Não é só mais uma história natalina como as outras escrita por Zack Tarantino


Capítulo 1
Capítulo 1




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Ano 280 D.C 

O frio passeava pela estrutura óssea de Cecília. Cambaleava entre as pedras do litoral enquanto escondia a própria presença entre as casas. Os gritos ameaçavam estourar suas cordas vocais. Caiu bruscamente sobre uma das construções lesionando sua costa. Um conjunto de urina, fezes e sangue saia por debaixo de sua túnica. Quando sentiu que estava sendo rasgada por dentro e viu que não estava mais sozinha, sua consciência apagou para que pudesse preparar-se para a morte.

—Acho que ela está morrendo. Ela não está bem.

—Entreguem o bebê para que ela possa segura-lo nos braços antes de ir para a companhia de Deus.

A voz firme juntava-se ao balançar das tochas que iluminavam o quarto. Sentiu o calor de uma criatura próxima ao seu rosto antes mesmo que seus olhos conseguissem reconhecer o local. Só sabia que ainda não tinha morrido e que deveria segurar aquilo nos seus braços com toda a força que lhe restava. Disse a primeira palavra que veio em sua mente: oi. Depois disso os batimentos diminuíam até chegar no zero. Cecília esforçou-se para trazer o ar até os pulmões, e parecia que agora este estava sendo levado até ela, como se o bebê controlasse a atmosfera do quarto.

—Ela está melhorando de uma hora para outra! É um milagre!

Observou o sorriso do padre de voz firme que estava na frente do outro. O outro saltitava de um lado para o outro e entoava gratificações ao ser divino.

—Este menino terá um futuro grandioso. Será um grande homem que fará muitos milagres!

—Acalme-se, Teodósio. A mulher ainda está enfraquecida e precisa de paz e silêncio. Vá buscar o padre César.

Cecília ouviu a porta se escancarando e uma sombra passar pela entrada. A medida em que seu corpo ganhava força sua mente começava arquitetar suas próximas decisões.

—Onde estou?

—Sou o padre Cícero. Encontrei você na vila. Os moradores ouviram gritos e nos chamaram quando souberam do que se tratava. Trouxemos você e o bebê para cá e limpamos os dois.  Gostaria de um copo de água?

—Gostaria de saber onde eu estou.

—A igreja fica próxima a vila. Então...

—Entendi. Eu preciso ir. Não posso ficar com ele.  

—Você precisa se recuperar primeiro e também...

Levantou-se da cama repentinamente fazendo com que o padre erguesse uma das sobrancelhas. O corpo funcionava como se nunca tivesse desgastado suas energias. Repousou o bebê sobre a cama. As pernas hesitaram. Impulsionou os joelhos contra o chão e apoiou uma das mãos sobre o local onde estava seu filho.

—Eu disse que ainda não estava pronta. 

Ele se direcionou até a pequena mesa no canto do quarto onde o jarro com água estava posicionado. Antes mesmo que este virasse, Cecília correu até a porta e desceu o agrupamento de escadas em espiral.

Padre Cícero observou as tochas iluminando a escadaria. Rapidez não era o seu forte. Virou a cabeça em direção a janela esperando avista-la tentando cruzar a vila em algum momento. Isso não aconteceu.  

