Teenage Wasteland escrita por Clarissa


Capítulo 1
Pictures of you


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem. É só um devaneio bobo.



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Uma vez fomos adolescentes. Faltava pouco para que ela completasse dezoito anos, mas seu rosto não lhe dava mais que quinze. Não lembro onde a conheci; talvez tenha sido no corredor, entre uma aula e outra, ou quem sabe numa festa ruim, com músicas ruins, sentado no canto mais escuro. Eu andava assim, meio emburrado, ruminando poesia beat entredentes, torcendo os dedos dentro dos bolsos da calça. Ela, ela era outra coisa: os cabelos pretos e muito lisos escorregavam sobre seus ombros, e eu, sem muito esforço, adivinhava o brilho pálido de sua pele alva escondido sobre o enorme casaco de flanela.

Chegava o tempo em que eu tinha de me barbear todos os dias, como outrora havia visto tantas vezes meu pai fazer defronte ao espelho do banheiro. Mas às vezes eu me esquecia; simplesmente isso: eu me esquecia de que tinha de fazer a barba e só mais tarde, levando displicentemente a mão ao rosto, sentia o toque áspero dos pelos, uma certa coceira. E os dias iam sem que eu me importasse em afiar a navalha e preparar a espuma. Por isso na noite em que a conheci ela me disse em tom de deboche: você parece um náufrago com essa barba. Juventude, grandes naufrágios. Eu sorri para ela. Aquilo talvez rendesse uns versos beats.

Quando eu pensava em nossa cidade, era difícil imaginar o nascer do dia. Parecia que por lá era sempre noite, sempre a escuridão espreitando nas laterais das casas, perseguindo-nos por cima dos ombros. Sem chuva, nem vento, tampouco nuvens. As crianças cresciam sem medo de histórias de terror ali e se divertiam em torno da chama púrpura de uma fogueira. Há somente uma noite imensa e estrelada. Eu lhe confessei isso e ela concordou. Só tem maluco aqui, ela falou, acendendo um cigarro. Fãs de The Cure e Edgar Allan Poe bebendo vinho no cemitério. Sabia? Eu até que gosto daqui por causa dos malucos.

Vamos beber alguma coisa, propus. Eu calçava umas botas velhas de couro e ela um par de tênis All Star muito gasto. Gostava de conhaque, embora aqui não fizesse frio o suficiente para entornar o copo. Ninguém precisou ensiná-la a beber. Tudo o que sabe aprendeu assistindo western no cinema da rua 5. Conhecia a diferença entre arma e pistola. Lembrei de lhe dizer que eu guardava o dinheiro nas botas, igual faria um facínora texano interpretado por Eastwood. Ela achou graça. Me contou entre dois goles que tinha um irmão mais velho, meio gordo e desempregado. Ele dirigia um carro verde e sujo, cheio de restos de comida, latinhas de cerveja e calcinhas de vagabundas enfiadas no porta-luvas. Você já pensou em fugir? Ela respondeu:

— Sim. Mas, na verdade, eu só queria pegar o carro dele e sair dirigindo por aí, sem destino, ouvindo as minhas canções preferidas. Eu colocaria uma fita cassete pra tocar e dirigiria por horas e horas.

Eu fugiria com você. Estou bêbado, de qualquer jeito. Muito bêbado. Não sei se meus pés acertarão o caminho de volta para casa; é provável que eu termine dormindo nalguma calçada e acorde amanhã com outro bêbado recostado contra o meu braço. E mesmo que eu acorde, ainda será noite e você ainda estará dirigindo o carro velho do seu irmão, fugindo para o oeste em direção a uma sessão de western. Estou tão bêbado, não ligue pra o que eu digo.

Na fita, estariam gravadas todas as canções que a fazem chorar. There’s a light that never goes out, track 01. Mas ela não choraria; é dura demais para isso, seu riso é só um outro disfarce. Eu queria fazer amor com ela, queria ser o grande amor da sua vida. Depois dali, eu poderia arrastá-la para a minha casa. Naquela época minha mãe tomava três pílulas para dormir. Deitava às oito e despertava à uma hora da tarde do dia seguinte, zonza, sem recordar onde guardara a chaleira de café. Nem desconfiaria dela entrando em sua casa com os cadarços do All Star vermelho desamarrados, cheirando a nicotina. Não faça barulho, eu lhe recomendaria, colocando de leve o dedo indicador sobre seus lábios, e ela me olharia com seus olhos enormes, como se quisesse me engolir.

O meu quarto, ela o conheceria palmo a palmo. Os livros e os discos apinhados nas estantes, a poeira mansa que se abatia sobre eles. A roupa suja embolada na cadeira, as cinzas de milhares de cigarros tragados clandestinamente. Eu apontaria para os anjos que moravam ali e que se moviam, voando baixo perto do lustre, sem produzir nenhuma sombra. Eu diria a ela que se sentasse na cama, e ela o faria, tímida. Aquela música tocando baixinho no fundo… minha mãe, dopada como um bicho de zoológico, sem saber que no quarto ao lado eu estava prestes a beijar a garota. The Smiths girando devagar sobre o prato da vitrola, uma canção sussurrada, e eu a beijo. Beijamo-nos feito dois náufragos, quase nos afogando, sem compreender de onde vinha a pressa que nos exasperava, mas respeitando-a, aceitando-a, deixando-nos guiar por ela.

— Você deveria fazer a barba…

E eu ia despindo vagarosamente o seu enorme casaco de flanela, confirmando meus palpites acerca da natureza do brilho misterioso de sua pele. De repente, o quarto se encheria daquela luz leitosa e os meus olhos se fechariam instantaneamente. Os anjos cobririam os rostos, deslumbrados e cheios de vergonha. Eu queria fazer amor com ela. Eu queria que ela nunca tivesse feito amor com ninguém. Eu queria ter de procurá-la em sua casa no outro lado da cidade, queria ter de telefonar para ela do telefone público que ficava a dois quarteirões dali.

Mas é claro que não fizemos nada disso. Enrolei um baseado e lhe dei. Fumamos em silêncio debaixo duma árvore carregada de amêndoas. Os morcegos voavam em torno de nossas cabeças e os seus rodopios, diferentemente dos anjos, desenhavam sombras sinistras no cimento.

— Meu irmão virá me buscar…

— Se eu encontrasse com ele, lhe daria uma bela surra.

Então ela precisava ir. Todo mundo tem sempre que ir a algum lugar com outra pessoa para fazer alguma coisa. Menos eu; não tinha de ir a lugar algum. Tudo demasiadamente estrangeiro, inóspito. Eu fugiria com você e faríamos amor por horas seguidas, até que o brilho cintilante da sua pele se esgotasse, a chama de uma vela que se consome, um poema que termina na ponta da língua… e eu ficaria acordado, observando seus cabelos pretos muito lisos esparramados nos lençóis rasgados.

Naquela noite não regressei para casa. Por tudo isso, uma vez fui adolescente. Dormi sentado na calçada e quando despertei o dia ainda não havia amanhecido e não havia ninguém ao meu lado.


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