Allan in Horrorland escrita por Yuna Aikawa


Capítulo 3
O Reino das Improbabilidades




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O pequeno roedor concordou em me levar para o castelo dessa tal soberana Bones, desde que eu jurasse lealdade à resistência e ao prefeito. Passei o caminho todo tentando identificar cenas do livro de Lewis Carroll e imaginando se era uma história verídica, se uma garotinha de dez anos passou por aqui aumentando e diminuindo, fazendo amigos e enfrentando feras - aquilo parecia impossível, mas ali estava eu, vivendo uma aventura num país esquecido.

A vegetação, que deveria ser super colorida e alegre, não passava de cinza e preto; havia casas abandonadas por todo caminho e muitas placas com nome de rios, mas nenhuma água; nenhum som, nenhuma criatura, nada vivo além de mim e do rato. Até que, lá longe, pude ouvir uma melodia bem baixa.

Olhei rapidamente para o roedor, que concordou com a cabeça como se eu tivesse dito alguma coisa óbvia, e seguimos na direção do som, que aumentava a cada passo. Algumas cores começaram a aparecer, um verde de grama ali, um rosa de flores acolá. Senti meu coração disparar quando identifiquei a fonte do som: era o castelo, o Castelo de Copas, tenho certeza! Ali os jardins estava cheio de vida, com suas majestosas rosas vermelhas e margaridas; havia movimento, pessoas e animais iam e vinham pelas escadarias amareladas; identifiquei o campo de croquet com diversos flamingos; os muros brancos estavam impecavelmente limpos e duvido muito que as grandes portas de madeira maciça estivessem podres.

— Apague esse sorriso idiota do rosto - Disse o rato, trazendo-me para a realidade novamente - É ali que a rainha mora.

— A Rainha de Copas?

— Que tal a Rainha Bones? Aquela que você veio matar, sabe?

Ah, certo. Talvez, além de jurar fidelidade, eu tenha jurado um assassinato. E como faria isso apenas com a roupa do corpo? Seria mesmo capaz de matar alguém? As dúvidas foram tomando conta de mim enquanto nos aproximávamos pela lateral do castelo, onde havia uma saída de esgoto por onde eu deveria entrar.

— Chegamos - Sibilou o rato - Se não aparecer com a cabeça da rainha em três dias, vamos entender que você falhou.

— Certo…

— Eu senti dúvida na sua voz!?

— O quê? Não! É só que…

— O quê? Você é bom demais pra entrar pelo esgoto?

— Eu não disse isso!

Mas antes que aquela discussão inútil prosseguisse, um sorriso largo se formou sobre o muro. Depois surgiram algumas listras de um roxo bem vivo, então listras rosas.

— Não precisam brigar assim - Disse a boca flutuante - Eu já anunciei para a rainha que temos visita!

Aquele sorriso malicioso foi tomando a forma de um gato e, assustado, dei um passo para trás e cai sobre a água imunda. Cheshire apenas riu, estendendo a pata para me ajudar, enquanto o pequeno roedor que me guiou havia sumido. Quando pus-me de pé, já estava cercado por cartas equipadas com lanças e rosto de poucos amigos. “Te vejo lá dentro, companheiro!” foi a última coisa que ouvi do felino antes de ser atingido na nuca até perder os sentidos.

Acordei com os pés sendo arrastados preguiçosamente escadaria a cima, sendo carregado pelos ombros e embalado em piadas ruins sobre quão inútil é o Dois de Paus. Amplas portas de madeira vermelha foram abertas, anunciando minha chegada no que parecia ser o salão principal do castelo. Havia uma longa mesa branca cheia de comida no centro sob um tapete vermelho-carmim e, na ponta, um enorme trono dourado e vermelho, onde Ela estava sentada.

A primeira impressão que tive foi de uma criança solitária. Sua pele era absurdamente clara, como se não tomasse sol há décadas; os olhos, ah, magnificamente azuis, escuros, tirando toda a atenção das suaves olheiras que carregavam; um nariz fino, prepotente. A boca era carmim, bem definida no meio de um rosto tão delicado. A rainha usava um longo vestido de camadas preto, sem brilho, sob uma enorme capa que passava o trono e se confundia com o tapete. Sobre suas madeixas castanhas, uma delicada coroa com as quatro naipes do baralho, cada uma esculpida numa pedra preciosa diferente, igual aos quatro anéis que usava nos dedos finos que seguravam uma taça igualmente dourada. Ela não parecia muito mais velha do que eu, mas já dominada um país inteiro - soberana e impiedosa.

