O som do silêncio escrita por Rosi Rosa


Capítulo 1
Escuridão.


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura.



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Silêncio.

Por um longo momento, o silêncio é total em minha casa barulhenta.  


Fecho os olhos e respiro profundamente. Pela primeira vez desde que me lembro essa casa é preenchida por um silêncio longo e abençoado. Sem choros. Sem lágrimas. Sem gritos de angústia ou dor. Apenas, silêncio, os sons da minha respiração e o bater descompassado do meu coração. O sussurro do silêncio dói em meus ouvidos.


Uma lágrima cai. E outra. E mais outra. Eu exalo fortemente. Será que essa dor nunca vai passar?


Flexiono os dedos com força. Abro os olhos devagar. Minhas mãos estão manchadas fazendo um contraste rubro contra a minha pele branca. Uma cor escarlate intensa escorre dos meus dedos magros. Meu olhar fixa no piano velho, nas teclas amareladas pelo tempo. Olho pra trás e os vejo, parados e tão silenciosos. Pela primeira vez em muito tempo o barulho se foi.


O som do silêncio machuca. Amargamente.


Porém, a dor se foi. Minhas lágrimas ainda insistem em cair dos meus olhos. E ela se foi também, pra sempre.


Tudo o que eu amo se foi. Tudo.


Começo a apertar as teclas suavemente, apenas uma leve carícia com as pontas dos meus dedos. A melodia vai tomando forma, preenchendo totalmente o silêncio sombrio que essa casa sempre teve, a música enche o ar com sopros do passado e eu choro ainda mais. Aperto os olhos com força enquanto lembro do sorriso dela, ela era tão frágil, tão doce e bela. Mamãe sempre teve uma aparência frágil e assustada no rosto. E eu irei amá-la por toda a vida e até depois da minha morte. 

A música torna-se caótica quando velhas memórias voltam com tudo em minha mente, as teclas ficam vermelhas, manchadas pelo sangue de minhas mãos ensanguentadas. Um soluço irrompe pela minha garganta, misturando com as notas da canção, criando um novo ritmo, uma nova dor.


Uma nova angústia. Uma nova escuridão. 


Quantas vezes tocamos juntos essa melodia? Nossas mãos sempre se tocando no bater das teclas, nossos sorrisos fracos, nossos olhos brilhando de esperanças perdidas e sonhos desfeitos. Tínhamos alguns minutos para sermos felizes antes dele chegar. Antes de tudo se transformar em dor e sofrimento. Antes dele nos marcar com cicatrizes. No corpo e na alma.

E agora, o que restou?


Apenas, silêncio, solidão e sangue.

Apenas eu e minhas lembranças silenciosas. Dolorosas. 


Meus pais estão mortos no chão da cozinha. E eu estou sozinho e assustado.

O piano balança com a força dos meus dedos em fúria, as teclas afundam sobre os meus dedos, violentamente. A música que ela tanto amava ecoando pela casa toda, e minha mãe não ouviria mais essa suave melodia instável.  Esse pequeno ruído de felicidade. Nunca mais ela ouviria a nossa música de uma alegria fugaz. Nunca mais. 

Soco fortemente o piano, gritando selvagemente, ensurdecendo o meu sofrimento, querendo calar meu coração partido. Um grito de fúria e de dor. A música não acabou. Mas a lembranças são tão fortes e cruas que estremecem o meu corpo inteiro. Paro. Já não tenho mais vontade de tocar. Minha mãe tá na cozinha, quieta, ensaguentada. Morta. Sua beleza e vulnerabilidade perdidas. Seu rosto inchado pelas mãos brutas do meu pai.

Mesmo antes de abrir a porta horas atrás, eu tinha ouvido um choro insistente e barulho de carne batida, socada violentamente. Era o meu pai mais uma vez espancando a minha mãe. Diferente das outras vezes e das outras surras, ele não parou, eu vi no rosto do meu pai um olhar assassino e desafiador. Ele não queria parar. Ele não iria parar. Entrei e vi meu pai  ajoelhado em cima da minha delicada mãe e por um breve momento eu apenas fiquei parado, numa mistura de confusão e vulnerabilidade. Então, com as mãos em punhos fechados grosseiramente, infantilmente eu aperto minhas pequenas mãos em punhos letais, eu não digo nada, solto apenas um pequeno ruído, um murmúrio de medo. Meu rosto empalideceu e eu senti o coração bater mais depressa e minhas mãos ficarem trêmulas. O homem que deveria nos proteger estava matando a minha mãe. Ele esteve nos matando aos poucos durante tanto tempo. Ele era a causa de tanta tristeza e dor em nossas vidas miseráveis. No chão, minha mãe me olhou assustada, frágil, machucada. Não havia palavras em sua boca, apenas sangue e cortes. Meu pai virou a cabeça em minha direção e sorriu diabolicamente. Ele olha para mim, o rosto retorcido de puro ódio, os olhos vermelhos, provavelmente do álcool que consumiu durante toda a tarde, a boca retorcida de um ódio sujo, inquieto e sem sentido.

