Metamorfose escrita por Beilschmidt


Capítulo 1
Capítulo único




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Sebastian pousou tranquilamente no topo de um poste. Observava a paisagem noturna de uma Londres vitoriana. As densas fumaças que se formavam e se acumulavam pelos escuros becos e ruas, dificultava a visão dos poucos que por ali passavam. Essas cortinas esbranquiçadas, resultados da poluição liberadas pelas fábricas e máquinas movidas a carvão, eram intensas ao anoitecer. Dificultava a circulação de pessoas, mas para os olhos de um demônio, não parecia surtir o mesmo efeito.

Aquele ser já havia visto muito do mundo humano, desde as mudanças sociais até aos de nível bélico. A forma como os humanos pareciam cada vez mais poderosos quando tinham armas e dinheiro em mãos, o fazia lembrar que eles eram uma raça muito mais devastadora que os próprios demônios. Eles gostavam de serem os soberanos, de ter subordinados que se dispunham a realizar as mais diversas atrocidades. As guerras e as cruzadas que ele presenciou de camarote estão como alguns exemplos.

Lembrava-se da época que em um momento de pura diversão e traquinagem, espalhou facilmente a peste negra pela Europa, chegando a dizimar cerca de um terço da população. Tinha o prazer em ver o desespero e a agonia nos olhos daqueles mortais, era o seu passatempo, se divertir com os gritos e as inúteis súplicas a Deus. Ele sabia que não havia possibilidade alguma, de um humano ser acolhido em um milagre quando se encontrava cara a cara com aquele ser.

Suspirou. Em um discreto e silencioso salto, ele aterrissou ao chão. Os finos saltos de sua bota tocaram calidamente o solo, espalhando trevas. Os olhos vermelhos pareciam dois rubis em pura brasa. Os caninos afiados finalmente apareceram ao dar um sorriso deleitoso e satisfeito pelo que logo viria. Sentia em seu âmago, a súplica e a agonia de sua presa. Poderia muito bem aparecer repentinamente no local, mas resolveu percorrer a distância a pé, e assim ter mais alguma amostra grátis daquele desespero, daquele terror que seu alvo presenciava.

Como ainda era um ser livre, não se importava muito em andar pelas ruas em sua forma verdadeira, aniquilando calmamente qualquer transeunte que passasse pelo seu caminho, ou que o tivesse lhe visto. Pouco se importava com o alvoroço dos ceifadores sobre ele estar destruindo as memórias cinematográficas das pessoas.

Virou a esquina. Na calçada de pedra havia um bêbado, parecia balbuciar algo para a garrafa que abraçava. O cheiro de álcool não parecia lhe incomodar. Continuou seu caminho sem se importar se ele iria ou não vê-lo, supondo que estaria tão embriagado a ponto de contar delírios.

Mas do outro lado da rua ele pôde perceber um vulto tentando se esconder. Seu sorriso aumentou, parece que aquele rato estava encurralado. Não gostava de ser visto e o humano sobreviver para contar a história de ter dado de cara com um demônio. Caçava até achar a alma trêmula. E aquele não seria exceção. Com um único e elegante salto, o demônio subiu no telhado, sem qualquer estrondo. Andou pelas telhas com cautela, analisando cada traço de pânico do jovem que se viu de frente para um muro sem saída. Agachou-se ali mesmo e sorriu.

Pobre alma, sequer tinha forças para gritar por socorro… teve a infelicidade de dar de cara com ele. Sebastian estava com pressa, se não se apressasse logo sua comida seria morta. Sentia a súplica daquela alma cada vez mais forte. Suspirou, a sua diversão e a vida de demônio livre estavam acabando. Levantou-se. Seu olhar rubro brilhou, poderia muito bem descer ali e estraçalhar cada parte de seus órgãos com suas unhas negras e afiadas, era a sua diversão. Mas sua prioridade agora estava em risco ali perto. Só restou-lhe mover um único dedo, para a cabeça de o jovem estourar, espalhando sangue pelas paredes cobertas de limo; O corpo caiu em um baque surdo.

Com um impulso, ele saltou do telhado para o final da esquina. No fim da rua ele chegou a um casebre. Sabia que era apenas um disfarce, e que algo maior acontecia secretamente no subterrâneo. Arrebentou o piso de madeira velha assim que entrou na casa, passou por todo um túnel. Sentia cheiro de carniça além de pele queimada.

