[...]

 Eu caminhei até o portão e dei de cara com um homem vestido "semisocialmente" com uma blusa social preta, calça jeans, sapatos de couro pretos e um distintivo da polícia civil pendurado no pescoço.
— Ethan Hale? — Ele perguntou.
— O próprio.
— Eu sou o delegado Diogo Guerra. Estou aqui referente ao caso da Gabriele Dantas.
— Imaginei que sim. Entre, por favor. — Guiei ele até a sala. — Aceita um café, água, chá...? — Perguntei enquanto me sentava no sofá e indicava para ele se sentar também.
— Água, por favor.
— Certo. Abigail. — Em poucos segundos ela estava na sala.
— Senhor?
— Dois copos de água, por favor.
 Sem dizer nada ela foi em direção a cozinha.
— Então, Ethan. Conte-me como foi o seu dia ontem.
— Bem, eu... Acordei com uma ligação do Thiago, ele me convidou pra uma festa no novo iate da Luxury, por volta das onze horas. Lá eu estive com a Gabie...
— Gabie? É assim que você a chamava? — Ele perguntou enquanto Abigail deixava os dois copos de água na mesa de centro.
— Não só eu, o Thiago também. E não duvido que os outros também a chamassem assim.
— Certo. Prossiga.
— Bem... Lá eu estive com ela, o Thiago e todos os outros que costumam estar conosco. Após a festa no iate nós, como de costume, viemos terminar o dia aqui em casa.
— Qual era o seu nível de proximidade com a vítima?
— Não muito. Em festas eu... — Eu olhei pra cima e Alice e Angela estavam encostadas na grade de metal e vidro do deck superior da casa ouvindo a nossa conversa. — Eu... Costumo me relacionar com alguma das meninas que estão nessas festa. Não foi diferente com a Gabie, passamos a noite juntos duas vezes.
— Ela dormiu aqui alguma das vezes?
— Não. Eu nunca permito que pessoas com quem eu me relaciono durmam aqui. — A essa altura só estava Angela observando.
— Entendo. Você tem algum envolvimento com drogas? — Mentir vai ser pior.
— Sim.
— Qual tipo?
— Cocaína, maconha e morfina.
— Quem te fornece essas substâncias?
— O Thiago consegue elas pra mim e sempre traz uma boa quantidade pras festas. Onde ele consegue eu não sei.
— O que você sabe sobre o assassinato?
— Pra ser sincero, nada além de que foi de madrugada. Apesar de saber que isso está por toda a internet eu... Não parei pra olhar.
— Onde você estava quando ele ocorreu?
— Aqui. Eu não saio de casa após as festas, nem sequer levo o pessoal no portão. Abigail é quem faz isso.
— Entendo. No corpo da vítima foram encontrados hematomas, indícios de estupro e a causa da morte que foram facadas. Por conta disso precisaremos fazer uma perícia aqui na sua casa, se não se importa.
— De forma alguma. Quando?
— Amanhã. — Preciso dar um jeito de tirar a Alice daqui.
— É só isso, Ethan. Sugiro que faça como outros suspeitos, providencie um advogado. Caso algo aconteça. — Ele disse enquanto se levantava do sofá.
— Tudo bem... Espero ter ajudado. Eu o acompanho até a saída.

 9 de Julho, 22:10
 Ethan's House: Sala

 Alice descia as escadas enquanto Abigail estava terminando de arrumar a cozinha.
— Dona Abigail? — Ela disse.
— Dona é a Senhorita.
— Não... Só Alice está ótimo. Precisa de ajuda?
— Não, minha filha... Já estou acabando aqui na cozinha e só vou levar essa toalha pro Seu Ethan lá na piscina e já estou indo deitar. Não precisa se incomodar.
— Quer que eu leve a toalha pra ele? Assim a senhora não precisa ir lá fora.
— Olha... Peço desculpas, mas eu estava limpando o banheiro lá de cima e acabei ouvindo sua conversa com a Dona Angela. Você gosta dele né, minha filha?
— Não acho que seja isso... Ele é gentil, cortês, um ótimo anfitrião... Mas... Não... Não é isso.
— Eu já tive a sua idade... Você fica aí toda envergonhada quando fala dele, mal aparece quando ele está por aqui. Deve ter pensado bastante antes de se oferecer pra ir lá fora levar a toalha. Olha... Nada me tira da cabeça que você gosta sim do Seu Ethan. Ele tem os problemas dele, mas tem um bom coração sabe? Não liga pro que sua irmã fala viu? Quem tem que decidir se ele é bom pra você é a senhorita.
— A quanto tempo conhece o Ethan?
— Ihh... Desde quanto ele era miudinho. Sempre foi um molequinho, desde pequeno. Quem viu ele crescer sempre soube que ele seria um homão, já agia como um desde pequeno, nem ligava pro que falavam. Andava sempre com os meninos, chorava pra colocar um vestido que olha... Vou te contar. — Alice começou a rir. — Pois é, minha filha. Ele comete seus erros, mas é um bom homem.
— Eu vou levar isso lá fora. — Disse Alice enquanto pegava a toalha em cima do balcão. Abigail deu uma piscadinha pra Alice e em seguida ela foi até a porta de entrada que dava para a piscina.

