Cancro & chaos escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 16
Malthus não passou fome ou O mito da caverna




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Era talvez quinta ou sábado, provavelmente algum dia nesse intervalo. Eu percorria a minha própria via crúcis. Conheci nesse intermeio pessoas que me cumprimentaram por filho, sujo, rato, flor e irmão. Vamos tendo nossos tratamentos e só somos afligidos se permitirmos.

O dia amanheceu nublado e o meu papelão estava molhado por causas desconhecidas. Munido com as minhas tralhas que pus nalguma mochila velha que encontrei numa sarjeta, continuei minha vida de andarilho urbano, juntando toda a experiência boa e ruim para uma conta que, mais cedo ou mais tarde, chegaria ao fim, não da maneira que imaginamos.

Topei com alguns moradores de rua que se aglomeravam em fila defronte uma churrasqueira acesa, com um deles tomando conta; punha a carne e depois levava os dedos a boca, fazia isso com toda a linguiça, asinha, coxa e filé que passavam das suas mãos à brasa. Ao lado da churrasqueira acesa e enferrujada, avistei dois sacos de lixo preto rasgados e o conteúdo desperdiçado sendo feito para alimentar os homens e mulheres que esperavam a sua vez para comer.

Havia nas proximidades um barril cortado ao meio, com tocos de cigarro. Afinal, todos temos nossos caprichos.

Entre toda a esperneação por comida, era inegável a felicidade daquelas pessoas. Conversavam sobre a vida enquanto esperavam a sua vez, falavam das ruas que passaram, das pessoas que as ajudaram, falavam dos espancamentos, dos milagres... Havia, claro, os rabugentos e aqueles com a agonia matinal que um dia ou em outro todo mundo enfrenta. Era apenas mais uma fila diurna, que há quem enfrente para o filão do café da manhã e para a carne do almoço. São simplesmente pessoas como nós.

Ao me aproximar, um morador barbudo e carrancudo apontou o final da fila e disse que havia comida para todo mundo, só tinha que pegar a fila e a minha vez chegaria. Não respondi. O cheiro do churrasco confundia-se facilmente com o lixo aberto, mas, isso não parecia importuná-los.

Apenas me responda, caro leitor, isso não incomoda? Saber que há quem vive do desperdício. De todo o grão de arroz que você permitiu que fosse ao lixo? Que nós permitimos. Apenas uma pontuação de quem conheceu na pele a necessidade de arrastar-se.

Lentamente tentei passar por trás da fila para seguir o meu caminho, porém, uma mulher magricela com o cabelo preso num coque mal feito, abordou-me com as mãos na cintura e uma fala moldada para ironizar-me.

— Não vai comer com a gente, bonitão? Acha que todo mundo aqui é zé povim? Desculpe aí, mendigo grã-fino... — Riu e levou um cigarro de palha à boca que a minha observação astuta não havia captado.

Engoli seco. Quando me preparava para seguir o meu caminho, ouvi o churrasqueiro gritar alegre:

— Hoje temos um tempero especial! — Pegou um pote e friccionando os olhos, leu — “So...Soda... Cáustica!”. O gosto é especial!

Ouvi a maioria gritar em euforia, felizes e estonteantes pelo “tempero”. A mulher desdentada levantou o cigarro e gritou usando de alguma língua morta. Eu só conseguia pensar em Drummond. Comecei a tremer como se o mundo começasse a desabar, a velha sensação da minha mão ter vida própria... Soda cáustica, hidróxido de sódio, é usada para desentupimento de encanações devido ao seu alto poder corrosivo. A sua ingestão pode causar necrose epitelial e severa ulceração oral e esofágica, o quê significa levar a uma pressuposta causa de morte.

Uma vertigem atingiu-me e travei os pés no chão para que não caísse. Passei a língua sobre os meus lábios e num ímpeto de profecia, comecei a gritar num descontrole que nunca havia passado.

— Não! Soda cáustica não é tempero nenhum! Isso queima por dentro! Não comam!

Em coro, havia vaia. Então vieram os xingamentos e depois a insignificância. Finalmente, caí. E sobre os meus olhos, eu os via comer com uma expressão natalina. Alguns passavam por mim, seguindo o rumo da fila, cuspiam ao chão em sinal de desprezo, em sinal de loucura. Ouvi:

— Você não é nenhum mendigo grã-fino... É só mais um que acha que pode escolher o quê quer comer...

