Cancro & chaos escrita por 0 Ilimitado


Capítulo 1
Mundo Raposa




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Antes de qualquer conteúdo literário. Penso que deve ser bem diferente os problemas e adversidades que enfrentam aí em relação aos que apresentarei aqui, mas, enquadrarei você também como sujeito, como se vivesse no mesmo mundo que eu, para que facilite o entendimento e a imersão. Mas, não se assuste, é só pura ficção num mundo chamado Raposa. Afinal, que raio de mundo teria o nome “Raposa”?

Comecemos. Era sábado ou segunda, não me lembro ao certo. O Sol despontava altivo ou, pelo menos, era o quê a televisão dizia.

É engraçado como previsões antigas chegam a se concretizar com uma exatidão profunda. Um velho poeta disse certa vez: “Haverá de chegar o dia em que olharemos para o céu e vendo o Sol, abriremos o jornal para ler se é verdade”. Tal escritor não viveu o bastante para alcançar a era da informação, época sem a grande necessidade do jornal impresso. Se o celular nos diz que faz calor, acreditamos. Não importa o frio que faz lá fora. Nós raramente saímos daqui mesmo.

Não peguei táxi, ônibus ou qualquer meio de locomoção. Acordei de uma forma mais alegre do que costumava ser, raciocinei um pouco sobre a causa do sorriso bobo e dos olhos faiscantes. Pensei e pensei. Pensei mais do que eu havia pensado na semana passada. Constatei. Não havia esquecido de tomar as minhas pílulas no dia anterior. Nada como uma medicalização aqui e ali, não é? Drogas que controlam nossa motivação, nosso senso crítico e tentam alinhar as nossas necessidades hormonais.

Saí mais cedo de casa para alcançar o serviço com tempo de sobra, meu humor condizia bem com um trabalho prévio, limpando as tampas antes de inseri-las nas garrafas (mesmo não ganhando pelo tempo extra de trabalho). Andei, hipoteticamente, despreocupado, porém, pensamentos como o clássico “quando chega o meu descanso?” perambulavam na minha mente. Algo que sempre me impressionou é como vivemos dependentes dos nossos momentos de descanso, a nossa motivação é quando formos parar, gastando tempo na ociosidade ou fazendo o quê supostamente gostamos. Vi os carros, os cachorros, as flores sintéticas, vi até risos de bebês (fiquei até impressionado com as máscaras de gás transparentes que produzem hoje em dia). Ônus do avanço industrial, suponho eu. Enxerguei os semáforos e como as pessoas andavam entre si com um sotaque estranho (pareciam desconhecer todos os rostos que passavam ali, mesmo sendo os mesmos de todas as manhãs). Quando percebi, não havia mais o que observar, apenas um edifício baixo, de arquitetura antiga, bege e sem graça, em que repousavam garrafas com leite esperando serem fechadas. É aí que eu entro. Eu punha as tampas nas garrafas.

Ok! Eu já saquei o seu pensamento. Desculpe o palavreado, porém, eu compartilho da mesma ideia... Emprego tedioso. O quê me confortava era saber que existem empregos piores que o meu e como dizem nas televisões: “o desemprego é um monstro, então valorize o seu emprego”.

Passei a manhã lá, a tarde também e quando estava prestes a anoitecer, deu-me fome, aquela chata e insignificante. O efeito das pílulas havia passado. As luzes do aposento davam-me asco, eram pobres e toscas. E a esteira de produção, que já havia passado por mim inúmeras vezes, começava a me enjoar, o movimento repetitivo cansava-me como se cansa um boi. O patrão que perambulava entre mim e os outros trabalhadores da leiteria percebeu o sofrimento espelhado, bateu duas palmas. Não disse nada enquanto saímos do aposento e as luzes já esfriavam apagadas. Josué, um humilde trabalhor, que manipulava a máquina de leite, foi o último a sair; ele trancou a espelunca que eu via exaurido, vi-o enquanto eu virava a esquina. Olhei para trás em sinal de agradecimento por ter um chefe tão bom num meio do Mundo Raposa, seu nome era Alberto ou César. Fiquei apenas com a visão de Josué na cabeça.

Acho que eu não disse sobre a minha casa. Paredes brancas. Aposentos minúsculos. Lembrava-me uma grande sala cirúrgica com compartimentos ou aquelas salas brancas, padronizadas, de espera, para ir na sala dum médico ou dentista. Ainda assim era aconchegante. Tinha uma porta para entrar e nenhuma para sair, além dessa que servia de entrada e saída. Meu quarto só tinha uma cama, de solteiro, um travesseiro que eu nunca trocava a fronha; ele e a fronha: amarelos. Acima da minha cama repousava uma cruz. Não me pergunte o motivo. Eu sempre vi a mesma cruz no meu ambiente de trabalho, sempre aludi a figura ao meu chefe. Poderia jurar, se estivesse com os meus remédios, que durante a noite o homem naquela cruz perambulava pela minha casa, cheirava a minha solidão, os restos de comida e fotos na geladeira, percebia os arranhados na parede branca do meu banheiro, motivados pela minha continência anal, noutras palavras: dificuldades para defecar. Tensão.

Procurei fazer o caminho mais curto para alcançar a minha moradia, no entanto, todos os caminhos pareciam longos demais, até calculei a possibilidade de ficar ali no menor cemitério da cidade e dormir por lá mesmo. Sem pensamentos funestos. Só cansaço, muito cansaço. Lembrei-me da minha mãe e do meu pai. Assunto para outra hora e capítulo.