— Quem é você?

Sua voz, firme e autoritária, ecoou pelo salão. Ninguém ousou se mexer, até a brisa suave que passava por ali pareceu parar. Ela deu mais um gole em sua bebida, sem desviar os olhos de mim e em seguida fez uma careta.

— Que cheiro horrível é esse?

— É ele, majestade! - Acusou-me o Oito de Espadas - O encontramos no esgoto!

Bones apenas revirou os olhos e fez um sinal para nos retirarmos. Fui levado para um tipo de sauna com chuveiros, onde me deram três minutos para me banhar e colocar roupas limpas. Falei que não tinha nenhuma outra peça de roupa, o que me deu mais dois minutos de banho até me trazerem algo. Depois de seco e vestido, fui levado novamente para a sala onde a rainha comia e colocado numa cadeira afastada dela, mas ainda próximo a comida.

— Me parece melhor - Disse enquanto garfava alguma carne branca - Mais uma vez, quem é você?

— Al… Allan, senhora.

— Você parece nervoso - Disse satisfeita - É bom estar. Sabe quem sou?

— Sim, senhora - Engoli seco - É a rainha Bones, senhora.

— Aqui não há “senhora” - A voz surgiu do além - É “alteza” ou “majestade”, escória.

Assim, sem qualquer aviso, Cheshire começou a se materializar na cadeira a minha frente, deixando apenas uma enorme panela de sopa entre nós. Ele trazia seu sorriso malicioso, provavelmente pronto para me denunciar como possível assassino da “alteza” e, como se lesse meus pensamentos, começou:

— O que te traz até o castelo de Bones, “Al-allan”?

— Senhor Cheshire, - Senti o olhar da rainha fixo em mim - Estou perdido. Estava correndo pelas ruas de Londres e não sei bem como vim parar aqui! - Menti.

— Londres? - Mais uma vez aquela voz autoritária cortou o salão - Na terra dos homens?

— Não sei como chamam aqui, alteza, mas a cidade de Londres, na Inglaterra.

A rainha pareceu furiosa, como eu lhe tivesse ofendido de alguma forma, e pareceu descontar essa raiva no pedaço de carne em seu prato. Senti meu estômago roncar, qual tinha sido a última vez que comi? Ela pareceu notar isso e soltou um riso presunçoso.

— Está confortável, Allan? - Perguntou sem desfazer o sorriso.

— Si…

— Tragam os porcos! - Gritou - Bom, por que não come alguma coisa enquanto me conta porque realmente está aqui?

Engoli seco, imaginando se aquela seria minha última refeição e se os pássaros passariam aqui em três dias para confirmar se falhei. Antes que eu pudesse responder alguma coisa, uma porta lateral atrás do trono se abriu e vários porcos rosados e gordos apareceram correndo e sumiram debaixo da mesa. Um deles tirou meus sapatos com o focinho e se enfiou por baixo dos meus pé, como um apoio macio e quentinho. Puxei a toalha para vê-lo melhor e percebi que todos os porcos estavam posicionados em frente as cadeiras vazias, imóveis, esperando mais convidados para apoiar os pés neles.

— Eu não sei ao certo porque estou aqui, majestade - Comecei - Sei que cai na toca do coelho e que muitos querem te ver morta.

— Coma - Ordenou e eu imediatamente comecei a me servir com a sopa - Não quero saber sobre as pobres criaturas que acham que podem me matar, quero ouvir sobre Londres.

Comecei então a contar-lhe tudo o que sabia sobre a capital, sobre sua moeda, importância política, metrôs, ruas, galerias, museus… Falava sobre qualquer coisa que conseguia me lembrar. A rainha parecia estar num misto de fascinação e tédio enquanto me ouvia tagarelar nervosamente. Por fim levantou a mão exigindo silêncio. Aproveitei essa pausa para enfim deliciar-me da sopa que já estava fria enquanto Cheshire acompanhava os movimentos da colher com seus olhos amarelos e um sorriso satisfeito.