Comecei a chorar e a sentir o gosto salgado das lágrimas. Meus cotovelos esfoliados, minha alma açoitada, em estado de lástima. Não estive disposto a ficar lá e enxergar a disenteria e os golfos e, quem sabe, mais morte.

Levantei e algum vulto rápido empurrou-me na sarjeta. Por pouco não colidi a minha cabeça no chão. Mais difícil que qualquer flexão de braços atlética, foi levantar daquela calçada. Parecia que tudo sussurrava nos meus ouvidos: “fique, fique deitado aí”. Talvez, você me entenda. Em alguma manhã da sua vida parecia que tudo queria dizer que o melhor seria ficar na cama? E levantar foi graças a um esforço inumano? Ali estava eu, novamente de pé, andando contra a maré.

Muitas vezes, enquanto os homens não verem o dano e a profundidade das consequências dos seus atos, não conseguirão entender o quê há por trás do véu da ilusão. Há quem acredite no veneno, apenas após tomá-lo. Será isso uma dádiva ou a precipitação dos nossos males?

Será que apenas ao perceber que estamos no fundo do poço, tentaremos sair dele? Quando aquele homem de terno, no Museu de Saudade, afirmou isso, fiquei com tal pensamento encucado, pulando numa mesa imaginária.

São dúvidas infindáveis, arquivos do insólito. Mas, uma coisa é certa, ser conivente com qualquer male desse planeta é mais insalubre e lastimoso que qualquer carne temperada com soda cáustica. Um churrasco fatal leva algumas almas, mas, infelizmente, os seres humanos conseguiram provar que existem males maiores que qualquer despedida final.

Alguns podem dizer que sair por aí distribuindo cobertores aos que sentem frio é parvo e parco. Porém, esses que receberam os cobertores, sentirão menos frio e uma vida acalentada é melhor que uma vida sofrida e que parece desnecessária.

Pode me dizer que brincar com crianças órfãs e carentes é de uma inutilidade sem tamanho. Contudo, a solidão só é boa quando não é forçada. Saber que há quem se importa pode ser de uma magnificência extraterrestre, transcendental.

Um bom dia ou boa noite, para que ajudemos a lembrar algumas pessoas que elas existem.

Lecionar por atos e por teorias para aqueles que ainda não tiveram elucidação pode até parecer esforço inaudível, mas, imagine só aquele que descobre que há muito mais além de uma caixa fechada e sem luz. É a descoberta das Índias, leitor.

Desde então eu nunca pedi nada para você, no entanto, por estarmos em bons tempos de intimidade, farei um pedido que pode acatar ou deixar de lado, pois, em nenhum momento eu forcei você a algo e a liberdade é algo que aprecio. Por favor, se possível, ajude no que for, perto de você, não precisa alongar o braço mais do que você pode. Pode ser a ajuda mais mínima que achar. Acredite em mim, depois de passar por tantos apuros e belezas, você consegue perceber que para alguns falta o mínimo essencial, o quê uma escritora de outro mundo chamava de “delicado essencial”.

Ouça aquele em que perdura inimizade. Ouça aquela pessoa mais nova ou mais velha que anseia por alguém que a ouça, mas, você nunca teve tempo. Dê palavras de carinho para aquele que chora, ou apenas apalpe seu braço em sinal de importância.

Leitor, as coisas que eu vi e vivi, não sei se aguentaria por muito tempo se não fossem as almas amigas que me socorreram, que me fizeram querer viver. A vida não dá tempo para respirar para fora, afinal, há tanta poluição, então aprendamos a respirar para dentro, refinamos nosso ar e liberamos ele ao mundo, aquele que sentir saberá que o oceano não é só feito de degradação.

Há, como perceberá ou percebeu, aqueles que não querem ser ajudados, aqueles que se subtraem de crenças. Infelizmente ou felizmente, não sei ao certo, esses aprenderão pelos próprios atos e, às vezes, são mestres da mimesis, eles imitam e aprendem por assimilação. Não são casos perdidos. Todo mundo tem seus momentos de cegueira.


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