Fantasia vs Mostro escrita por Meio Amargo


Capítulo 1
Capítulo 1




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Era noite de Halloween, um feriado não muito popular no Brasil, tanto que nem era um feriado de verdade. Eu particularmente não gostava. Meus amigos tinham insistido para que eu fosse com eles a uma festa à fantasia, só pararam de insistir quando aceitei depois de perceber que eles continuariam perguntando após as centenas de vezes em que falei não. Agora eu estava me enfiando em uma fantasia ridiculamente quente de abóbora.

"Você deveria ter escolhido uma fantasia melhor", Mônica olhou reprovadoramente para minha roupa.

"Do que você está falando? Abóbora tem tudo a ver com o dia das bruxas", defendi. Ela estava vestida de bailarina que para mim nem deveria ser considerado uma fantasia de Halloween.

"É ótimo pra decoração, mas você não precisa se vestir como uma".

"Em outras palavras você está ridícula", Denise se intrometeu sem tirar os olhos do espelho que usava para se maquiar.

"Não estou nem aí, tinha outros planos pra essa noite que não envolvia sair de casa".

Meu cabelo estava uma zona, meu rosto empapado de suor por conta do esforço de colocar aquela roupa. Por falar nela, já tinha começado o processo de me cozinhar. No fim da festa eu seria uma abóbora cozida.

"De quanto tempo você precisa pra ficar menos feia?", falei com Denise, "quero ir de uma vez".

"De menos que tu, aliás, legumes não têm ninhos de pássaro na cabeça, é melhor arrumar isso ou vou fingir que nem te conheço."

"Como se você já não fosse fazer isso por causa da fantasia, o que você é afinal?", prendi os cabelos embaraçados como estavam e coloquei uma boina de abóbora por cima.

"Uma loba", Denise fez um floreio com as mãos apontando para si mesma.

"Desde quando vestir couro e passar batom vermelho faz de alguém uma loba?"

"Desde que comprei esse arco com orelhas felpudas", ela pôs o arco na cabeça.

"Anda, vamos embora!", Mônica saiu do quarto e nós a seguimos.

Os meninos jogavam videogame na sala, cada um deles já fantasiado esperando por nós. Não esperando exatamente, já que estavam tão entretidos com o jogo que nem notaram nossa chegada. Denise bateu palmas exigindo que eles encerrassem a brincadeira e batessem em retirada.

"Vamos seus molengas, eu não tenho a noite toda!", ela foi a primeira a sair pela porta.

Entramos no carro de Tadeu e ele assumiu o volante. Luís viajou ao lado dele e Fábio se espremeu com as garotas no banco de trás. Fábio reclamou da minha roupa pra variar, perguntou se eu não tinha achado nada mais volumoso para usar. Eu mesma comecei a me arrepender da escolha no meio do caminho, não tinha sentado perto da janela e estava praticamente sendo sufocada ali dentro. Um alívio coletivo se manifestou quando chegamos à boate e finalmente pudemos sair do aperto desconfortável no carro. Felizmente havia ar condicionado no local, o que me fez comemorar internamente embora o ar gelado pudesse ser insuficiente para me refrescar naquela muvuca de seres dançantes. Pedi uma limonada bem gelada no barzinho, tentei sentar em um dos bancos altos para esperar o barman voltar com a bebida, me atrapalhei toda e caí sentada no chão, tentei outra vez como mandava o velho Raul Seixas e desta vez consegui. Devo ter feito várias poses engraçadas e constrangedoras na tentativa porque ouvi risadas em volta.

O homem voltou com minha limonada cheia de gelo e eu bebi mais rápido do que achei ser capaz.

"Mais alguma coisa?", ele perguntou por educação.

"Não, obrigada", o que mais eu poderia pedir ali?

Tadeu veio até mim balançando a cabeça no ritmo da música que tocava. Lembro-me de quando o conheci na escola e achei o nome dele a coisa mais horrível do século, aquele nome deveria ter morrido junto com a civilização que o inventou. Ironicamente ele é lindo, o completo oposto do nome. Nem combinava. Por várias vezes pensei sobre isso, será que se eu desse um nome horroroso pro meu filho ele teria a aparência de um modelo? Eu tinha um nome bonito. Maravilhoso, devia ser um dos nomes mais charmosos do mundo. Meu caso era parecido com o de Tadeu, já dá pra imaginar minha aparência.

