Palco de Loucos escrita por AceMe


Capítulo 1
Capítulo Único - O Ato Final.


Notas iniciais do capítulo

Olá a todos! Obrigada por se disporem a ler. Espero que gostem.
Boa leitura, ;)!



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Morishige largou o celular no chão de madeira gasta, trêmulo. A foto do corpo que foi esmagado contra a parede da enfermaria ainda estava lá, divertindo-se com seu terror. O jovem praticamente mordia a mão de nervoso.

“Shig” Dizera a tela com aquela voz doce e suave que conhecia bem, como se fosse uma ligação, mesmo não havendo sinal na escola. “Por favor, não olhe minhas entranhas. É constrangedor.”

Shig... Só uma pessoa o chamava assim. Aquilo só podia significar uma coisa. O tranquilizante que sempre esteve presente naquela singela voz não ajudou em nada para acalmá-lo.

—Mayuuu... Nãooo!!!

As mãos passaram da boca para os cabelos escuros. Nem percebeu quando lágrimas começaram a escorrer pelo rosto. Tudo o que queria fazer era gritar. Estava em pânico. As pernas cederam, mas o choque dos joelhos contra o chão não foi nada comparado à apunhalada que acabara de levar.

Morishige esteve procurando Mayu desde que se encontrou nos corredores daquela escola amaldiçoada. Imaginava-a encolhida em algum canto, pondo-se a chorar, e ele chegando, como um verdadeiro príncipe azul protegendo sua princesa indefesa do mal que a assola, como em um dos famosos contos infantis dos irmãos Grimm.

Em vez disso, se descobriu em uma tragédia shakespeariana.

Em nenhum momento a escuridão da escola que o possuía se mostrou tão forte como naquele momento. Aquela escuridão que o havia feito gostar tanto dos cadáveres espalhados e de seus sofrimentos pós-morte. Aquela escuridão que o havia feito sentir-se de uma forma especial por aquele corpo estraçalhado. O corpo que, sem ele saber, era de Mayu, a menina que tanto procurava. Esperava, como já estava preso naquele Teorema Shakespeare, que fosse tudo como em “Conto do Inverno”.1Que Mayu, assim como Hermíone, voltaria dos mortos para os braços de Leonte, no caso, Morishige.

Mas não. Aquilo não era uma tragédia comum. Era uma tragicomédia. Uma tragicomédia criada pela aura de Heavenly Host para saciar o desejo de Sachiko por um bom humor negro. Naquele instante, soube que o inferno estava vazio e que era ali onde estavam todos os demônios2. Ou isso ou todas as religiões estavam erradas ao descreverem suas dimensões para onde eram mandados todos os pecadores. Heavenly Host era o inferno de verdade.

Morishige era um ator. Frequentava o clube de teatro da Academia Kisaragi. Mas nunca se imaginou interpretando um papel daquele jeito, em uma peça como aquela. Afinal, aquilo só podia ser uma peça. E de muito mau gosto. E ele só podia estar atuando. Porque aquele maníaco que remexeu as entranhas de Mayu por prazer não era ele.

Contra a própria vontade, voltou seus olhos para o celular. A foto ainda o encarava. A consciência poderia estar quase completamente consumida pela escuridão, mas Morishige ainda ocupava o subconsciente. O subconsciente que se lembrou de todos os momentos felizes com Mayu e como estava triste por dentro pela transferência da amiga. Que se lembrou de como ela o apoiava para que não desistisse do teatro que tanto amava só por não ter contatos que o poriam no papel principal. Como ela tinha o poder de simplesmente botar o humor dele para cima independente do que tinha acontecido.

A morte dele começou com a morte dela, mesmo sem ele saber. E quer saber? Que se dane o mundo. O espírito de Mayu estava preso naquela escola. Ele não podia deixa-la sozinha lá; prometera a si mesmo que a acharia e ficaria com ela. Tinha que morrer de uma forma dramática ali mesmo. Simplesmente tinha que fazê-lo.

Com uma força que realmente não sabia de onde tirou, Morishige finalmente pegou o celular, apagou a foto atormentadora (Não poderia deixar as entranhas registradas para quem encontrasse o objeto) e colocou para filmar. Posicionou o aparelho no chão de forma que pudesse captar bem a janela. Havia forma mais dramática de se matar do que deixando uma nota de suicídio?

Feito isso, virou-se para caminhar lentamente em direção à janela, a aura negra cada vez mais visível, apoderando-se completamente do corpo. À mente, no entanto, só vinha a imagem da feição tímida e sorridente de Mayu. Morreria pensando nela.

Ao chegar à janela e sentar-se na beirada, Morishige se deteve por um tempo antes de se jogar. Por um instante, passou-lhe pela cabeça que aquilo poderia estar sendo como Romeu e Julieta3. Romeu acredita que seu amor está morto quando tudo não passa de um mal entendido e morre antes de descobrir a verdade. Julieta reaparece e, ao perceber que seu amor suicidou-se, comete suicídio também, para que suas almas pudessem ficar juntas.

Mas isso não durou muito tempo. Seria impossível. Já procurou Mayu pelos quatro cantos da escola e o único sinal que o alertou da presença dela lá foi a comunicação paranormal feita há pouco. Não. Era isso mesmo. Ela estava tomando chá com a morte e ele ia ao encontro delas. Afinal, por tudo quanto havia lido ou das lendas e histórias escutado, em tempo algum teve um tranquilo curso o verdadeiro amor4.

Morishige esticou bem os braços antes de deixar o peso pender para frente, como se fosse um ator agradecendo ao público no final de uma peça. Seu público invisível, cujas lágrimas de emoção eram a cortina de gotas que formavam aquela tempestade eterna. Não era para menos. O mundo inteiro é um palco e todos os homens e mulheres não passam de meros atores. Eles entram e saem de cena, e cada um, no seu tempo, representa diversos papéis5. O papel que interpretara naquela dimensão era bem diferente do seu original. Porém, em seu ato final, teve o que esperava ser sua única e valente morte6.

Em seu último sopro de vida antes de atingir o solo, Morishige jurou ver Mayu de braços estendidos, sorrindo-lhe triste, como se estivesse amortecendo sua queda e dando-lhe boas-vindas ao mundo dos mortos. Por entre o barulho da chuva caindo quase podia distinguir seu usual “Shig”.

E maldito seja Shakespeare por tudo isso.


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Notas finais do capítulo

1-Peça escrita por Shakespeare entre 1610 e 1611. Nela, em um dos núcleos, Leonte manda sua esposa, Hermíone, ser presa. Ela morre nessas condições e ele se sente profundamente arrependido. Anos depois ela reaparece e os dois fazem as pazes.
2-Referência à famosa frase retirada da peça de Shakespeare “A Tempestade”
3-Romeu e Julieta eu nem precisava falar, mas vou fazê-lo mesmo assim. É uma das mais famosas histórias de amor, não só do Shakespeare, como também do mundo. É sobre um casal de amantes que não podem ficar juntos em vida por causa da rixa entre as famílias e acabam morrendo por isso.
4-Frase faz referência à peça “Sonho de Uma Noite de Verão”, de Shakespeare.
5-Essa frase vem da obra de Shakespeare: “Como lhe Aprouver”.
6-Referência a uma citação de Shakespeare da peça “Júlio César”

Quando vi que Morishige era do clube de teatro e que ele ficou um "maníaco dos corpos" em Heavenly Host, comecei a imaginá-lo pegando um crânio e declamando "Ser ou não ser, eis a questão". E achei isso tão a ver com ele que acabei chegando aos devaneios que transpus aqui. Espero que tenham gostado.
Até a próxima, ;)!



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