Cancro & chaos escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 9
Não questione, eles disseram




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Após longos descansos atemporais e numa sonolência gostosa de se levar, Rímel veio conversar comigo. Todo diligente, na sua suposta “calma”.

Sentou e ficou olhando para mim. Ele tinha trazido comida há pouco tempo e eu estava saciado como se passasse longas horas num banquete. Após agradecer a refeição, questionei-o sobre um assunto que coçava a parte interna da minha cabeça. Arrepiando a parte esquerda, exterior, dela.  

— Todos os parentes da foto moram aqui com você? — Apontei o dedo. sem precisar de muito esforço, para o retrato, eu já estava melhorando — É tão silencioso aqui.

— Não... — Desviou o olhar por um momento relevante, tentou disfarçar mexendo a cabeça, o quê tornava a expressão mais significativa —Só mora comigo a minha irmã.

— O silêncio da casa é só por minha causa?

— Interrupções e barulhos podem ser péssimos condicionadores de um mal sono.

— Agradeço, mas já descansei o... — Fui interrompido subitamente.

— Eles sumiram!

Recapitulei a frase, pensei e retomei:

— Sumiram?

— Um dia estavam todos aqui e depois não mais...

A entonação e o vozerio de Rímel extinguiu-se. A tristeza veio na parte mais aguda da alma, aquela que dói quieta, arranhando, um incômodo constante, aquela que, às vezes, até nos acostumamos. Eu via tudo naquela face presa nalgum universo paralelo, onde ele e a família vivem felizes, governados por borboletas e não por homens.

Minha empatia era colossal com todo o sentimentalismo; eu havia sentido na pele não só uma vez, porém, duas, para não dizer todos os objetos que perdi ao longo da vida para algum fantasma sem nome; amores, coisas, adeuses, lembranças... Quem está nos roubando?

Abri-me com um asco na garganta, enquanto isso toda a hospitalidade de Rímel surdia com significado, era uma forma de aquietar a solidão e arquitetar algum tipo de redenção; eu sentia culpa nas suas palavras.

— Eu também perdi parte da minha família. Meus pais sumiram e a minha casa se foi.

Rímel levantou a cabeça, prestando uma atenção aguçada nos meus complementos.

— Por isso eu vago por aí sem lugar para ir. Minha vó já sofreu o bastante me criando, meus parentes digladiaram para não me pegar quando criança, agora, desenvolvido, acham que me querem? Não tenho namorada, não tenho nem mais trabalho. Às vezes, vem de lugar nenhum, uma saudade torturante. Traça frequente. Come tudo dentro de mim e quando eu acho que ela já foi embora, algo me faz lembrar que estamos sendo enganados por algo, alguém ou nós. Meu coração fica espicaçado. A minha única opulência vem dum saudosismo pessoniano. Onde foi parar o futuro?

— Você procurou saber o quê aconteceu com os seus pais e casa?

— Eu me acostumei. Eu aceitei... — Arregalei os olhos e repeti, elucidando-me — Eu aceitei... — Olhei atento ao Rímel, questionei aflito no meu retorno ao caos íntimo — Você aceitou?

— Como eles querem que nos aceitemos.

Abrupto, soltei:

— Eles ?!

— Precisamos de alguém para culpar, não é? Culpamos o sistema e forças ocultas que se comprazem com a nossa queda. Para justificar tudo e tirar a ideia da minha culpa por ter ficado, criei teorias e passei a acreditar nelas. Não é isso o quê os homens fazem desde os primórdios da civilização? Acreditar tanto numa mentira até que ela se torne verdade? Defendê-la com unhas e dentes até que não reste o quê defender e nem os dentes e unhas. — Fez uma pausa, passou os olhares pelo quarto e continuou — Nas guerras mundiais, não só a primeira e a segunda, lembrando as outras ocultadas pelo tempo, milhões de pessoas foram arrastadas de suas casas por forças militares, para lutarem numa guerra sem ricos nem lustrarem berettas. Quem sabe essas pessoas que sumiram estão sendo utilizadas nalgum campo longe dos nossos olhos? Ou, alienígenas... — mostrou os dentes numa amostra de sorriso forçado — É cômico, mas, ufologia me trouxe visão. Nós somos os alienígenas dessa terra. Não somos? Queremos coroa e dominação enquanto a natureza sangra. E não é leite ou mel. Louva-se algum deus que ninguém sabe onde mora e estão por aí matando ele com cada embalagem de bala descartada errada. Discurso moralista, né? Talvez, o quê restou seja isso ou rebeldia. Bipolarização de merda.