"Você não vai dançar?", perguntou.

"O propósito de ter me metido nessa roupa foi evitar a pista de dança".

"Achei muito criativa", ele apontou pra abóbora que eu vestia, ou era, no caso.

"Obrigada".

"Se mudar de ideia me procura", ele se afastou.

Às vezes eu tinha uma vontade absurda de agarrá-lo, mas ele é gay então não sei se ia gostar disso.

Observei a multidão por um tempo, vendo pessoas dançando, se beijando e se divertindo no geral, cada um do seu jeito. A minha fantasia era de longe a mais criativa, como Tadeu havia descrito. Todas as outras eram clichês do tipo anjinho, diabinho, super herói, super vilão, zumbis, vampiros e coisas sem graça. Percebi que elas tinham o intuito de parecerem sensuais, mesmo as que deveriam ser assustadoras, como a loba de Denise. Talvez eu fosse a única pessoa no local que parecia ridícula; merecia pontos pela coragem.

O inevitável aconteceu, precisei ir ao banheiro. Me tranquei em uma das cabines lutando para abrir o fecho nas costas, tive que arrear o short e as meias calças depois de sair de dentro da bola laranja. Cobri toda a borda do vaso sanitário com papel higiênico que para minha surpresa nem estava tão imundo assim. Terminei, dei descarga e lavei as mãos com água pura porque não tinha sabão. Agora eu passaria o resto da noite com a sensação de que minhas mãos estavam sujas, mais um item desconfortável além da fantasia.

Alguém já tinha sentado na minha cadeira no bar, fiquei parada escorada na parede me sentindo uma agulha no palheiro. Luís estava se pegando com uma garota num canto escuro, Mônica e Tadeu estavam dançando. Fábio bebia enquanto batia papo com alguém e eu não fazia ideia de onde Denise estava. A "loba" devia estar dilacerando uma carniça por aí. Resolvi me juntar a Mônica e Tadeu, era uma opção melhor do que ficar sozinha em pé sem fazer nada. Como minha roupa era volumosa, eu acabava esbarrando em quem estivesse dos lados enquanto fazia algo que nem de longe parecia uma dança. Eu só me balançava de forma totalmente descoordenada para todas as direções. Denise costumava dizer que isso acontecia porque eu era estrábica, acho que ela tinha razão.

Mônica segurou meus braços e balançou junto comigo de forma mais ordeira. Nós duas ignoramos os xingamentos das pessoas que recebiam uma trombada de abóbora por minha causa. Era muito cômico vê-los se desequilibrando e quase caindo com o contato. A própria Mônica foi vítima algumas vezes e toda vez que isso se repetia nós ríamos mais. Ela precisou parar para ir ao banheiro e Tadeu assumiu o lugar dela passando os braços em volta do meu pescoço.

"Isso é muito hétero, o quanto você bebeu?"

"O suficiente pra deixar de ficar sóbrio", ele respondeu por cima da música alta.

"Não está fazendo bem pra minha sanidade mental. Sabe que eu tenho uma paixonite aguda por você?".

"Sério?", ele franziu a testa.

"Só estou dizendo por que você não vai se lembrar de nada amanhã. Se você fosse bissexual eu ainda teria uma chance, não que você fosse querer alguma coisa comigo", minha língua estava muito solta pra quem tinha tomado apenas um copo de limonada.

"Claro que eu ia querer! Eu quis a sua amizade, se fosse hétero ia querer o seu amor".

"Você já o tem", aquilo estava ficando um pouquinho dramático.

"Então eu te amaria de volta. Como mais do que um amigo. Só que não funciona quando dois querem dar".

"Hora de encerrar a conversa, não quero saber dos detalhes", eu ri.

"É meia noite", ouvi alguém dizer atrás de mim. O tempo tinha voado. Havia mesmo se passado duas horas desde que chegamos ali?

"Quando a gente vai embora? E quem vai dirigir?"

"Mônica", Tadeu pulou a primeira pergunta. Deduzi que ele não sabia quando iríamos pra casa.

