Carta de um amor perdido escrita por AP


Capítulo 1
único


Notas iniciais do capítulo

Sabe quando você está fazendo algo e tem um breve momento fora do contexto? Foi assim que esta carta nasceu. Não é algo da minha vida ou de qualquer outra, mas simplesmente uma junção de várias coisas que já vi com uma pitada de trouxisse.
Previamente agradeço sua leitura ♥



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   Olá, 

   Tudo bem? Os seus dias estão corridos? Soube que visitou uma avó querida que mora no litoral. Como foi a viagem? Ela é bonita, sabe? Sua avó é muito bonita e agora sei de quem você puxou os seus olhos cor de folha seca... 

   Percebi que você anda meio melancólico. Sempre te vejo compartilhando Pink Floyd e Ramones, porém Marisa Monte e Adriana Calcanhotto na sua nova playlist me alardam um pouco. Discutiu com a família de novo? Alguém te deu um bom argumento sobre o porquê do comunismo ser utópico? 

   Falando em meio acadêmico tenho uma surpresa: vou trocar de curso de novo. Sei que eu disse que faria química tendo você como modelo de pesquisador, porém algumas coisas mudaram o norte dos meus pensamentos e sei bem o que você vai dizer: frescura. E talvez seja frescura mesmo, mas é um instinto tão primário que o ignorar seria correr para a boca do predador. 

   Soube que comprou um apartamento só para você. Fico feliz. Você sempre dizia que quando tivesse o seu próprio cantinho furaria todas as paredes com gosto e as encheria de quadros, só para aliviar os anos colando suas fotos com durex e fita dupla face. Imagino que coisas você estará daqui uns dias colocando em quadros: fotos da família, de bandas, almoços com amigos, fotos nossas... 

   Não. Espere. Não temos fotos. Você sequer lembra meu nome. 

   Ou pelo menos é isso que eu imagino. 

   Às vezes recordo das nossas trocas de olhares. Era algo curioso de se observar. Não tinha paixão, desejo ou qualquer outra coisa. Era uma troca de olhares inocente, com empatia e até mesmo um pouco de felicidade: não existia nada além daquilo que se demonstrava em poucos segundos. Pergunto-me onde estaríamos se tivesse oferecido meu apartamento para jantarmos quando você dizia estar cansado demais para fazer qualquer coisa, indo dormir em algum canto do seu escritório. A verdade em nossos olhares mostraria algum desejo longe de qualquer imaginação? 

   Aconteceu algo estranho hoje de manhã. Marcos, meu marido, me abraçou. Abraçou de um jeito que ele nunca havia feito, entende? Um abraço seguro, acolhedor, aconchegante e, por um momento, seu: me senti aquecida antes do frio tenebroso da realidade riscar meu íntimo. Você estava longe dali, quilômetros e quilômetros de distância. Afastei Marcos e ele me olhou estranho, perguntando o que havia feito de errado e por que eu estava tão distante nos últimos dias. 

   Não soube responder, claro, porém talvez ele tenha entendido mais do que eu: observou-me por alguns segundos e sua expressão de rancor se transformou em espanto e, depois, em remorso. 

   Lembra-se de quando brigou comigo, dizendo que minha inocência era um prato cheio para aproveitadores? Lembro-me até hoje dos seus gritos, apesar de não recordar nem da metade das palavras: eu simplesmente ignorei assim como fazia com todos os seus acessos de raiva. Sua privação de sono e alimento te deixava insuportável, mas seus amigos, assim como eu, te entendíamos bem. 

   Marcos fez uma torta de limão para o almoço. Sua preferida e, segundo ele, deveria ser a minha também já que eu no ano passado fiz pelo menos uma por semana. Claro que, sendo um presente de desculpas, eu comi com gosto, mas questionei-me se eu deveria avisar que, diferente de você, eu não suportava o cheiro cítrico do limão - e muito menos seu gosto. 

   Penso... Eu lembro de você. Muitas vezes. Quase todos os dias... Mas será que você lembra de mim? Pensa nas trocas de olhares? Sente falta do meu abraço? Das primeiras dez tortas tostadas até eu acertar o tempo no forno e o recheio? Das minhas risadas abafadas sobre suas piadas ridiculamente estúpidas? Dos seus toques nas minhas bochechas? Dos seus beijos na minha testa? 

   Nunca traí Marcos e jamais o faria, você sabe. Nunca toquei seu corpo. Sempre fomos bons amigos, não é? Sempre fomos amigos. 

   As minhas músicas também estão um pouco mais tristes. Soube que você vai para o Rio de Janeiro participar de uma nova pesquisa. Fico feliz por você e espero que dê certo, afinal você batalhou a vida inteira por reconhecimento: é sua chance. Talvez depois disso, quando você voltar para o seu apartamento cheio de quadros, você tenha filhos e uma esposa. Lembro de te ouvir dizer que não os repudiava, mas apenas achava que agora não era o momento certo. 

   Vi que parou de ver o que eu posto. Penso que você se afastou um pouco da internet. Compreendo. Você sempre disse que é uma plena toxicidade, pois nos dá a impressão de termos algo que nunca foi nosso. Concordo plenamente. Eu achei que tinha sua mão atrelada a minha, porém pelo que eu percebo nunca tive nada além de um vislumbre de você sempre seguindo adiante. 

   Sinto saudades. Quando penso em você o peito dói de um jeito estranho. Não vou te pedir para voltar, mas você pode vir se despedir? Eu e Marcos brigamos de tarde e ele disse que vem tirar as coisas dele amanhã de manhã, já que ele não faz diferença na minha vida. 

   É estranho. Imaginei que me sentiria um pouco mais só quando ele bateu a porta, porém continuei a mesma e o vazio na mente continuou ecoando risadas que guardo com todo amor, com medo de nunca mais as escutar. 

   Você vem? Acho que vai ser rápido. Só quero bagunçar o seu cabelo com fios grisalhos mais uma vez, te sentir me observando enquanto queimo uma nova torta e ver o nascer do sol nessa cidade cinzenta, onde não existe amor. 

   Ou onde não existia, até eu encontrar você. 


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Notas finais do capítulo

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