Ano 291 D.C

Entregou o pão nas mãos lambuzadas de lama. Era a terceira vez que fazia isso. Enquanto todos comiam suas refeições, ele fitava o prato até que o salão estivesse suficientemente vazio para que pudesse ir até a vila e doar sua comida para alguém. Sentia uma enorme satisfação apesar do embrulho no estômago. Poderia saciar-se com o próximo banquete. 
Uma águia pousou sobre a cruz no teto da igreja. Observou o céu enquanto entrava pelo portão dos fundos. 
—Tem alguém querendo te ver.
A voz vinda do fundo o assustou. 
—Eu estava...
—Ela diz que é a sua mãe e que precisa te ver urgentemente. 
Fez uma careta mas decidiu segui-lo. 
Cecília estava sentada em uma cadeira. Ela olhou para trás e lhe dirigiu um sorriso. 
—Você é mesmo minha mãe? 
—Sou. Você deve estar se perguntando porque te abandonei. Existe uma boa razão para isso. Eu preciso te explicar algumas coisas. Você pode nos deixar a sós? 
O padre exitou por um momento mas decidiu se retirar deixando a porta fechada. 
—Venha. Não tenha medo. Sente-se. 
O menino aproximou-se desconfiado. 
—Acho que não me apresentei direito. Sou Cecília. Qual o seu nome? 
—Nicolau. 
—Nicolau de Mira. Acho que é um bom sobrenome para você. Melhor ainda que Cecília de Mira. Mas vamos direto ao assunto. Eu te abandonei porquê... 
Ela encostou sua mão na de Nicolau que surpreendentemente não a afastou. 
—Bom, a primeira coisa que precisa entender é que você não é como as outras pessoas. 
—Não entendo. 
—Nem eu, pra ser sincera. O que eu sei é que você é capaz de... Ser influenciado pelos outros de uma forma sobrenatural. Tanto para o bem quanto para o mau. Você é capaz de absorver algo dos outros mesmo sem saber. E isso te dá poderes. Mas o mau o enfraquece e deve tomar cuidado com isso. Você tem sorte de morar num local de pessoas caridosas e boas. Eu não tive a mesma sorte e perdi meus poderes. As coisas que eu tive que fazer para sobreviver... Não quero nem lembrar disso. 
Nicolau foi para um estado pensativo enquanto olhava para os contornos da mesa de madeira. 
—Claro. Não posso ficar em contato com pessoas ruins. Mas não se preocupe. Padre Tomas está cuidando de mim. 
—Acho que você não entendeu. Talvez se nos encontrarmos mais vezes você começaria a compreender seu próprio poder e a responsabilidade disso. Mas não podemos ficar muito tempo juntos. Eu posso fazer você perder os poderes. 
—Que poderes são esses? -Perguntou curioso. 
Ela sorriu. 
—Você pode viver por muito tempo. Mais do que todas as pessoas. Acredito que vá desenvolver suas próprias habilidades. Lembro de algumas coisas de quando eu era uma criança. Conseguia acertar qualquer objeto ou pessoa mesmo em grandes distâncias. Me escondia com facilidade e me curava rapidamente. Era capaz de pegar qualquer coisa que eu quisesse. 
Os olhos se encheram de lágrimas. 
—Enfim, agora vamos falar sobre você. O que faz aqui? 
—Ajudo as outras pessoas principalmente. Eu e mais um grupo de padres vamos ajudar as pessoas da vila, mas a comida nunca é suficiente. Queria poder fazer mais. 
—E você pode. Se você quiser pode ajudar pessoas de vários territórios, e não só deste. 
O mundo pareceu melhor para Nicolau. O fato de que as pessoas faleciam largadas no chão era triste. E ele sabia que havia mais comida para o povo do que era oferecido, mas a igreja só fornecia o suficiente para evitar algum tipo de invasão. A bondade deles, ainda que muita, tinha limites. A de Nicolau não.

Os pés dele deslizavam suavemente pelo córrego. Ambos estavam sentados sobre a beira da ponte com as pernas para o lado de fora. Aquele dia tinha um clima agradável.

—Você acha que eu posso ajudar todo mundo?

—Com certeza.

—E se eu falhar e perder meus poderes?

—Isso só vai acontecer se você deixar. Mantenha-se afastado de pessoas que não se comportam bem e não perderá suas habilidades.

—Faz sentido.

Olhou para baixo a procura de algum assunto.

—Você se lembra de um padre meio calvo e com sobrancelhas grandes?

—Acho que sim. Tenho algumas lembranças de quando era criança. Ele viajou junto com outros padres e nunca mais voltou. Eu só consigo me lembrar disso.

Ela só balançou a cabeça afirmativamente.

—Eu preciso me manter afastada de você. Não posso ficar aqui por muito tempo. É pro seu próprio bem.

Cecília dizia isso constantemente, mas todos os dias era avistada entre as árvores esperando pela chegada de Nicolau. Ele tinha receio de que isso pudesse afeta-lo, mas o medo sumia assim que ela falava sobre o mundo lá fora.

—Existem vários tipos de terrenos. Desde montanhas gigantes – E elevou sua mão até o alto para indicar o tamanho – Até cavernas que levam para lugares desconhecidos em baixo da terra.

—Parece... incrível!