Antes que eu tivesse a chance de bancar a estraga prazeres e ir reunir a turma para ir embora houve um apagão. A boate inteira ficou um breu, a música foi interrompida e as pessoas perguntavam uma as outras o que estava acontecendo. Tinha visto e ouvido relato de tragédias em boates, desde incêndios até massacres. Abracei Tadeu assustada. Ele me embalou de forma tranquilizadora dizendo que ia ficar tudo bem. A luz voltou depois de alguns minutos, o responsável pelo som foi rápido em restaurar a música e as pessoas ficaram mais tranquilas. Eu era medrosa demais para continuar ali depois do blecaute. Arrastei Tadeu pelo braço buscando os outros. Denise foi a que mais deu trabalho para achar, nada com que meu desespero não conseguisse lidar. Ninguém reclamou quando sugeri que fôssemos embora.

Entramos no carro, desta vez com Mônica no volante e Tadeu no lugar dela atrás. Algumas pessoas saiam da boate e seguiam caminho a pé. Quando o carro virou a primeira esquina alguém se chocou contra ele.

"Ahhhhhh!", Denise gritou histérica. Meu coração foi parar na garganta, a fantasia pareceu me asfixiar com mais intensidade, eu sentia minha cabeça latejar e meu estômago dar voltas.

"Como você atropelou alguém?", Fábio gritou alarmado. Mônica não parava de chorar com o carro estacionado próximo ao meio fio.

Mônica não tinha atropelado ninguém. Não foi culpa dela, a pessoa se chocou contra a lateral do carro. Como se tivesse sido empurrada. Luís saiu para ver se o indivíduo estava bem, eu também saí. Quando dei por mim todo mundo já estava do lado de fora. Imagine a nossa surpresa ao não encontrar ninguém ferido do lado de fora; não tinha ninguém inteiro também; na verdade não tinha ninguém. Nada além de uma mancha de sangue na calçada. Também havia sangue na janela lateral do carro.

"O que foi que eu fiz?", Mônica enxugou o rosto, ela estava trêmula.

"Seja lá o que for, parece que não foi grave ou a pessoa não teria saído andando numa boa", Luís a abraçou de lado.

"Não entendi porque que quem quer que seja simplesmente foi embora. Sem ameaças de processo? Sem indenização? Não estou reclamando, mas é estranho".

Era mesmo estranho. Eu esperava perder a noite na delegacia prestando depoimento ou brigando com alguém na sarjeta. Sair ilesa era quase inacreditável. Olhei para a esquina que tínhamos acabado de virar e vi uma pessoa vindo em nossa direção. De início achei que fosse um bêbado, depois pensei que pudesse ser o ferido e chamei a atenção dos outros interrompendo suas especulações.

"Gente olha lá! Acho que é o atropelado". Eles olharam na direção que eu apontava.

"Não parece com alguém ferido", Denise comentou.

Realmente, a pessoa andava de forma cambaleante e bem devagar, mas os braços estavam moles ao lado do corpo, achei que se estivesse ferido estaria pressionando o machucado. Além disso, a cabeça estava caída para um dos lados e quando chegou mais perto notei que sua boca estava aberta.

"Ele está fantasiado de zumbi", Fábio reparou, "e está agindo como um zumbi".

Olhei para o outro lado da rua e avistei outras duas pessoas caminhando daquela mesma forma, a diferença é que uma delas estava vestida de cigana e a outra nem usava fantasia. Não podia ser coincidência, se aquilo não era uma piada de dia das bruxas organizada por alguns moradores do bairro eu não queria pensar no que era. Mais pessoas surgiram da mesma esquina também agindo como mortos vivos.

"Eu acho que são zumbis de verdade", Tadeu disse o que todos pensavam, mas ninguém queria ouvir.

"Rápido! Entrem no carro", me desesperei.

Como se soubessem que estávamos prestes a fugir os zumbis apertaram o passo. Entramos afobadamente no carro, Tadeu assumiu novamente o volante esquecendo a embriaguez. Ninguém falou nada porque Monica não estava em condições de dirigir. Eu era a única além dela que não tinha bebido, mas não sabia dirigir.

Fábio começou a entrar e nos encolhemos ao máximo para dar espaço a ele. Ele não conseguia entrar e não tínhamos paciência para pensar na estratégia que usamos anteriormente. Denise puxava a camisa dele agressivamente, tentando a todo custo puxá-lo para dentro. Algo o puxou para fora com o mesmo afinco. Eram os zumbis. Todos seguraram Fábio pela camisa e pelos braços. Ele gritava. Eu gritava. Os outros gritavam. Mônica recomeçou a chorar, Denise também chorou. Fábio foi mordido no ombro, ele gritou mais alto, o sangue empapou sua camisa. Tadeu nos obrigou a soltá-lo, era tarde demais. Luís fechou a porta com força e Tadeu afundou o pé no acelerador.

