quartos de todas as damas da nobreza, inclusive no da rainha, quando ela retornasse. Para meu horror, constatei que a lenha empilhada na cesta junto à lareira da rainha tinha um toque de umidade, e o fogo demorou mais do que costumava para pegar. Apenas uma única e mísera chama tinha se firmado quando ouvi um vozerio em tons agudos aproximando-se pelo corredor. Levantei-me e encostei-me bem à parede quando o grupo de damas entrou. Mantive os olhos baixos, mas ergui-os apenas o suficiente para ver um alvoroço de saias. Um aroma floral correu na minha direção quando elas passaram.
— Milady, esse fogo mal acabou de ser acendido – disse alguém perto de mim. – Talvez devamos recolher-nos a um lugar mais quente.
— Está bom assim – retrucou uma voz distante e cansada.
Levantei os olhos na direção do som, mas minha visão foi barrada por uma senhora mais velha, que me fitou com uma expressão acusadora, lábios espremidos de reprovação. Seu nariz afilado parecia capaz de me perfurar se eu não andasse depressa o bastante.
— Prossiga, então! – ordenou, acenando com a mão para a lareira.
— Senhora, não posso apressar a chama – tentei explicar, mas minha resposta deve ter sido julgada impertinente, pois a mulher acertou-me a orelha com o dorso da mão.
— Não tolerarei nenhuma gracinha sua – rosnou. – Cuide das suas obrigações. Prostrei-me de joelhos e acrescentei outro pedaço de lenha à lareira, virando de costas para que ela não pudesse ver meus olhos se enchendo de lágrimas. Eu havia falado sem pensar, estragando qualquer possibilidade de causar uma boa impressão na rainha. Será que me poriam na rua por algumas palavras irrefletidas?
— Deixe a moça em paz, Katherine – falou a mesma voz baixa que eu ouvira antes.
A mulher à minha frente devia ser lady Katherine Petrova, que Rosalie me dissera servir de primeira dama de companhia da rainha e ser sua companheira mais íntima. Não duvidei da capacidade dessa mulher de manter a ordem naqueles aposentos; alguns minutos a seu lado e ela já me dava medo. Mexi com o atiçador na chama que crescia, virando ligeiramente o corpo para ter um vislumbre do cômodo atrás de mim. Lady Petrova andava de um lado para outro, ditando instruções a um rapaz que usava a túnica roxa e verde dos pajens. Ele assentia continuamente com a cabeça, mas, pela expressão em seu rosto, perguntei-me de quantas daquelas ordens se lembraria.
 – Traga da torre as pombas da rainha, e certifique-se de haver água nas vasilhas delas. As de ouro, não as de prata.
— Sim, senhora – retrucou o pajem.
— Depois, diga à cozinheira que milady está com um mal-estar estomacal por causa dos dias de viagem. Mande-a fazer um caldo simples para o jantar...
Olhei para um ponto além de lady Petrova, na direção do círculo de cadeiras dispostas em frente à lareira. No centro havia uma cadeira maior e mais larga que as outras, com o assento coberto por uma almofada de veludo dourado. Quatro damas de vestidos cintilantes encontravam-se em pé em torno dela, conversando em vozes rápidas e alegres. Parcialmente ocultada por elas estava uma mulher com um vestido preto simples, sentada. À primeira vista eu poderia tomá-la por uma freira. Apenas as joias entremeadas em seu cabelo a distinguiam como membro da realeza.
Então essa era a rainha Renne. Naquele aposento agitado ela se conservava muito quieta, distante da comoção a seu redor. Até o cabelo preto e a tez clara a destacavam da cor clara de suas damas. Ela apresentava o porte e a elegância de uma aristocrata , mas seus olhos negros tinham a expressão de alheamento que eu vira em muitas mulheres de lavradores, esgotadas pelo trabalho. Eu nunca havia esperado ver tamanha tristeza numa pessoa tão abençoada.
Olhei para lady Petrova, perguntando-me se ela indicaria quando o fogo lhe parecesse aceitável. Captando meu olhar, ela virou o rosto, irritada.
— Está dispensada – falou. – Certifique-se de que o fogo esteja aceso antes do amanhecer. Milady levanta-se com o sol.
— Sim, senhora – respondi.
Fiz uma rápida mesura e me retirei, tranquilizada por ver que conservaria meu emprego, afinal. Mais tarde, nessa noite, contei a Rosalie que havia ficado surpresa com o abatimento da rainha.