 9 de Julho, 22:17
 Ethan's House: Piscina

 Eu estava de bermuda e binder nadando e pensando em tudo o que estava acontecendo, o quanto eu estava sobrecarregado com absolutamente toda essa avalanche de merda.
— Ei, suspeito. — Disse Alice enquanto se dirigia à borda da piscina.
— Oi... — Eu respondi ofegante.
— Te trouxe uma toalha.
— Obrigado. — Eu disse enquanto saía da piscina.
— Você nunca tira... Isso? — Ela perguntou apontando pro meu binder.
— Eu fico sem quando está só eu e Abigail em casa. Não me sinto confortável quando tem visita.
— Ah... — Ela ficou em silêncio me olhando até eu terminar de me secar.
— O que foi?
— Isso não incomoda?
— O que? O binder? — Ela concordou com a cabeça. — No começo sim, mas já fazem tantos anos que eu uso, não incomoda tanto.
— A quanto tempo você iniciou a transição? — Ninguém nunca tinha se interessado assim antes. Ok... Vamos lá.
— Quatro anos. — Eu respondi enquanto pegava duas das espreguiçadeiras do deck da piscina e colocava na grama. Me sentei e apontei pra espreguiçadeira do lado da minha.
— Como foi o processo? Se... Você quiser falar. — Me deitei, olhei pro céu e ela fez o mesmo.
— Conheci o termo transexual com quatorze anos fazendo pesquisas próprias. Comecei o tratamento hormonal com dezesseis. Até o momento só passei pela cirurgia de retirada do ovário. Felizmente eu consegui bem rápido pelo SUS, Abigail teve um trabalho complicado cuidando de mim, disse que ela podia tirar o tempo de férias que quisesse depois disso.
— É só você e ela? Onde estão seus pais? — Não... Chora...
 Eu fiquei em silêncio tentando segurar minhas lágrimas. Sem sucesso.
— Você deveria dormir, Alice, está tarde. Boa noite. — Levantei às pressas e fui caminhando rápido pro meu quarto na tentativa de que ela não me visse chorando. Por que ela tinha que falar deles, POR QUE?!
 Ela veio caminhando atrás de mim, tentando me acompanhar, mas assim que eu entrei no quarto eu bati a porta praticamente na cara dela, me tranquei lá dentro e comecei a chorar abaixado no chão do lado da minha cama.
— Ethan? Abre a porta... — Ela disse enquanto batia na porta. — Ethan...!
 Abigail saiu do quarto dela.
— Dona Alice... O que está havendo?
— O Ethan... Ele... Eu não sei, eu acho que eu fiz algo de errado.
— Calma... Me conta o que aconteceu.
— Nós estávamos lá fora conversando e... Eu perguntei sobre os pais dele e ele...
— Oh, minha filha... Você tocou no único assunto que não devia.
— Mas... Por que?
— Eu não tenho permissão para falar sobre isso. Mas você mexeu com o pior dos pesadelos dele...
— Eu não... Eu não sabia... — Os olhos de Alice se encheram de lágrimas.
— Calma, não é sua culpa. Olha pra mim... — Abigail disse pegando o rosto dela e virando para si. — Vem aqui. — Abigail segurou a mão de Alice e a levou até o quarto de empregados. — Essa chave aqui abre todos os quartos. Eu vou voltar para o meu quartinho e ela vai ficar com você. Caso queira usar ela... Use. Se não... É só pendurar ela aqui de novo. — Disse Abigail apontando pra um ganchinho na parede.
— Ok... — Sussurrou Alice.
— Boa noite, minha filha. E boa sorte. — Abigail voltou para o quarto dela e Alice se dirigiu até a porta do meu quarto.
 Ela ficou uns segundos parada, chorando, pensando se deveria ou não fazer aquilo. Então ela abriu a porta, correu em direção a mim e me abraçou... E pela primeira vez eu não me incomodei em ser tocado por alguém sem a minha permissão.
— Me perdoa... — Ela disse chorando e eu conseguia sentir cada lágrima dela cair sob o meu ombro. — Eu não... Eu não queria causar isso.
— Não... É sua... Culpa. — Ela se afastou e ficou me olhando. Eu estava muito assustado com todas as lembranças que passaram pela minha mente quando ela mencionou os meus pais. Mas eu sabia qual era a única coisa que faria toda aquela dor sumir por pelo menos alguns segundos...
 Desesperado eu a beijei... Como se ela fosse a minha única salvação... E realmente era.