Um dia eu amei o meu pai. Hoje eu o odeio.

Apesar de ser ainda uma criança e sem forças pra brigar, eu pulei em suas costas, socando, tentando tirar ele de cima de minha pobre mãe. Ele era tão forte, tão cruel. Me empurrou facilmente com seus ombros largos, gargalhando perigosamente. Minha queda no balcão da cozinha me deixou tonto e com gosto de sangue na boca, tentei respirar e uma dor rasgou meus pulmões e costelas. Eu não podia desistir, ele estava matando a minha doce mãe, engasgo com a dor terrível e me levanto mais uma vez.


E mais uma vez o enfrentei e mais uma vez eu cai, quase derrotado por sua força e ódio. Deus, eu tenho que pará-lo! Meu pai me encara com raiva e desgosto, seus olhos brilham com crueldade. 


Desesperado, olhei ao redor da cozinha procurando algo que pudesse usar para bater nele, qualquer coisa. Algo brilhou me dando esperanças. Uma faca de uns 15 centímetros estava junto com alguns legumes cortados dentro da pia. Sem remorsos ou arrependimentos, empunhei a faca de aço brilhante em minhas mãos pequenas e trêmulas, e o ataquei.

Uma. Duas. Três vezes.  Vi a faca entrar profundo e bruto nas costas largas do meu pai e a lâmina afiada sair pingando o seu sangue maldito. Meu pai grunhe de dor, contrai o corpo furiosamente e grita, tão grosseiramente, tão selvagemente. Tão covardemente. Mas eu não paro. Eu não parei até vê-lo cair sem vida aos meus pés. A faca caiu de minhas mãos com um baque surdo no chão, gotejando o sangue dele, parando ao lado do meu pai morto como uma ameaça fria.

Senhor, eu acabei de matar o meu pai.


Agachei perto de minha mãe, mas já era tarde demais, aperto forte o seu corpo sem vida em meus braços curtos. Seus olhos abertos não tinham mais o brilho da vida ou o azul pálido que eu tanto amava. Sua respiração tinha parado. Abracei seu corpo machucado e coberto de sangue e chorei ruidosamente sobre sua pele fria e pálida.

Era minha culpa, eu tinha chegado tarde demais da escola pra ajudar minha mãezinha, pra livrá-la das garras de um marido abusivo e covarde. Do meu pai fracassado.

Funguei alto, descontroladamente. Meu olhar perdido naquela carnificina que virou minha casa. Apertei as teclas do piano numa última nota, as lágrimas ainda escorriam pelo meu rosto, parei de tocar e levantei do banquinho em silêncio, meu coração sangrando e quase engasguei com a dor.

Agachei ao lado de minha mãe morta. Meu corpo trêmulo.

— Eu te amo mamãe. - Me inclinei e deixei um beijo molhado por minhas lágrimas em sua bochecha fria e azulada.

Eu queria ter tido uma vida diferente com a minha amada mãe. Mas tudo o que tivemos foi dor e violência.

Ergui os joelhos bem juntos e os abracei fortemente, um abraço solitário. O que eu fiz? Eu tinha me tornado o que sempre odiei. Eu sou um assassino. Serei tão mau quanto o meu pai quando me tornar um adulto?

Serei? Eu havia perdido as esperanças para o futuro há muito tempo, desde que o meu pai começou a bater em minha mãe.


Ouvi passos rápidos. Alguém estava entrando na minha velha casa com pressa. Inclinei a cabeça e vi um policial assustado, a mão segurando com firmeza a arma, ele olhou pra mim com pena e horror, eu olhei pra ele com medo.

O silêncio foi longo e doloroso.


— O que...— Ele pausou trôpego, arregalando os olhos perturbado, respirando fundo e fracamente aquele odor forte e metálico de sangue derramado por toda a cozinha minúscula, eu sabia o que ele perguntaria e antes mesmo dele abrir novamente sua boca, as palavras jorraram da minha, minha voz abafada, meus lábios tremendo soltam um riso vazio e louco, eu balanço a cabeça rapidamente em pânico, meu olhar está desesperado, meu mundo se tornou apenas escuridão:



— Eu matei o meu pai.





*Fic Finalizada.

 


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Notas finais do capítulo

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Até.
;D



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