Nós andávamos a uma velocidade surpreendente, os zumbis se jogavam contra o capô sem nenhuma hesitação. Tadeu precisou ligar o para brisa pra ver através do sangue, o vidro estava todo trincado. Sempre que um corpo se chocava contra ele tínhamos um sobressalto.

"Pra onde nós vamos", quebrei o silêncio.

"Pra cabana do vovô".

O avô de Tadeu era visto como lunático pelo resto da família. Ele era um ex-militar que havia montado um abrigo de sobrevivência para apocalipse. Segundo ele tinha capacidade para trinta e cinco pessoas e resistia desde o ataque de alienígenas até zumbis. Ninguém além do neto sabia do lugar, já que o resto dos familiares o trancara numa casa de repouso e disseram que a idade avançada o tinha deixado caduco. Com certeza dariam um fim no abrigo se soubessem.

Nós chegamos ao meio do nada onde ficava a cabana. A estrada que nos levou até lá era de terra e não havia nada a não ser postes de luz nas ruas. O carro adentrou o terreno e estacionou no mato um pouco alto. Desci para a noite estrelada de lua cheia. Os grilos cantavam e parecíamos ser os únicos ali.

A cabana não era o que eu esperava. Pensei que fosse encontrar algo feito de madeira com aspecto rústico. No lugar encontrei uma casa grande feita de metal, ou aço, não sei a diferença. Era a própria imagem da resistência.

Tadeu pegou seu chaveiro preso ao bolso e usou uma das chaves para abrir a porta que se tivesse uma roldana na frente poderia ser confundida com a de um cofre de banco.

Lá dentro o avô dele já esperava por nós segurando uma espingarda. Levantei as duas mãos em rendição involuntariamente.

"Sou eu vovô".

"Ah, eu sabia que conseguiria!", ele largou a arma em um gancho numa parede cheia de armas.

"Como fugiu da clínica?", Tadeu perguntou abraçando o velho.

"Já fugi de lugares muito mais complexos que aquele. Foi tão fácil que nem chegou a ser empolgante", ele bufou, "vou pegar comida pra você e seus amigos".

Senti um mal estar ao ouvir a palavra amigos, lembrei imediatamente de Fábio e meus olhos lacrimejaram. Era difícil acreditar que ele não estava mais aqui, que nunca mais o veria. Pelo visto não fui a única a pensar nele; Tadeu se jogou no sofá desolado, Mônica tremia de leve, Denise chorava baixinho e Luís escondia o rosto entre as mãos sentado no chão.

O avô voltou com comida enlatada, eu estava sem apetite então fiquei só com a garrafa de água. Nem em meus pesadelos fui capaz de imaginar uma coisa como aquela; eu me beliscava o tempo inteiro tentando acordar. Sabia que não era um sonho, mas não queria admitir que era real. O avô contou a história de como ele fugiu do asilo quando percebeu que as pessoas tinham virado zumbis. Foi logo depois do apagão. Uma mulher começou a se convulsionar do lado de fora da janela para a qual ele estava de frente. Antes que a transformação se completasse e ela quebrasse o vidro e atacasse todo mundo lá dentro ele já havia se mandado.

"Não deu tempo de avisar ninguém", ele se lamentou, "aqueles pobres idosos são lentos demais, não conseguiriam escapar".

Aparentemente todo mundo que estava na rua no momento do apagão tinha virado zumbi, depois começaram a atacar quem havia ficado protegido. Não fazia sentido nenhum pra mim, mas a mera existência de mortos vivos também não.

O avô foi dormir depois disso. Eu o admirava por conseguir pregar os olhos naquela situação. Só tinha um quarto na casa e era o dele. Nós tínhamos colchão e chão a vontade. Deitei no escuro encarando o teto e pensando na minha família. Será que eles estavam bem? Eu sabia que nenhum deles tinha saído de casa, mas e se os zumbis tivessem entrado? Me mexi no colchão e a fantasia fez barulho. Denise xingou alto.

"É tudo culpa sua! Se não fosse por essa maldita roupa de abóbora Fábio teria conseguido entrar no carro e estaria vivo agora", esbravejou.

Eu chorei porque sabia que ela tinha razão, mas como eu poderia ter previsto?