— Ela é sempre assim?
— Pssssiu! – Kate, a criada que dormia do outro lado de Rosalie, acordava com facilidade e se queixava frequentemente do barulho no quarto das criadas, depois de escurecer.
— Psiu você! – sibilou Rosalie.
Não havia nada de que ela gostasse mais do que os mexericos da corte, e silenciá-la exigiria mais do que as reclamações de Kate pedindo silêncio. Rosalie virou-se para mim e cochichou:
— Você devia ter visto a rainha logo que ela se casou. Ela mudou muito desde então.
— Você estava aqui?
— Eu era só uma menina, mas minha irmã mais velha trabalhava no castelo – disse Rosalie. – Durante anos, pelo que ela contava, foi um lugar muito maçante. O antigo rei, pai de Carlisle, tinha se fechado depois da morte da mulher, e o rei Carlisle e seu irmão, o príncipe Marcus, raramente ficavam em casa. Preferiam procurar novidades noutros lugares. Não há dúvida de que o rei teve sua cota de conquistas nessas viagens, mas chegou o momento em que se esperava que ele cumprisse seu dever e se casasse.
Diz a lenda que o velho rei apresentou-lhe uma lista de jovens do reino que eram boas candidatas. Ele só teria de apontar um nome para que uma delas fosse sua. Mas Carlisle disse ao pai que seu coração pertencia a uma moça de um país distante, tão distante que o velho rei não conseguiu situá-lo no mapa.
Desde o momento em que a havia conhecido, Carlisle não aceitaria nenhuma outra. Já imaginou?
Amor à primeira vista.
Sorri ao saber que essas coisas eram possíveis.
— Nenhum herdeiro do trono já se casara com uma estrangeira. Dizem que a família da rainha ficou igualmente hesitante em mandar a filha para tão longe de casa. Mas ela era a caçula, e muito mimada, então o pai cedeu a seu desejo.
— Você viu algum dos festejos?
— A princesa Renne dormiu no Convento de Santa Agnes na véspera do casamento – respondeu Rosalie. – Seu cortejo passou pelo vale de manhã e o povo deu vivas e jogou flores na carruagem dela. Fiquei na rua observando, com meus pais, e nunca tinha testemunhado tamanha comoção. A princesa manteve o rosto coberto, como é de costume, mas pôs a mão para fora da janela e acenou, e por pouco não desmaiei de emoção.
— Quando a carruagem chegou ao portão principal do castelo – prosseguiu –, o velho rei saiu pessoalmente para recebê-la e escoltá-la para dentro.
A cerimônia foi realizada na capela, com a presença apenas das famílias da mais alta nobreza. Mas em seguida, antes do banquete, o rei Carlisle pegou a noiva pela mão e a levou para o Salão Dourado. Eu soube pela criada de uma das damas da corte que os dois riam feito crianças. Carlisle abriu as portas que dão para o pátio do castelo e para a cidade e levou a esposa até a sacada.

“Apresento-vos vossa futura rainha!”, anunciou.

Minha irmã estava no pátio, preparando mesas de comida e vinho para o banquete da criadagem, e disse que eles eram o casal mais lindo que ela já tinha visto. Tínhamos ouvido falar dessa estrangeira que traria costumes perversos para nossa terra, mas ela encantou a corte inteira, a partir daquele momento. E seu marido também. Pelo que eu soube, a noite de núpcias do casal durou até o dia seguinte.
— O quê? – reagi, perplexa.
— Os criados certamente não falariam de assuntos tão particulares, não é? Rosalie riu e disse:
— Não só os criados!
As duas famílias esperavam um relatório sobre a consumação. A notícia de que o rei Carlisle mal conseguiu se afastar dos braços de sua mulher foi vista como um bom presságio.
Rosalie ficou calada por alguns momentos, e me perguntei se teria pegado no sono. Ela bocejou, ajeitou o travesseiro e continuou:
— O velho rei morreu não muito depois do casamento, e, terminado o período de luto, começou a haver eventos grandiosos toda semana: torneios, cavalgadas, bailes. Qualquer um descreveria o rei e a rainha como o casal mais feliz do mundo. Quando comecei a trabalhar no castelo, um dia os vi juntos em seu quarto, de mãos dadas como jovens namorados.
Durante as refeições ela lhe oferecia pedacinhos de comida do seu prato ou limpava vestígios de alimento da boca dele. Mas faz tempo que isso não acontece mais. Desde que ela se revelou infértil.