— E se nossos parentes estiverem aí fora esperando serem encontrados?

Olhou-me desiludido, retrucou com a boca semicerrada.

— Eles morrerão aí fora...

Descobri-me, quente, eufórico, pus os pés descalços no chão de madeira e dissertei:

— De onde vem essa nossa aceitação de tudo? Como simplesmente aceitamos o mundo em que vivemos? Quem pôs a ideia de imutabilidade na nossa cabeça enquanto vemos, dia após dia, nossa pele enrugar? Mesmo que não encontremos paz ou eles... Qual sensação é melhor? Ir atrás e nada acontecer ou ficar e não conhecer o quê poderia ter acontecido, mesmo que seja o nada.

Rímel fitava-me levemente boquiaberto, sem se perdoar. Disse:

— Você pode ficar até o fim do dia. Pela manhã eu trancarei a casa. Temos famílias a encontrar, não é?

Abri um sorriso meio sem jeito, pobre, mas, real. Natural no meu aspecto taciturno. A euforia mascarava o buraco negro que me puxava.

Rímel preparava-se para levantar, quando a sua irmã apareceu na porta... E, meu Deus, eu podia sentir toda aquela explosão energética que emergia do seu peito. Sabe quando parecemos conhecer muito alguém, sentindo-se bem e confortado na presença, mesmo tendo consciência que é a suposta primeira vez que vê certo alguém?

Estava encostada na porta, com uma blusa sem manga, branca, um short acima do joelho, com os pés nus, os cabelos loiros esvoaçados e um olho azul que eu reconheceria no horizonte. Estava no famoso padrão de beleza esbelto e corpulento... Senti-me mal, inicialmente, por ser atraído por aquelas curvas... Senti que eu era objeto de manipulação de algum preceito estético inserido na minha mente. A velha sensação de estar cego ao ver com olhos de vidro.

Tinha um modo de falar cômico, acelerado, quebrando a minha idealização de voz melódica e lenta. Parecia se engasgar com as palavras, sem nem ao menos errá-las. Só falava rapidamente, tentava ignorar a minha presença.

— Rímel, a Fabiana está aí embaixo procurando você.

Ele levantou foi até a sua irmã e disse em voz baixa, porém, perceptível.

— Leve-o para tomar um café na cozinha... Eles passou por maus bocados.

A mulher carregou os olhares por cima dele até o mesmo desaparecer do cômodo. Voltou os olhares a mim, veio ao meio do quarto e falou:

— Meu nome é Carla! Você aceita café?

Acenei convicto. Chamou-me:

— Desça comigo.

E lá estava eu, mimado como um adolescente hormonal; quase acorrentado à ideia capital que dava cambalhotas e mortais no meu âmago: Toda a atração que senti ao longo da minha vida foi acompanhada por funestos encargos mentais, de autoinferiorização.  No meio de todo o caos, eu sentia algo que não podia explicar. Sentia-me transtornado, pois, sempre estive analisando meus pensamentos e eu não conseguia explicitar o que via ali.

Pode não acreditar, mas, havia mais do que atração física espontânea. Desci as escadas. Simbólico momento.

Ainda assim, paradoxalmente, os momentos seguintes em que passei com Carla não foram movidos por um acanhamento robusto como eu esperava.


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