O Juiz da Verdade escrita por Goldfield


Capítulo 2
Capítulo 1: Negócios escusos




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Capítulo 1

 

Negócios escusos

 

“Extra, extra!”.

Os gritos sintéticos do jornaleiro-robô se confundiam com o som das baterias eletromagnéticas dos hovercars zunindo em plena Avenida Copacabana. A máquina deslocava-se lentamente pela calçada sobre sua própria plataforma magnética, flutuando sobre um círculo de luz azul a vinte centímetros do solo. Possuía o formato de um cilindro branco com detalhes em verde e vermelho, não muito diferente das lixeiras flutuantes que também trafegavam pelas ruas da cidade lembrando os cariocas de não atirar lixo no chão. A julgar pelo teor das notícias, muitos não deixariam de considerar o jornaleiro somente mais uma delas. Um drogado no auge do frenesi talvez o tomasse, por sua vez, por um comprimido gigante.

Já os viciados em notícias detinham-se junto ao robô, espetavam nele seus pendrives para baixar as atualizações do dia e depois os acoplavam de volta em seus tablets ou celulares, passando impacientemente os dedos pelas telas até as seções que mais lhes interessavam, geralmente esportes e entretenimento. O débito pela operação era automaticamente descontado de suas contas bancárias, pequenas notificações em vermelho contabilizando centavos piscando nos monitores dos aparelhos. Simplesmente compartilhar as notícias na BrazilNet seria muito mais simples, decerto – mas a rede vinha apresentando problemas há tempos e estava até inacessível a muitos usuários. Além do mais, recorrer a procedimentos físicos para transmitir informação ajudava na compartimentalização da mesma, favorecendo o controle do que deveria ou não ser veiculado. E isso satisfazia as necessidades do governo, Carlos bem sabia.

Após ele próprio plugar seu pendrive na máquina e retirá-lo tão logo a luz vermelha no artefato mudou para verde, o rapaz transferiu as informações ao seu tablet. A página inicial do jornal eletrônico estava abarrotada de notícias sobre política e economia, incluindo alguma decisão da Suprema Corte dos EUA sobre clonagem e a compra da antiga PEMEX pela Stelix Corporation – não que as manchetes particularmente o interessassem. Deslizando o dedo pela barra de rolagem, deslocou a tela até a área de concursos públicos. O resultado do maldito exame admissional da OAB.

Conforme andava pela calçada ocupado com o computador, sua visão periférica fazendo-o desviar dos transeuntes que abriam os guarda-chuvas para se proteger das primeiras gotas que caíam do céu nublado, Carlos vislumbrou a fachada iluminada do Hotel Rio Paradise – a arquitetura conservada fazendo o estabelecimento remeter a uma joia dos filmes antigos de bossa nova protegida da voracidade do tempo. Ele bem poderia usar o dinheiro do pai para organizar uma bela noitada numa das suítes de luxo, porém a festa que buscava só aconteceria dentro de sua cabeça. E quanto menos rastros deixasse ali, melhor. Era por isso mesmo que combinava um ponto de encontro diferente a cada dia com o fornecedor.

Adentrando o saguão amplamente iluminado pelos lustres no teto e candelabros elétricos às paredes cor de creme, fazendo o interior contrastar bastante da manhã chuvosa lá fora, Carlos buscou seu contato com o olhar através dos turistas atualizando Instagrams e dos funcionários de uniforme vermelho descansando junto ao balcão da recepção. Logo visualizou a figura de jaqueta cinza e calças pretas de pé junto a uma coluna de mármore, semblante vago tal qual apenas observasse o ambiente. Sabia bem disfarçar os olhos de rapina em busca de viciados. Aqueles que garantiam sua crescente fortuna.

Ah, se o grande juiz Pedro de Castro soubesse para onde está indo seu dinheiro...

Carlos avançou até o traficante disfarçadamente, passando a visão por duas garotas loiras estrangeiras que ele sem dúvida tentaria cantar se estivesse ali em outra situação ou, acima de tudo, ainda fosse solteiro. Apoiando-se ao lado dele na pilastra, resolveu ir direto ao ponto, sua voz saindo excessivamente rouca ao tentar falar num tom baixo:

— Preciso de Perestroika.

Complementou o pedido com o sutil estender da mão direita, oferecendo três notas de cem reais-novos ao criminoso.

A resposta foi um sorriso debochado, o mero abrir da boca do sujeito bastando para exalar um fedor de vodca. A noite dele devia ter sido boa. E não perdera tempo em, logo depois da diversão, ir prontamente recolher dinheiro de seus amados dependentes.

— Sinto muito, amiguinho, mas o preço subiu.

Filho da puta!

— Como assim? – Carlos esforçou-se para conter-se e manter a voz monocórdia. Algo que o pai lhe ensinara bem com todo seu apreço à lei e aos procedimentos era não demonstrar nervosismo diante de homens como aquele. – Não era trezentos?

— A guerra na Bielorrússia está prejudicando os produtores, e você conhece as regras da oferta e procura... – o traficante murmurou, olhando para os lados com a clara vontade de sair logo dali. – Pague ou passo adiante. Pode ter certeza de que há mais gente interessada...

— Quanto, então? – a mão com as notas voltou para o bolso, os dedos tateando em busca de mais cédulas.

— Quinhentos.

Carlos torceu os lábios, esticando de volta o punho mais farto do que antes. Poucas pessoas ainda comercializavam em papel-moeda, mas os firewalls e toda a vigilância online faziam-no praticamente irrastreável em comparação ao dinheiro eletrônico. Justamente por conta disso, porém, andar com cédulas tornava o indivíduo altamente suspeito de estar envolvido em ações ilegais, e a PU não costumava parar para ouvir justificativas. Isso fez Carlos agradecer pelo criminoso apanhar as notas o mais rápido possível, não dando na vista de ninguém mais no hotel.

Um ruído plástico veio a seguir; e os mesmos dedos do rapaz que haviam estendido o dinheiro sentiram a textura da pequena sacola lacrada contendo a seringa. Carlos inseriu-a no bolso e lançou um último olhar ao fornecedor. Decerto o maldito cobraria ainda mais caro a próxima dose.

Sem se despedir, o jovem retornou até a porta do saguão. Na rua a tempestade caía agora com toda força, e ele se esquecera de sair do apartamento com o guarda-chuva. Ergueu a camisa para tentar se cobrir com a gola, ao mesmo tempo em que erguia novamente o tablet. No tempo que passara negociando com o traficante, sua pesquisa pelo nome “Carlos de Castro” na lista de aprovados do exame da OAB já fora concluída.

A ausência do registro revelou ter bombado mais uma vez.


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