— Ah, não... – murmurei
— Durante oito anos o rei esperou em vão por um herdeiro – disse Rosalie. – Hoje em dia a rainha passa um tempo enorme consultando médicos. E, agora que o rei só se deita com ela uma vez por mês, é ainda menos provável que ela venha a conceber.
— Uma vez por mês? Como você sabe?
— A lavadeira que troca a roupa de cama informa lady Petrova toda vez que há relações. Suponho que não seja de admirar que a rainha tenha entrado em desespero.
— O que você quer dizer?
— A peregrinação dela – respondeu Rosalie, pronunciando a palavra com desdém.
— Pensei que ela tivesse ido visitar uma fonte de águas termais, para cuidar da saúde.
— Essa é a história oficial, mas eu soube pela criada de lady Petrova que as senhoras foram a um santuário nas montanhas. A rainha deve estar prestes a perder a esperança, se foi implorar a intercessão de uma santa com quem só os camponeses se importam. Especialmente se, para isso, precisou passar uma semana na companhia da senhora Athenodora. – Rosalie arrastou esta última palavra, com a voz carregada de desprezo.
Será que um arrepio de alerta perpassou meu corpo, na primeira vez em que ouvi esse nome fatídico? A história seria mais dramática se eu pudesse dizer que tive tal reação. Na verdade, porém, fiquei mais curiosa do que apreensiva.
— Quem?
— Ah, esqueci que você ainda não a viu. Lady Athenodora, a tia solteirona do rei.
Muitas solteironas viviam da generosidade do rei, a maioria composta por senhoras irritadiças que reclamavam o tempo todo da lareira que estava muito fria ou da comida quente demais quando tinham a sorte de dispor de um teto para morar. Mas o endurecimento da expressão de Rosalie mostrou que essa mulher era uma presença mais temível do que as outras.
— Foi ela quem convenceu a rainha de que uma semana de orações numa capela enregelada curaria o ventre dela – continuou Rosalie. – O rei foi contra. Disse que Deus ouviria igualmente bem as orações dela na capela real. Mas Athenodora impôs sua vontade, aquela bruxa velha.
Mal pude acreditar que uma criada falasse de forma tão desrespeitosa a respeito de um membro da família real.
— Desculpe-me, eu não devia ter dito uma coisa dessas – falou Rosalie, arrependida, ao ver o meu susto. – Não estou querendo dizer que ela faça feitiços em um caldeirão, embora alguns acreditem que seja capaz dessas bobagens. É melhor evitá-la, só isso. Ela se ofende com facilidade e quem a aborrece paga um preço alto. Levou a própria irmã à loucura, dizem.
— O que aconteceu? – perguntei. Rosalie balançou a cabeça, descartando minha pergunta e o assunto.
— Já falei mais do que devia.
Deu-me as costas e se deitou, o cabelo esparramado no travesseiro reluzindo na escuridão. A respiração pesada e o som das outras criadas se remexendo na cama lembraram-me que não estávamos sozinhas, que eu precisava prestar atenção ao que dizia.
— Rosalie? – sussurrei.
— Hum?
— Talvez ainda haja esperança para a rainha. Vou rezar por ela.
Eu não esperava uma resposta, mas, passados alguns momentos, o murmúrio de Rosalie rompeu o silêncio:
— Meu pai diz que é praga de família. Volta e meia o destino do reino fica na dependência da vida de um único menino. O pai do rei foi o único filho sobrevivente de seus pais, assim como seu pai antes dele. O rei e o príncipe Marcus foram os primeiros irmãos, em gerações inteiras, a chegar à idade adulta. Todos achavam que eles inaugurariam uma nova era de prosperidade. Mas os dois continuam sem filhos.
Criada numa família numerosa, eu estava acostumada a gritos, tagarelices e choro de bebês. Seria a falta desses sons que tornava tão lúgubres os vastos corredores do castelo?
— O príncipe Marcus herdará o trono, se o rei não tiver filhos? – perguntei.
— Acho que sim.
— Pobre rainha Renne. Não é de admirar que ela pareça triste.
O que eu não sabia, nessa época, era que o sofrimento da rainha era muito mais profundo do que eu jamais poderia imaginar. Minha juventude não me permitia compreender como a jovem e radiante noiva da história de Petra tinha se transformado na mulher retraída que eu vira sentada diante da lareira, pois eu nada sabia do que uma mulher desesperada é capaz de fazer para ter um filho.


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