Cancro & chaos escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 14
A luz da rua




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Acometido por uma astenia melancólica, após andar desgovernadamente pelo bairro que não terminava nunca, sentei, apoiando as minhas costas num poste de luz. E, paradoxalmente, enquanto fitava a luminária encoberta por mosquitos suicidas, sem conseguir pensar em nada positivo além dum desfecho trágico, adormeci com fome e salteado.

Retomando aos poucos a minha consciência, o Sol já torrava a minha fronte; acordei sentindo algo pinicar a minha pele facial. Senti dois toques no meu ombro e com bastante esforço consegui vencer a iluminação brusca que ofuscava a minha visão. Inicialmente, assustado, vi a menina do asfalto ereta defronte meus olhares... Após piscar demasiadas vezes, percebi a incoerência do meu delírio. Era um garotinho de cabelo indiozinho. Estendia a mão com um pedaço de pão. Fiquei parado, sem reação, até que ele disse, ainda com o braço estendido:

— Toma seu café da manhã, Cancro.

Arregalei os olhos e logo voltei ao normal. “Como diabos ele sabia meu nome?”, questionei-me. Esforcei-me para arquitetar uma pergunta, eu parecia ter esquecido como falava, sensação agoniante, se me permite dizer.

— Como você sabe o meu nome? — Senti um gosto ruim na boca, não escovar os dentes começava a pesar, banheiro a gente arruma, escova e pasta de dente? Não é tão fácil — Quem é você?

Fez uma significativa expressão facial e abaixou o braço, como se olhasse quem diz coisas óbvias e ainda debocha como se fosse uma brincadeira de amnésico.

— Cancro, sou eu... Você está brincando, né? — Olhei ao redor e demorei reconhecer aquela parte da Vila Real — Eu te trago café da manhã há anos e sou novo e lembro de tudo isso.

Boquiaberto, questionei quebradiço:

— Anos?

O menino sentou ao meu lado, com as suas roupinhas amareladas e olhando-me com certa intimidade, começou a me contar:

— Cancro, meu nome é Zonho e você sempre me chamou de Zói — Apontou para uma casa ao lado com uma roseira no jardim bem tratado — Aquela é a minha mãe, ela faz o seu lanche, o seu almoço, a sua janta. Você lembra do nome da minha mãe, né? Lúpus, Lúpus Gentil. Certo? — Percebendo minha expressão longínqua, continuou — Cancro, você se esqueceu de tudo, né? — Fitou-me abismado, apresentava uma maturidade incomum — Ontem você pediu para gente uma lâmina de barbear e eu te expliquei que não podemos te dar, pois temos medo. — Levei a mão ao meu queixo e no meio do caminho senti uma volumosa e definhada barba que se estendia pela minha face, quase alcançando meu peito, meus olhos encheram-se d’água e eu sentia-me como criança junto aos pais que se perde no supermercado lotado, eu não conseguia acreditar que eu havia esquecido anos da minha vida e passado ali, sentado, vivendo dependente — Você chegou aqui há uns dois anos, sentou embaixo do poste-mãe e se não fosse por nós você morreria de fome. Não tinha força para nada. Tivemos que juntar suprimentos para comprar canudo para você, para você conseguir beber a comida.

Levei as mãos à minha face e comecei a senti-la minuciosamente. Os lábios rachados, as feridas ao lado da boca, a barba indefinida, regiões do meu rosto com pele em alto relevo e outras afundadas. Questionei com a voz embargada, o menino ouvia-me atento e sem represália.

— As marcas no meu rosto, como eu as consegui?

— Algumas você já tinha, contou para mim e para mamãe que tinha sido agredido pela escória fardada. As outras... Você quer mesmo saber?

Acenei positivamente com mau jeito na coluna.

— As crianças do bairro chamam você de “Monstro Ciclópico”, pois, após um pai de uma delas acertar uma pedra no seu olho, você tem um dos olhos bem avermelhado... Você se tornou a brincadeira delas. Você não se move, não importa o quanto batem em você. Mamãe fez um acordo com a facção Panda, para que ameaçassem as crianças se continuarem com as más ações, como bater, urinar e atear bombinhas de fogo em você.