"Para com isso Denise! Ninguém tinha como saber que ia começar um apocalipse zumbi. Não existe culpados aqui", Mônica me defendeu.

"Mesmo assim, devia ter sido ela em vez dele. Por que ela não pode ser uma garota convencional? Por que tem que ser tão diferente do resto de nós?", era notável na voz dela o quanto desprezava aquilo em mim.

"Já chega! Você não vai ganhar nada culpando alguém, não vai trazer Fábio de volta", Luís falou mais alto que ela.

Levantei e me afastei o máximo que consegui dos outros. Eu sabia que éramos diferentes, mas isso nunca nos impediu de ser amigos. Nunca questionei nossa amizade até o momento. Denise podia estar triste, mas eu também estava. Eu me importava tanto quanto ela e talvez fosse ainda mais difícil pra eu encarar a morte de Fábio, já que sentia o sangue dele em minhas mãos. Denise não enxergava nada disso, ela nunca me aceitou muito bem. Ela via tudo o que eu fazia como uma afronta.

Me pus de pé e arranquei cada peça daquela fantasia idiota. Fiquei só com o short, a meia calça e a regata. Tirei até a boina. Joguei o que não estava vestindo longe e deitei a cabeça no chão frio.

Não havia se passado nem quinze minutos quando me assustei com um barulho. Parecia algo batendo nas laterais do abrigo. Senti uma mão tocar meu ombro e gritei.

"Sou eu", Mônica falou, "eles estão aí fora".

No mesmo instante meu coração reagiu de acordo com o meu medo. Tentei não entrar em pânico. Não tinha jeito de eles entrarem ali, não é? Aquele material era bem resistente.

Ao ver que eu tinha me livrado da fantasia Mônica me olhou com pesar.

"Você não deveria se culpar. Você é tão vítima quanto qualquer um de nós", ela me abraçou e eu amoleci em seus braços. Deixei que me guiasse de volta para onde os outros estavam.

Mantive meus olhos longe do rosto dos demais. Ninguém falava nada, nem fazia nada, mas o clima não era desconfortável. Já estávamos acostumados demais uns com os outros para deixar que o silêncio criasse tensão entre nós. A única coisa que causava desconforto era o som das batidas dos zumbis nas paredes do abrigo. Eu apertava as mãos uma na outra, estalava os dedos, mordia os lábios, balançava as pernas, nada parecia servir para diminuir meu nervosismo.

Ouvi um som que parecia diferente dos outros. Não parecia um bater ou arranhar, era um tilintar, achei que não fosse nada demais. Eu estava assustada e minha cabeça andava criando cenas e barulhos que nem existiam. Ouvimos uma das janelas correndo, sendo aberta. Viramos na direção da janela e corremos até ela, lá os zumbis se amontoavam no espaço pequeno tentando entrar. Tadeu correu para a parede de armas e pegou uma pistola, Denise apanhou uma espingarda, a mesma que vi o avô segurando quando chegamos. Parecia errado atirar neles, mesmo sendo monstros. Eles já tinham sido humanos antes daquela noite, e se pudessem voltar a ser? Talvez a zumbificação pudesse ser revertida. Cobri as orelhas para bloquear o barulho dos tiros que acertavam braços, ombros e pernas, acho que meus amigos não queriam causar danos graves, deviam pensar como eu. O avô de Tadeu acordou e veio calmamente até nós, ele saiu de novo e quando voltou tinha parafusos e uma furadeira na mão.

"Precisamos vedar a janela, vocês me ajudem a fechá-la", ele apontou para Mônica e Luís.