Ainda envolto das sombras, ele deu alguns passos, até enfim a luz das poucas velas que iluminavam o espaçoso porão. Sua verdadeira forma ainda meio preservada pela enorme capa negra que o encobria parcialmente. O som metálico que o salto de suas botas faziam, ecoavam por todo o recinto. As pessoas ao seu redor estavam eufóricas demais, pediam coisas, desejos, pedidos, como se tivessem o privilégio da presença dele ali. O demônio virou-se, sequer se deu o trabalho de prestar atenção.

Estava mais ocupando tentando rastrear ali a alma que o invocou.

— Oh! Então é tu, o pequeno que me clamou. — sorriu, mostrando seu mais majestoso sorriso, os caninos afiados e sedentos por aquela alma — Seu sacrifício foi mais do que o suficiente. — lambeu os lábios — Agora tens a opção de aceitar ou não a minha proposta. Assim poderás ter os teus mais profundos desejos concedidos por um demônio através de um contrato. Já que o preço até aqui foi pago no caminho.

O ódio que emanava daquela criança, o fazia querer mais e provar cada pedaço de sua suculenta alma. Ele era um prato perfeito para saciar a sua fome.

— Eu quero… — os dedos machucados e sujos do garoto apertaram as barras da grande cela que dividia com outras crianças — Eu quero poder vingar-me dos que me tiraram tudo! Dos que nos destruíram!

Sebastian sorriu. Aquele pequeno pirralho estava mais que disposto a deixar de lado toda a sua vida para formar um contrato com um demônio. O ódio que ele carregava nas costas, acumulado tudo de uma só vez após a morte de seus pais naquele incêndio, agora servia como aperitivo para o prato especial que era a alma corrompida dele.

Os olhos rubros, agora castanho-avermelhados, observavam de longe, os ofegos do garoto, cada palavra proferida sem excitar aumentava o seu sorriso demoníaco. O grito ao ter seu olho direito marcado cruelmente com o selo do contrato. A mão que tentava agarrar-se nas vestes do ser, como se fosse a sua salvação daquele inferno. Mas era apenas um buraco sem fim para a sua própria destruição.

A dor em seu olho era um preço pequeno a se pagar àquela altura, depois de todo o sofrimento que passou nas mãos daqueles nojentos. E ver a dança do demônio, enquanto destroçava rapidamente cada pessoa naquele porão com um largo sorriso, não amenizaria em nada a dor da perda de sua família. A única coisa que parecia preencher o coração da criança… era a mais pura vingança.

Os olhos opacos e sem o brilho que um dia teve em sua infância.

Agora, dois anos após seu encontro com aquele demônio, Ciel olhava seu próprio cômodo. Estava aconchegado em seus lençóis, os mais caros e feito dos tecidos mais finos. Seu mordomo ao lado preparando-lhe o chá de cheiro adocicado e levemente cítrico, o jornal do dia em suas mãos. Um dia comum, como qualquer outro.

A responsabilidade de administrar a grande fortuna e a empresa de seu pai, as tarefas que a Rainha lhe mandava, a Scotland Yard que vivia em seu pé, as aulas particulares e entres outras tarefas, já estava acostumado. A máscara de um Ciel antes da tragédia estava ali durante o dia e para os próximos. Mas a noite sua verdadeira face, esculpida a sofrimento, dor, ódio e a perda, eram mostrados apenas a Sebastian. O demônio era o primeiro e vê-lo ao acordar e o último ao aninha-lo para dormir. Seu fiel cão de guarda metido em um fraque.

Sebastian encara os olhos de Ciel, o direito ainda descoberto do tapa-olho, podia sentir, mesmo naquele olhar heterocromático, a infância perdida e destruída dele. O garoto que fora forçado a amadurecer através daquela vivência traumatizante.

Deu um sorriso limpo. Ele sabia mais do que ninguém, aquela criança era muito mais cruel do que si… do que qualquer outro demônio. Pois ele era um humano. Um humano corrompido precocemente. Alguém que ordena matar e queimar toda uma trupe de circo, crianças sem a menor chance de fuga e a sangue frio, era o mais digno de ser chamado de demônio.

O mordomo sorriu ao ouvir o chamado de seu amo. Agora, ele já estava devidamente vestido. Com um sorriso em seu rosto ele fez uma breve reverência antes de retirar-se.

E mais um dia comum começava para os ingleses. E mais um dia que Ciel teria de vestir a máscara de Conde Phantomhive, sinônimo de metamorfose.


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