— Você veio me matar, correto? - Perguntou a soberana, seca - Limpe a boca antes de me responder.

— Infelizmente sim, alteza. Não imagino como conseguiria esconder isso.

— E se fizermos uma troca? - Percebi o sorriso de Cheshire se desfazendo com a proposta - Durma aqui esta noite e parta amanhã, para o vale.

— Morrerei no vale, alteza? - Perguntei, já imaginando os assassinos me esperando lá.

— Allan, levante-se - Ordenou - Levante-se e vá até aquele espelho. Agora me diga, o que você vê?

Fui, obediente, até uma enorme parede de espelhos que ficava na parte oposto ao trono. O que eu via? Uma patética criatura, magra demais para a altura, vestindo calças bufantes roxas e uma camisa larga de algodão cru. Via um adolescente que nada sabia da vida, com olhos castanhos comuns, um nariz comum, uma boca apagada e algumas sardas. Via um cabelo mediano escorrendo pelo rosto, ainda molhado do banho, num tom comum de castanho escuro. “Vejo uma pessoa comum”, suspirei.

— Ah, mas você não é comum, “Al-allan” - Sorriu o gato - Afinal, você está aqui, então deve ser louco!

— “Todos somos loucos aqui” - Sibilei, mórbido.

— Alguém sente sua falta em Londres? - Perguntou a rainha.

— Não, alteza. Meu pai morreu quando eu tinha doze anos e minha mãe se livrou de mim quando se casou novamente. Talvez minha professora de piano sinta minha falta, mas é velha demais para me procurar.

— Majestade! - Um homenzinho grisalho com uma cabeça muito grande para o corpo entrou correndo no salão - Temos um problema!

Esse homenzinho tinha o maior nariz que já vi em minha vida, fazendo a cabeça parecer triangular; usava um terno muito bem costurado, roxo, e um colete xadrez amarelo com marrom. Nos pés, tão grandes quanto seu nariz, usava sapatos muito bem lustrados cor-de-café; e na cabeça, seu cartão de visitas, uma enorme cartola verde-oliva com um cheiro fortíssimo de chá.

O Chapeleiro correu até próximo a rainha, fazendo-lhe mil reverências, enquanto se atropelava nas palavras. Quando finalmente parou, recebeu da rainha um tapa estalado no rosto triangular e parou de falar imediatamente. Endireitou a postura, fez mais uma reverência à sua soberana e falou calmamente:

— Majestade, a giganta está de volta - Anunciou - Diz que irá destruir o castelo até encontrar seu filho, mesmo que isso signifique destruir a excelência - A rainha parecia entediada, como se aquela fosse a notícia mais comum do dia - Devemos aprontar nosso exército, alteza? Podemos deixar o cavalheiro de fora…

— Basta, Maluco. Sua voz está me dando dor de cabeça! Tire aquele híbrido das masmorras e prenda-no no pátio, a vista de todos. Não há necessidade de exército, eu mesma acabarei com essa gigante na frente de seu precioso filho.

O homenzinho fez mais uma reverência e saiu na mesma correria que entrou, gritando pelos guardas. Não pude deixar de pensar no quão forte Bones não deveria ser para enfrentar sozinha e sem medo uma gigante em frente aos seus súditos e no próprio castelo - e no quão sem coração ela era para querer uma mãe em frente ao filho.

A rainha pediu licença e se levantou, desaparecendo por uma porta secreta atrás do trono.

— Parece que agora somos somente eu e você, companheiro! - Sorriu o gato - Me siga, vou lhe mostrar onde você irá dormir.

Peguei um pedaço de pão da mesa e fui seguindo o felino por vários corredores que pareciam um labirinto. Ele me mostrou onde tomei banho, a biblioteca, a cozinha, o calabouço, mais quatro salões, o tribunal, as saídas para os jardins e, por fim, o quarto onde eu passaria a noite. Era um quarto azul, com uma enorme cama de casal ao centro e algumas cômodas, quadros e abajures espalhados de forma sem sentido que atrapalhavam muito o caminho até a janela. “Fique à vontade, Al-allan” foi a última coisa que ouvi antes do gato desaparecer no ar.


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