Cada um deles se colocou de um lado da janela e começou a empurrá-la. Os tiros cessaram, pelo que pude ver não tinha muitos zumbis, a maioria, senão todos tinham sido baleados e estavam incapazes de continuar tentando entrar. O avô ligou a furadeira na tomada e parafusou as duas partes da janela quando esta foi por fim fechada. Mônica e Luís continuavam segurando firme pra evitar que ela se abrisse de novo. Não tinha nada que eu pudesse fazer ali, então fui para outro canto onde manchas de sangue não fossem visíveis. Fui parar perto de onde minha fantasia estava jogada, pensei em colocá-la no lixo, mas provavelmente não caberia. O ruído de panela caindo me assustou, não havia ninguém naquela parte além de mim. A menos que alguém tenha passado por mim sem que eu notasse. A pessoa responsável por derrubar panelas deu um grunhido desumano, arregalei os olhos ao ver o ser desfigurado deixar as sombras e caminhar na minha direção. Peguei o objeto mais próximo de mim, um vaso de vidro, e joguei na cabeça do que um dia foi uma mulher. Antes que ela tivesse chance de se levantar recuperada do impacto peguei a fantasia de abóbora no chão e cobri o rosto dela. Apoiei todo peso do meu corpo sobre o tecido laranja torcendo o nariz para o cheiro pútrido. A zumbi balançou os braços nervosamente e só parou quando não lhe restou mais fôlego. Luís surgiu ao meu lado com a respiração acelerada perguntando o que tinha acontecido. Eu não conseguia dizer nada, minhas mãos estavam ficando dormentes, mas eu me recusava a parar de pressionar a fantasia na cara da zumbi. Tinha medo de que aquela coisa levantasse e me atacasse quando eu virasse as costas. Os demais apareceram logo depois de Luís.

"Um deles conseguiu passar", Luís explicou.

"Deve ter acontecido antes da gente aparecer", Denise concordou.

"Não importa, ele está morto agora", o avô mandou eu me levantar antes que apodrecesse também.

Com algum custo me coloquei de pé. Achei que seria inútil dizer que o certo era ela. Também não pensei no que tinha acabado de fazer. Fiz bem em não ter comido nada ou teria vomitado com certeza. Fui para o meu colchão sem esquecer de dar uma boa olhada nas janelas. Não havia uma que apresentasse risco.

"O trinco daquela estava com defeito. Meu avô não teve muito tempo pra fazer a manutenção do lugar", Tadeu deitou no sofá.

"Imagino que fugir da clínica por algumas horas sem levantar suspeitas seja complicado", arranhei a garganta.

Meus amigos voltaram para suas camas improvisadas. O avô tinha arrastado a zumbi, definitivamente morta, para o porão depois que Denise deu três tiros no peito dela só pra garantir que não iria se levantar. Após três horas todos já tinham dormido de novo, menos eu. Era impossível fechar os olhos sabendo que tinha um zumbi na mesma casa que eu, não importava que ele estivesse morto e trancado no porão. O único jeito de eu dormir seria estando segura em uma fortaleza militar subterrânea no polo norte. Ou no polo sul, eu era flexível em relação a isso.

"Ainda acordada?", Denise perguntou.

"Sim".

"Me desculpa pelo que eu disse antes, estava fora de órbita".

"Você tinha razão".

"Que diferença isso faz? Ninguém vai sair dessa sem sequelas. Além disso, sua fantasia nos salvou matando aquele zumbi".

Nós rimos com amargura. Se não fosse pela fantasia eu estaria morta, eles teriam escutado meus gritos, atirado e se salvado. De qualquer forma um de nós não estaria mais aqui. Podia não ser assim também, podia ter acontecido uma série de coisas diferentes. Era difícil definir o que teria ou não mudado.

Continuei alerta até o sol nascer, mesmo quando senti o peso do cansaço nas primeiras horas da manhã.

O avô levantou e preparou o café assobiando uma canção animada demais para a ocasião. Ele agia como se fosse uma manhã qualquer e não a primeira após o início da extinção humana. Tadeu levantou e espiou por uma das janelas.

"Não estou vendo nenhum deles, pode ser que dê pra enterrar o que ficou no porão", ele se virou pro avô.

"Enterrar dá muito trabalho, tem um incinerador nos fundos", a sugestão dele me chocou.

"Será que eles não saem durante o dia?", Mônica perguntou se espreguiçando.

"Acho que você esta confundindo com vampiros", falei.

"Eu não ligo pro que eles são; só gostaria muito que não saíssem durante o dia".

Concordei com ela. Minhas noites estavam fadadas a ser um completo inferno, eu não queria perder os dias também. Luís e Tadeu foram buscar o defunto no porão enquanto o resto de nós se ocupou com o café. Desta vez meu estômago se encontrava estável o bastante para aceitar uma fatia de pão. Os meninos voltaram do porão correndo como se o próprio diabo estivesse atrás deles.

"O que houve?", Denise se apressou em questionar.

"Não está mais lá. O corpo sumiu", Luís explicou rápido.

Sabíamos que Luís e Tadeu não encontraram o zumbi no porão, não tinha necessidade nenhuma de todo mundo ir pra lá ver. Mesmo assim, era exatamente o que estávamos fazendo, eu fui por não querer ficar sozinha. Se o zumbi não estava no porão vai saber onde ele estava… seria melhor ficar no lugar onde eu tinha certeza que não o veria.