Ela passava de empolgada para preocupada muito rapidamente.

—Eu já vi muitos relatos de isso acontecer. Vai chegar o tempo em que seus poderes serão tão grandes que você simplesmente vai parar de envelhecer. E quando chegar essa hora, você deve forjar a sua morte. As pessoas não podem saber da existência de seres como nós. Vão se sentir em perigo e começar a nós caçar e talvez até a matar.

Nicolau adentrou na casa juntamente com os padres. Observou a menina com praticamente a mesma idade que ele e o rosto muito pálido.

—Ela está morrendo. Alguém me ajude por favor- Implorava a mãe aos prantos olhando para eles.

Aproximou-se da cama e tocou a testa da garota. Ela ardia em febre. A mãe olhava ansiosamente a espera de um milagre. Nicolau fechou os olhos e respirou profundamente. O calor da testa começou a ser sugado para suas mãos e sumir. Ouviu os sussurros de pessoas orando a sua volta. Conseguia não apenas ouvi-los, mas saber quais eram os seus desejos.

A notícia espalhou-se como moscas quando sentem cheiro de comida decomposta. Pelo menos metade do povoado sabia das capacidades sobrenaturais do menino, e não demorou até que fosse conhecido em outros locais.

Em uma noite qualquer, Cecília o surpreendeu visitando-o em um horário fora do que era de costume. Encontraram-se em uma das entradas da igreja, próximo a escadaria.

—Parece que agora você virou um ‘’ mensageiro de Deus’’

—É o que estão dizendo. Achei que viria só amanhã

—Eu decidi vir agora. Estava com saudades. Eu estava ocupada e não pude ver meu filho nos últimos dias.

Nicolau sorriu para ela que retribuiu o gesto. A luz da tocha revelava o rosto da mãe. Acariciou lentamente o rosto dela enquanto tentava guardar cada pedaço dele em sua memória. Já estava na hora de afastar-se. Cecília poderia atrapalha-lo.

Uma caravana de padres e algumas pessoas da vila estava partindo na mesma noite. Nicolau partiu com eles em uma carroça puxada por bois.

1920

A nevasca vinha dos cantos mais distantes para acorda-lo. Batia incessantemente na janela. Aquilo não o irritava. O frio fazia parte do seu ser desde muito tempo.

Uma pequena montanha se formava debaixo dos cobertores cada vez que respirava. Começar a engordar depois da primeira guerra mundial. Todas aquelas pessoas cometendo atos de níveis animalescos o fez se sentir inútil. Se ao menos o conselho o deixasse intervir em alguma coisa...

—Você acordou antes da hora. O que acha de aproveitarmos um pouco?

—Sim.

Ela moveu-se para cima dele e acariciou sua barba. Esfregaram-se até que seus órgãos estivessem unidos. Nicolau ofegava enquanto ambos impulsionavam suas virilhas para cima e para baixo. Permaneceram assim por alguns minutos até chegarem ao ápice do prazer. Nicolau saiu de baixo dela e foi em direção a banheira. 
A água teve um efeito relaxante sobre sua pele. Isso era algo bom, especialmente na noite em que viria. Ela entrou quando este estava quase se retirando. 
—Você vem comigo Tessa? -Indagou enquanto enrolava a toalha embaixo da cintura. 
—Sim. Você pode se atrasar um pouco? Acho que vou demorar um pouco aqui, Noel. 
Ele entendeu aquilo como uma provocação, mas como havia parado de envelhecer em idade um pouco avançada já não tinha a mesma energia de antes. Passou uma mão sobre a pele úmida dela e retirou-se para seu quarto. 
Noel. Analisou se gostava daquele apelido ou não. Ganhou-o após ingressar no conselho. Papai Noel na verdade. Aquilo era estranho para ele já que nunca teve descendentes. 
Despiu-se da sua toalha e vestiu sua blusa branca. Colocou um casaco de couro com lã nas pontas e uma calça feita do mesmo material. Por último veio uma cinto e uma bota, juntamente com um gorro. Tessa apressava-se em sair do banho e colocar um vestido beje. 
—Acho que estamos prontos. 
—Você realmente tem que se apressar? Considerando seus poderes você deveria ficar mais tranquilo.

