Sonâmbulos escrita por Black Wolf


Capítulo 2
Thiago




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Thiago

Era sexta-feira, o único dia da semana em que Thiago poderia dormir até um pouco mais tarde porque decidira se abster das aulas de geografia para evitar a possibilidade de eventos constrangedores e possivelmente prejudiciais ao seu bem-estar físico. Os sonhos daquela noite tinham sido fora do comum e lhe proporcionaram um descanso que a muito não tinha, acordara e ao estender seus braços para abraçar o mundo se espreguiçando e cantando o bom sono com um bocejo ainda levou cinco minutos para levantar da cama e se arrumar. Ele decidira usar os seis meses de seguro desemprego para estudar o máximo das horas que fossem possíveis para conseguir passar em um vestibular e então depois conseguir outro emprego porque nesse mundo de um Sol é preciso vender o seu tempo e suas habilidades para ter o que comer. Realmente, era um mundo estranho.

Decidiu descer até a cafeteria que ficava no térreo do prédio onde morava e lá comeu um pão de queijo para não ter que ir encarar o seu encontro de estomago vazio. O lugar era pequeno e aconchegante, tinha cheiro de pão quentinho e a visão do sorriso de Júlia atrás do balcão, o que deixava o lugar ainda mais doce.

— Vai querer o seu pão de queijo? – No momento em que passou pela porta e fez soar o aviso ela surgia de dentro da cozinha com uma forma de pães frescos prontos para receber as pessoas que agora acordavam atrasadas para a vida que se deve levar na cidade.

— É como se você lesse a minha mente. Obrigado! – E antes mesmo de alcançar o balcão Júlia já havia esvaziado a sua forma e o alcançava um pão de queijo dentro de um saquinho marrom. – Estou um pouco nervoso sobre hoje.

Júlia e Thiago se conheceram no momento em que ele se mudara para o prédio com o seu antigo companheiro de quarto. Os três vieram a se tornar muito próximos desde então, pois eram os únicos jovens que moravam naquele prédio historicamente aos pedaços. O tempo consolidou neles uma amizade segura e memórias inesquecíveis. Três anos depois, ele ainda descia praticamente todos os dias na cafeteria, mesmo que fosse para apenas dar um oi para Julia, e quando não conseguia passar por lá Julia subia até o seu apartamento para ver como ele estava.

— Você tem certeza que quer fazer isso agora? – Júlia estava preocupada, e com razão, já havia visto Thiago passar por momento difíceis durante sua amizade, mas nenhum deles parecia ter um peso tão grande sobre a própria identidade dele.

— Se eu não fizer isso agora eu sinto que eu posso acabar nunca fazendo, e eu não quero essa sensação. Você sabe o que eu penso sobre arrependimentos.

— “Só se arrepender do que deixou de fazer, e sempre fazer de novo se o arrependimento te deixa louco”.  – Era como um mantra, que eles entoavam mais um para o outro do que para si mesmos, como um ombro amigo.

Thiago sorriu e se despediu de Julia antes de seguir em direção ao local de encontro. No mesmo ano em que ele conhecera Julia Thiago havia descoberto que fora adotado pelos seus pais quando era um bebê. Eles não queriam mais guardar essa verdade dele e achavam que ele já estava saindo de casa, parecia maduro o suficiente para lidar com a verdade. Thiago não soube como reagir então, e decidiu apenas ignorar essa nova verdade na sua vida. A mudança para uma cidade diferente, as probabilidades, as pessoas, tudo parecia emocionante e ele não queria estragar aquele sentimento. Então escondeu esse fato em um cantinho bem escuro da sua existência e o manteve lá o maior tempo que pode, até que ele começou a feder.

Cerca de seis meses atrás, ele decidira pedir mais informações sobre a sua adoção para os seus pais, e então e foi então que descobriu que não havia sido um processo de adoção comum. Depois de sua mãe descobrir que não poderia engravidar, a primeira coisa que ela pensou foi em adoção. Mas como Thiago sempre soube, seus pais costumavam não ser muito bons com processos sociais. Então em uma certa noite seu pai chegara com ele com casa, enrolado em seus braços, e sua mãe era só abraços. O assunto nunca mais foi mencionado e para sua mãe também fora uma surpresa quando seu pai confessara que o havia realmente comprado de um uma senhora que trabalhava em hospital em uma cidade vizinha.

Depois de buscar na internet informações sobre essa mulher e entrar em contato com o seu filho, ele conseguira seu telefone afirmando que gostaria de fazer negócios com ela. E agora ele estava esperando o ônibus que o levaria até a mulher que o havia roubado confrontá-la e exigir algumas respostas.