Realmente não havia nada no porão. Senti uma pontada forte no peito e me curvei para frente com uma mão sobre o joelho e outra no coração. Várias imagens de um monstro em decomposição me pegando em uma emboscada surgiram. A vingança perfeita contra a garota abóbora.

"Ei! Você é muito jovem pra ter um infarto", o avô riu.

Eu poderia mesmo morrer de susto.

"Fica tranquila, sei que existe uma explicação perfeitamente lógica pra isso", Tadeu argumentou.

Nada desde a meia noite era lógico.

"Será que os zumbis têm sete vidas como os gatos?", Mônica criando teorias.

"Não diz isso! Não diz isso!", eu estava hiperventilando. Tadeu me entregou uma sacola de papel.

Alguém achou que seria uma boa ideia nós sairmos do abrigo. Foi indescritivelmente bom sentir o calor do sol e a brisa fresca que soprava nas árvores. Se eu não pensasse que poderia ser atacada por um zumbi a qualquer momento me sentiria bem. Só que não tinha nenhum zumbi nas redondezas. Nem os que atacamos de madrugada. Imaginei que fosse dar de cara com uma pilha de corpos próximo a janela, mas não vi nada a não ser folhas e algumas amoras caídas. Olhando ao redor parecia apenas mais um dia bonito no ano. Mas os vidros trincados e cheios de sangue do carro estacionado indicava que algo muito errado aconteceu. No entanto, parecia o único vestígio do terror da madrugada.

"É melhor vocês irem ver o que aconteceu na cidade."

"O senhor não vem com a gente?"

"Não quero voltar a ficar preso num asilo tão cedo. Vou esperar aqui."

Fizemos como ele pediu e entramos no carro prontos para voltar pro centro. Pela janela inteira vi que tudo tinha voltado ao normal. Exatamente ao normal. As ruas iam se enchendo de humanos em ótimas condições conforme nos aproximávamos do centro. Havia outros carros circulando na pista, e ônibus, e caminhões. Era como se a lua tivesse levado com ela não só as horas de escuridão da madrugada, mas também o que ocorreu durante elas.

"Alguém mais tá confuso?", Luís perguntou quando estacionamos no lugar onde Mônica atropelou um zumbi.

"E se for algum tipo de feitiço de halloween que induziu um pesadelo coletivo?"

Tadeu apontou pro para brisa.

"Então o carro estaria inteiro", ele tinha razão.

"Será que podemos ir pra casa do Fábio?", se ele tivesse voltado ao normal significava que as pessoas que estávamos vendo eram zumbis curados. Tadeu ligou o carro.

Fábio estava vivo e bem. Ele não era um zumbi e agia como se nunca houvesse sido um. Perguntei o que ele se lembrava da noite passada depois de lhe dar um abraço de urso.

"Eu estava na boate. Teve um apagão e as luzes voltaram logo depois, então fiquei lá até amanhecer".

"Não se lembra de ter ido embora com a gente?", Denise se mexeu na cadeira. Estávamos na sala de Fábio.

"Não, quando fui procurar vocês já tinham ido. Podiam ter me avisado né! Precisei arrumar outra carona".

"Desculpa. Eu me assustei com o apagão e quis sair o mais rápido possível", não era bem uma mentira.

"O que houve com a sua fantasia por falar nisso? Se vocês saíram antes de mim porque ainda estão todos com a roupa da festa?".

"Fomos pro asilo ver meu avô. Ele não estava bem".

"Ele tá melhor agora?".

Tadeu começou a conversar sobre a saúde de seu avô com Fábio. Mônica se sentou do meu lado.

"Eu me sinto maluca", comentou baixinho.

"Eu também, não posso ter apenas imagino tudo aquilo".

"Fábio tem uma versão diferente do que aconteceu, e se a nossa versão também não for verdadeira? E se tivermos entrado em uma espécie de transe e feito nós mesmos aquilo com o carro?".

"Se for eu prefiro não saber como".

Nunca gostei muito de halloween, agora não queria nem pensar nele.


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Notas finais do capítulo

Oi mundo!
Essa é a primeira história que eu posto aqui, sei lá se tá bom (então me digam, por favor). Opiniões e críticas são sempre bem vindas!



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