—Exatamente por isso, Tessa. Eles me colocaram num dos trabalhos mais importantes pelo fato de eu ser poderoso, e isso traz grandes responsabilidades. Eu me lembro até hoje de me perguntarem: ‘’ O que você quer?’’ e eu respondi que queria ajudar o mundo inteiro, e eles em troca me disponibilizaram o material e a fama necessárias para fazer isso. Nós tínhamos um objetivo em comum. E você também – Disse acariciando seu ombro e sorrindo. –Decidiu trabalhar na área administrativa, o que não é menos importante.

—O que me incomoda não é ser importante ou não, e sim ser sermos praticamente obrigados a ingressar no conselho e ‘’ fazer o bem pelo mundo inteiro’’, como eles dizem, e você sabe disso.

—Eu sei que pode ser cansativo pra caralho, mas no final do dia vale a pena, e isso eu posso te afirmar.

A conversa pareceu ter acabado. Tessa virou a cara e pegou seu casaco. Trilharam seu caminho em direção a nevasca lá fora.

Um grupo de duendes terminavam de encaminhar os presentes para dentro do trenó mágico. Eles apareciam de fendas feitas na neve e trabalhavam rapidamente, de forma que alguém sem olhos atentos diziam que eles simplesmente se teleportavam ao invés de ir para algum lugar no subsolo. Tessa sempre ficava impressionada com aquilo.

Nicolau cumprimentou seus funcionários e ingressou na arca. Ela acenou rapidamente e se sentou e esperou. Os poderes da arca faziam com que todos os presentes coubessem em seu porta-malas. Ele pegou as duas cordas presas ao veículo e as bateu contra a parte da frente, fazendo com que o objeto emitisse um barulho estranho antes que faíscas amareladas começassem a sair dele. Partiram alguns segundos depois.

                          ******

Lily fechou os olhos e buscou toda a fé que tinha dentro de si. Deixou a janela aberta, quem sabe não teria mais chance de ser ouvida. Entoou em alto e bom som todas as frases que ouvia as pessoas dizerem quando queriam se comunicar com seres sobrenaturais. Conseguia ouvir os passos da mãe andando pela sala e arrumando a decoração mesmo estando na cozinha. Ficar de joelhos cansava suas pernas, e em poucos minutos estava de pé observando tudo o que sua progenitora fazia. Ela tinha os mesmos cabelos castanhos curtos e lisos, o nariz fino e arrebitado, olhos escuros e grandes e uma fisionomia muito magra.

—Mãe –Chamou. –Você sabe quando ele vai vir?

Ela parou por um instante com sua atividade e procurou por uma resposta dentro da sua cabeça.

—Até amanhã de manhã você receberá seu presente. Não se preocupe querida.

Lily não pareceu muito contente com a resposta, de modo que continuou a olhar pro céu a espera de qualquer sinal. E então, de onde menos esperava, ele veio. O som da campainha invadiu seus ouvidos e fez seus pés mexerem até a entrada. Quase havia escorregado no tapete marrom, mas conseguiu se equilibrar colocando a mão na cômoda.

—Nora!

A voz a assustou. Não esperava que o representante do natal pudesse soar tão rude e que de alguma forma soubesse o nome de sua mãe. Hesitou em abri-la. Ouviu o nome ser gritado por continuas vezes até que a porta se abriu com um estrondo. A primeira coisa que viu sobre aquela densa névoa caindo foi uma bota. Alguém havia arrombado a entrada com o pé. Lily observou as linhas e contornos da figura que estava ficando cada vez mais visível. Aquilo não era bom.

Correu o máximo possível até estar muito próxima as escadas. Algo a ergueu nos braços e seu coração quase saiu pela boca. Tranquilizou-se um pouco quando ouviu a voz da mãe falando perto de seu ouvido. Ambas estavam com um pijama que assemelhava-se a um vestido muito longo, o que atrapalhava a corrida. Lily a abraçou enquanto estava em seus braços, e a última coisa que viu antes que a porta fosse fechada foi a silhueta de seu pai carregando um machado e subindo as escadas com a velocidade de uma máquina.

Nora soltou Lily no chão. Ela se abaixou para ficar na mesma altura da filha e colocou as mãos em seu rosto com firmeza.

—Preste atenção no que vou falar. Você tem que pular daquela janela –Disse apontando. –Você precisa fazer isso agora! Vai!