Minha boca fechou-se e nada pode definir o quão humilhado eu me sentia, surrado. Questionei, sentindo “melhor” o meu corpo; sentia a pele puxada, o peso num dos lados da face, sentia até o meu cheiro, que certamente não fazia parte dos mais agradáveis.

— Qual acordo a sua mãe fez?

— Toda sexta à noite, mamãe saí de casa e volta no dia seguinte, perto da hora do almoço. Ela diz ser para o seu bem e que sempre precisamos fazer o bem para aqueles que estão ao nosso alcance. Ela não me diz o que faz, apenas disse uma vez ser parte do acordo. Mas, cá entre nós, você sabe o quê a mamãe faz, né?

Deduzi. Você deduziu?

Zói estendeu novamente o braço e dessa vez não demorei acatar a “oferenda”. Comi com gosto. Pão com presunto e muçarela. Esqueci-me de agradecer.  Com esforço, assado entre as pernas ao extremo, apoiado ao poste, ergui-me. As pernas bambas fizeram com que eu me agarrasse ao poste novamente, abraçando-o amavelmente. O guri levantou comigo e ficou observando-me, até dizer:

— Onde você vai, Cancro?

— Posso falar com a sua mãe?

— Eu te levo até ela. Quer se apoiar em mim? Faz muito tempo que não levanta.

— Não precisa, eu preciso me esforçar... Antes, mate a minha curiosidade, como você tem por volta de 10 anos e parece tão maduro?

— Livros e vida, Cancro. Ajudam muito. Atacaram um carregamento e as facções que trabalharam juntas trouxeram muitos livros para a minha casa, pois, sabem que sou um dos únicos que aprendeu a ler e ainda gosta de ler. Às vezes, até leio para a minha mãe e para alguns guerrilheiros. A leitura não pode entrar em extinção.

— Justo.,,

Constato: foi, no mínimo, estranhíssimo andar até a humilde casa. Passos errados, tropeços, quedas, desorientação, mas, consegui alcançar a pequena cerca que delimitava o barraco de madeira.

Olhei para a grama e para a roseira que despontava no meio do caos e depois de raciocinar no meu círculo de pensamentos, evitei pisar naquele pedaço imaculado, discrepante do que eu lembrava ter visto anteriormente. Infelizmente, a minha última lembrança antes do largo período de amnésia é a que você tem também, se leu o capítulo anterior.

Zói percebendo que eu não entraria no recinto e que nem tinha ao meu dispor forças para gritar o nome da mãe dele, entrou sozinho, desaparecendo na penumbra. Dali alguns minutos, a mãe dele chegou. A face enrugada, os olhos fundos de cansaço. Cabelos tão desnutridos e quebradiços. Pouca carne, muito osso. Mas, inexoravelmente, segundo os relatos do guri, ela havia me ajudado a sobreviver desde então. Ela não parecia ter nem para ela e nutria um morador de rua desconhecido como se fosse um filho. Apareceu além do breu do barraco, com um pano de prato nas mãos, secando-as. Olhava-me atenta e desatenta ao mesmo tempo, não acreditava que eu tinha levantado e que o dia brilhava tanto. Após perscrutá-la, observei uma cicatriz aparente que ia de uma têmpora a outra. Larga e branca.

Emocionado pela ação comovente daquela família, demorei barrar a emotividade e liberar as palavras. Ela ficou parada, suava naquele calor infernal. Vibrei as cordas vocais:

— Obrigado... Por todo esse tempo que me ajudou...

Lúpus saiu do barraco, finalmente, e disse sem conseguir olhar nos meus olhos:

— Perdão pela pedra no olho.

— A culpa não foi sua.

— Eu joguei a pedra, meu filho mentiu para me proteger. Havia um homem no escuro sentado perto da nossa casa... Foi na impulsão que joguei a pedra.