A viagem de cerca de trinta minutos foi rápida e embalada pela nova playlist que Tiago havia feito dias atrás, não se permitia dormir com medo de perder o ponto. Descendo do ônibus ele se dirigiu a um shopping que ficava próximo, onde havia marcado de se encontrar com a mulher na praça de alimentação. Caminhou o restante do caminho aproveitando ao máximo os últimos instantes que teria com as suas músicas e ao entrar no shopping retirou os fones e segui para a praça de alimentação.

Antes mesmo de se aproximar Thiago avistou a mulher sentada sozinha com uma sacola amarela com pintas rosas em cima de uma mesa em frente ao Subway, onde e como eles haviam marcado. Seu coração acelerou involuntariamente, mas decidido ele seguiu em frente e caminhou firmemente até a mesa onde se sentou em frente a mulher e pode enxergar o seu olhar cansado frente a frente.

— Então é esse tipo de encontro que vamos ter hoje. – Disse a senhora e tentou esboçar um sorriso que acabou sendo interrompido por um acesso de tosse.

— Você parece estar acostumada com essas situações, mas para uma vendedora de bebes, não deve ter muito que lhe surpreenda. – Thiago não entendia como aquela mulher podia estar tão calma sabendo o que ele veio fazer ali.

— Como é o seu nome, rapaz? – A mulher tinha os cabelos tingidos de castanho, mas suas raízes eram brancas como a neve e suas linhas profundas como a noite. Ela era magra e suas rugas se espalhavam por todo o rosto. Mas ainda mantinha um ar de tranquilidade.

— Eu me chamo Thiago, graças a você. Obrigado.

— O quanto você sabe, e o quanto quer saber, Thiago? – Ela agora parecia mais séria falando. Colocou seus óculos e da sacola tirou um notebook que pôs em cima da mesa e o ligou.

— Mas o quê.... Eu sei que você me vendeu para o meu pai quando eu era um bebe, e quero saber de quem você me roubou. – Sua raiva ia dando lugar a curiosidade, não estava mais irritado, apenas confuso.

— Você pode me dizer em que ano nasceu?

— 1997.

— Vejamos…. Nesse ano eu tive quinze crianças, sendo que dessas, oito eram negras, então vão te sobrar sete nomes, eu posso te dar eles agora, se você quiser.

— Agora? Eu tenho que anotar? Espera, você não vai me cobrar? – O Thiago confiante e seguro que ele estava fingindo até agora havia desabado e realmente ele não estava entendendo mais nada.

— Thiago, certo? – Disse a mulher fechando a tampa do notebook e o olhando agora com um pensar nos olhos de quem já viu muito. – Eu não sou nenhuma ladra de crianças, ao contrário do que você imagina. Eu trabalhei a minha vida inteira como enfermeira em um hospital. Durante todos esses anos eu vi muitas mulheres dando à luz a crianças as quais não poderiam alimentar apenas com o seu amor. Certa vez eu conheci um casal que gostaria de ter um filho, mas por motivos de saúde já não lhes era possível, e na mesma noite após essa conversa nós acabamos perdendo uma mãe em trabalho de parto, o pai não iria assumir, a criança seria levada para um abrigo, um orfanato, para crescer na miséria. Eu não poderia deixar isso acontecer e então fiz o que meus instintos me disseram para fazer. Depois que eu fiz a primeira troca, meus amigos tinham um filho, e um rapaz na rua tinha uns trocados a mais. Desde então eu sigo fazendo o que eu posso para ajudar quem gostaria de cuidar de uma criança a cuidar de uma. Mas eu tenho tudo que posso registrado aqui nessa velharia. Porque eu sabia que eventualmente vocês voltariam, e eu teria que saber apontar a direção certa. Agora, se você me der o seu email, eu posso te encaminhar os nomes, Thiago. – E sorriu dessa vez, levemente e pesadamente, mas estava lá, escondida atrás de todas aquelas rugas, a satisfação em ver que suas escolhas haviam a levado até aquele momento.

Depois de encaminhar a lista, Thiago ainda perplexo com o que havia acabado de ouvir se despediu da mulher que lhe deu um longo e apertado abraço que ele não conseguiu rejeitar. Agora no ônibus de volta ele pensava em como o seu julgamento por aquela mulher havia mudado drasticamente do instante em que chegara no shopping até aquele ultimo abraço. Suas músicas novamente embalavam sua viagem, mas dessa vez ele não precisava se concentrar para não dormir.


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