Lily conseguia sentir as mãos da mãe tremendo. Balançou a cabeça entendendo a ideia e encarou o frio lá fora. Não parecia tão difícil, mas a cada vez que se aproximava sentia mais medo. Foi empurrada contra o parapeito. A porta abriu-se com um estrondo.

                         ******

O trenó locomovia-se pela nevasca com extrema facilidade. O teto do veículo era quase invisível aos olhos, feito para proteger seus passageiros e ao mesmo tempo dar uma visão ampla do lado externo. Noel cogitou em colocar uma das mãos para fora.

—Está na hora? –Tessa indagou.

—Acredito que sim.

—O que foi? Você parece preocupado ou com medo.

—Eu estou sentindo uma presença negativa muito forte vinda de uma casa próxima a este local.

—Então por que não vai checar?

—Você sabe que eu não chego perto de pessoas ruins. Eu posso absorver a energia ruim delas e fazer coisas ruins e enfraquecer. É por isso que eu só atendo as crianças boas.

Tessa revirou os olhos e permaneceu em silêncio. Enquanto isso, Nicolau ponderou se deveria ou não ir.

—Mas... Eu sinto uma presença boa precisando de minha ajuda. Eu quase posso ouvi-la. Eu preciso fazer alguma coisa!

O trenó virou ao seu comando e começou a descer bruscamente. Tessa teve de se segurar nas pontas. O veículo pousou com um baque e deslizou um pouco pelo chão feito de neve. Ele saiu no instante em que o trenó havia parado. Tessa o acompanhou até a porta da casa.

—Eu achei que eu já tinha...

Ergueu um braço. Um floco de neve bateu em sua luva e deslizou alguns centímetros pelo casaco até ter seu trajeto interrompido. De repente, o mundo inteiro estava parado. As luzes não piscavam mais e a neve se recusava a descer para o chão. O único que não era afetado foi o responsável por fazer isso.

Tessa havia encostado na parede da casa. Observou-a sobre a luz do poste. Ela estava bonita naquele vestido. A luz não iluminou totalmente seu rosto, mas era possível ver o cabelo castanho, os olhos verdes e os contornos animalescos que moldavam sua feição. Ela lembrava menos um coelho do que quando se conheceram. Apertou uma de suas mãos. Isso o acalmava. A aparência diferente fazia com que fossem mais macias do que o normal. Riu olhando para o cabelo sujo de neve dela. Queria ter uma visão confortante antes que encarasse o que quer que estivesse naquela casa.

Arregalou os olhos ao ver que a porta estava arrombada. Entrou na sala e reparou nas pegadas de terra e neve. O invasor provavelmente teria vindo de longe, considerando que não havia um rastro de terra em quilômetros. Mesmo com o tempo parado, conseguia sentir aquela sensação ruim que o sufocava. Subiu as escadas sem prestar muita atenção no ambiente ao seu redor. Só queria que aquilo sumisse e parasse de atrapalhar seus sentidos.

Caminhou até a porta escancarada do andar superior. Afastou o olhar o máximo que pode assim que viu o sangue espalhado pelo chão. Respirou profundamente e ergueu a cabeça para encarar a cena. Uma mulher de aproximadamente trinta anos estava largada quase de bruços no chão com fendas abertas pela barriga e seios. Não havia sinais de luta. Tudo havia acontecido rapidamente.

Direcionou o olhar para alguns metros a frente e viu um corpo de tamanho pequeno. O corpo tremeu e as lágrimas caíram. Ela estava deitada com os pés na direção dele e praticamente reta mas com a cabeça virada para a janela. Era como se ela estivesse mirando o ambiente lá fora na esperança de que alguém viesse. Marcas de sangue estavam estampadas na borda da janela e em vários locais ao redor.

Pensou no que fazer, mas tudo o que fazia era chorar. Recuou em busca de afastar a imagem de sua mente quando sentiu o metal frio passar perto de sua cabeça. Era como se uma fera remoesse suas estranhas por dentro. Desequilibrou-se a procura de um lugar para escapar daquilo que estava abrindo seu ombro. Moveu uma mão o máximo que pode para trás e pressionou contra o inimigo. Uma rajada de vento o atingiu e o fez voar contra a parede do corredor. O machado voou junto com ele.