Não senti raiva e nem aspereza no coração e até entendi o ato do filho dela, mentir, não repreendi. Fiquei em silêncio por cerca de 10 segundos, procurando o quê dizer e o quê pensar. Calculei e disse:

— Eu não tenho como agradecer ou retribuir. Eu vou embora, não precisa de mais nenhum acordo e nem de gastar comigo... Agradeço imensamente, mas, já passou da hora de enfrentar o meu destino.

— Não há problema se quiser ficar, não pesa para nós...

— Agradeço imensamente. Não tenho palavras para tamanha gratidão. Não só agradeço pela comida e pelos cuidados. Realço também por me lembrar que o mundo não é só tristeza, morte e descaso.

Passou pelo jardim, encarou-me com certo olhar triste e indefinido, deu três tapas indolores no meu peito e disse querendo chorar, com uma afeição que eu não conseguia entender.

— O mundo é o Everest, querido. É tórrido e gélido. É alto e ínfimo. Tem seus encantos e as suas derrocadas. Fará você sentir frio e querer pular. Fará você querer glória e silêncio. O fará querer borbulhar murmúrios de amor e de ódio. Há quem queira escalar o Everest e só perfura-o e afunda-se... Esses terminarão sozinhos e decapitados pelo próprio dinheiro. Outros, aqueles que sobem sem saber que sobem, velam pelos outros e não querem passar por cima de ninguém. Esses sofrem muito mais e por isso muitos desses tendem a desistir, próximos do topo. Sei que pensou em desistir, olhos falam mais que bocas se você souber ouvir.

Aquela mulher tão cuidadosa e afetuosa remetia-me lembranças felizes que eu pensei ter esquecido. O lado esquerdo da minha cabeça arrepiou-se totalmente. Disse:

— Você me lembra uma grande mulher...

Ela abriu um sorriso súbito e, no oximoro contextual do seu vigor, senti uma sensação inefável, apenas descrita em palavras que não sintetizam: aquela mulher parecia saber tudo que havia acontecido comigo e tudo que havia para acontecer, havia um aspecto mesclado, como se batesse em um coquetel um misto emocional de alegria, tristeza, partida e chegada.

As lágrimas escorreram dos seus olhos e ela me disse, despedindo-se com clara relutância.

— Quando a vida apertar e tudo der a sensação de perecimento, lembre-se que durante a escalada do Everest, os dedos gelam, o ar escapa, a mente fica débil, o quê indica que o topo está próximo e é impagável a sensação de atingi-lo. Vá, querido. — Tirou da parte de trás da saia longa, que vestia, um envelope pequeno e entregou-me, terminando por dizer — Só abra quando estiver perto do topo. Quer levar algum lanche ou água?

Neguei simplesmente com a cabeça.

Virou-se e saiu em passos largos, chorosa, mas, blindada quanto ao choro. Zói apareceu na penumbra e acenou com um sorriso de despedida. Sentia que havia um significado em tudo aquilo, no entanto, eu ainda não era capaz de entender. A carta era peça chave, isso eu conseguia compreender.

Retomei a andança. Lentamente continuei pela rua, para algum suposto lugar nenhum. Ouvi risadas infantis, sons de deboche, mas, não dei atenção, passei tentando erguer o torso. Toda a dor corporal era confrontada por uma latência na alma. Toda a convicção em sumir para nunca mais voltar era contrariada por um foguete de flores chamado “benevolência”.

Levando em conta tudo que Lúpus havia me dito, parte de mim acreditava que com toda a dor e açoite, as proximidades do topo não tardavam chegar. Entretanto, ainda não era a hora de abrir a carta, eu podia sentir.

Toda a minha amnésia havia posto incógnitas no meu tutano. Eu comecei a me questionar: se eu havia esquecido anos da minha vida como se esquece onde guardou uma chave, o quê eu poderia ter esquecido ao longo de toda a minha trajetória? Os rostos? As pessoas? A minha casa? Não havia resposta, até ela eu havia me esquecido.


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