Passei por uma árvore entre as casas e edifícios, local inapropriado para a mesma, verde e viva. Passei sem parar. Cheguei na esquina. Estagnei-me. Tive uma sensação estranha. Como se uma mosca voasse dentro da minha cabeça. Olhei para a placa acima da minha fronte, ação a qual resultou em ver o nome da minha rua. Olhei para trás e vi a mercearia do Tonin,  localizei-me finalmente. Estava próximo do meu lar.

Dei meia volta, se meus cálculos não falhassem, minha casa me esperava no meio daquele quarteirão.

Andei um pouco demais. Percebi que passei a mercearia e, portanto, passei a minha casa. Voltei novamente, agora com passos curtos e um Mal de Parkinson efêmero graças ao mal-estar da civilização. Freud explica.

Virei a cabeça, exatamente no meio da rua. Brotei. Ou brotou. Brotive. Abri a boca sem controle sobre a minha vida e ato, os olhos caíram, a boca espumou. A árvore. A viva. E verde, não branca. Pensei primeiro que alguém havia roubado a minha casa, não exatamente o que há dentro dela, mas, sim ela própria. A casa! Com tudo! Havia uma árvore no lugar. Cá entre nós, parecia ter crescido ali mesmo...

Não havia celular, mídia, chefe, tradição ou religião para me explicar o que havia acontecido. Ou eu havia enlouquecido ou eu havia enlouquecido. Corri ao Tonin, se alguém tivesse roubado a minha casa, ele teria visto! Corri como se me enchesse de vigor, vigor esse que não havia experimentado por longos períodos de suposta sanidade. Esparramei-me sobre o balcão, tentei me reconstruir e perguntei aflito:

— Tonin, cadê a minha casa?!

Ele olhou-me desdenhoso, mexeu na barba branca com uma mão e esfregou o balcão com um pano branco na outra. Franziu a testa, não descalçou os colhões e respondeu-me, como se não me conhecesse:

— Não tem esmola aqui não! Sua casa é aí fora!

Foi uma frase sinônimo de supetão. Doeu pela incoerência. Foi difícil de digerir. Sempre comprei o pão, a bebida,, tudo com ele. Até papel higiênico eu comprava com ele. Ele não me reconheceu! Tentei alarmá-lo.

— Tonin, sou eu, o Cancro! Venho aqui todo santo dia! Sabe aquela árvore? — Apontei à árvore viva e verde — Está no lugar da minha casa!

Retrucou, quase gritando truco:

— Além de mendigo é louco! Louco como uma porta! Aquela árvore sempre existiu ali! Desde quando eu abri essa humilde mercearia! Agora sai daqui ou eu vou pegar a minha espingarda quatorze canos!

Esbravejou, apontou o dedo para saída e a ameaça foi real. Há largas histórias sobre essa tal espingarda. Saí quase que automaticamente.

Virei-me para a árvore, atônito, sem saber o que fazer, dizer ou comer. Eu só queria repousar. Descansar um pouco que fosse. Será que o Tonin tinha razão? Um mendigo louco, Eu, um mendigo louco?

Meu corpo doía, como se o mundo tivesse caído sobre mim.

Microfibrilações mentais. Cólicas renais. Palpitações frias. Eu-eu. Asseguro, nenhuma das expressões não casam.

Fiquei ali parado, não sei por quanto tempo, na frente da mercearia, talvez o Tonin ainda gritasse. Talvez o mundo tivesse ficado em silêncio. Eu ouvia aplausos ou um zunido quieto e estridente, nesse paradoxismo factível.

Mexi a cabeça, sem direção. E para onde o meu nariz apontava, andei. Sem carga. Sem destino. Sem nem lugar para voltar. Andei sem saber o motivo. Estava sem remédios, estava sem dinheiro e eu já começava a me perguntar se a minha solidão andava comigo, embalada pela cafeína do desprezo e agonia contemporânea. Andei. Talvez centímetros, alguns metros ou léguas. No final das contas, percebi que eu não conhecia nada no entorno do local em que eu supostamente morava. Havia de tudo. Melancolia, alegria, porcos, monges e uma infinidade de possibilidades.

Havia céu. Sabe? Com nuvens e todos aqueles apetrechos que flutuam. Comecei a me questionar se a árvore tinha tomado só a minha casa, ou também havia invadido a minha privacidade mental. Era estranho, escorria dos meus olhos, eu via o verde e o azul, como um cego daltônico e olha que nem sei o quê isso quer dizer. Eu só via. Ainda era noite.

Quando percebi, a minha vida descortinava-se sobre a minha vista e nunca se está preparado para realmente viver. Havia tantos locais para ir, tanto a conhecer e eu andava sem rumo e meus pés pareciam me guiar numa selva de concreto. Eu sentia que o chão queria se abrir para o abismo me engolir, pois, eu estava sentindo algo além dos sentimentos sintéticos que eu tomava toda noite antes de dormir. O abismo negava uma beleza que eu nunca havia visto e estava sobre mim, exatamente sobre a minha cabeça, como meu cabelo que crescia entre raízes e borboletas.

Eu vivia. Sem dicionário ou celular para delimitar o que é viver. Quem dera se fosse possível ver tudo o quê aconteceria comigo...


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