Tentou mover-se. Sua roupa encharcada de sangue pregava na pele. Gritou por Tessa enquanto tentava atravessar o corredor. Ela veio correndo acudi-lo. Mesmo sem entender a situação, colocou um braço ao redor de seus ombros e ambos seguiram caminhando. Ela olhou para trás tentando averiguar o que aconteceu.

—Você matou o homem, Nicolau. Os olhos dele estão abertos e revirados e tem sangue escorregando pelo nariz. Ele quase não pisca. Se não morreu vai morrer em breve.

Noel podia sentir o medo na voz dela.

—Meus poderes estão falhando. Ele achou que estava em um sonho quando me viu e como sua sede de sangue estava inesgotável resolveu me atacar. O estranho é que só fui senti-lo depois de ser atacado. A energia negativa dele era forte. Deve ter atrapalhado meus poderes. E também tem o choque de ver todo aquele sangue e aquelas pessoas mortas e...

—E como você sabe de tudo isso sobre ele?

—Ele emitiu essas sensações segundos antes de eu... Mata-lo. Agora vamos. Acho que não vou conseguir me curar totalmente.

Saíram da casa quase escorregando na porta. Testou seu poder levantando a mão, mas só funcionou por poucos segundos. Abaixou a cabeça e fechou os olhos enquanto Tessa o encaminhava para o trenó.

—Noel? –Sacudiu seu corpo em busca de alguma resposta física. –Noel?

Parou bruscamente tentando aceitar que aquilo estava acontecendo. Ele não respondia a nenhum estimulo do ambiente externo. Tessa olhou para o outro lado tentando ignorar o fato de que o braço dele estava apoiado em seu ombro sem nenhuma força, apenas deslizava por sua nuca ameaçando cair no chão. Olhou para o trenó em busca de ajuda.

Observou pequenos pés saindo da traseira para ajudá-la. Possuía o tamanho de um anão e uma roupa verde cheia de franjas e um chapéu pontudo, quase equivalente a um gorro. Sua face era estranha pelo fato de ser muito achatada.   

—Eu não esperava que fosse acontecer tão rápido –Disse o duende ajudando-a a carregar o corpo. Colocaram-no num dos bancos da frente.

—Vamos chamar o conselho. Eles devem eliminar quaisquer rastros de acontecimentos sobrenaturais dessa área e apagar a mente de qualquer testemunha humana disso. Vamos dizer que o que ocorreu foi uma fatalidade. Não é tão incomum de acontecer. E você não pode dizer que eu estava aqui. Pretendia me esconder no compartimento traseiro entrando em uma embalagem de presente e espiona-lo para colher informações. Não sabia que você iria acompanha-lo. Quando ouvi os gritos dele fiquei até com medo de sair. Quando fui ver estava você carregando o corpo dele –Disse observando Tessa. –Você parece triste. Não vai me dizer que se apegou a ele, afinal você foi responsável por sua morte e provavelmente de outras pessoas.

—Eu não... –Disse, mas parou avaliando se aquilo era verdade. –Quer dizer, eu planejava que ele morresse, mas não dessa forma. Queria que ele fosse sendo envenenado aos poucos até que morresse enquanto estivesse dormindo.

—Foi astuto da sua parte colocar um pouco de veneno na refeição dele todos os dias e ver qual efeito iria ter. Isso deve ter atrapalhado o funcionamento dos poderes dele.

—E como você pretende controlar essas renas?

—Um pouco de pó mágico. Elas também são burras. Nem devem ter notado a morte do seu dono. Enfim, temos que ir. E só uma observação: Esse vermelho ficou muito bem nele. Melhor do que esse verde brega e cafona. Vou falar com o conselho sobre uma mudança de cores. Espero que mudem meu uniforme também. Aliás, por que ele escolheu essa cor?

—Ele dizia que era a cor preferida dele. –Respondeu fechando a porta do trenó. –Vamos.

—Não falta muito para destruirmos o conselho e sermos livres deles e dessa ideia idiota de que fazer o bem fortalece e fazer coisas ruins enfraquece. Vamos poder fazer o que quisermos.

O pó mágico teve seu efeito de dominação. Partiram pouco tempo depois deixando a rua em um silêncio total.


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