Svyazi escrita por Leona Devolk


Capítulo 6
Capítulo VI - Pedaços do Oeste




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 — Abra logo isso — John pedia, com ansiedade, pela terceira vez.

 Os rapazes sentavam-se à uma das mesas do refeitório, após retirarem-se da grande fila para o almoço com suas respectivas bandejas em mãos. Por mais agradável que a comida estivesse, estavam hipnotizados unicamente pelo aroma inebriante que exalava a caixa com o presente entregue por Joy para o russo.

 John, estrategicamente, sentou-se ao lado de Adam, para assim garantir o privilégio de ser o primeiro a ver e experimentar o que estava na caixa.

 — Não — Adam afastou novamente a mão de John, que insistia em tentar abrir o presente por si mesmo. — Vamos almoçar primeiro.

 — Quem se importa com a regra de comer doces só após as refeições, Adam?

 — Johnny Mason se importa. — Adam deixou a caixa sobre a mesa. Começou a se alimentar da comida parcialmente quente com tranquilidade. — Se ele se importa, eu também me importo.

 John o encarou, pasmo, forçando Adam a segurar uma risada.

 — Você venceu desta vez, cowboy. — John pôs na boca a primeira porção do almoço. Em questão de meio segundo, passou a comer rapidamente, mal tendo intervalos para mastigar de forma correta.

 O épico protagonista de Red Western jamais havia consumido sequer uma sobremesa em qualquer um dos livros, muito menos no único que o mais jovem do grupo havia lido. Adam, apenas, passou a sentir necessidade em deixar John aflito, a partir do momento onde percebeu a ansiedade que o americano sentia em usufruir do conteúdo da caixa.

 O russo também estava ansioso, mas aquele era um presente de aniversário. Seu primeiro, e desejava desfrutar dele calmamente. Não havia qualquer pressa em seu ser.

 — John não tem controle nenhum sobre a fome. — disse David, do outro lado da mesa. — Só não come pedras porque são difíceis de mastigar.

 — Não é verdade. — o mais velho do grupo rebateu, ainda com a boca cheia, fazendo escapar de seus lábios um pouco do purê de batatas.

 — Você já comeu uma cobra, John. — disse Hal, para defender o argumento de David. — E a prova de campo daquele dia não exigia isso.

 — Eu já tinha comido toda a ração militar que nos deram. Estava faminto. — encheu a boca com comida novamente. — Fiz o que fiz para sobreviver.

 — Foi uma prova de duas horas, Snake. — Kaz abaixou parcialmente os óculos de sol, para encarar John. — Almoçamos antes do início da prova e você comeu sua ração meia hora depois. E ainda tentou comer a nossa.

 Pela primeira vez, Adam pôde ver a peculiar cor dos olhos de Kazuhira: castanhos, um tanto azulados, principalmente ao redor da íris.

 Adam respirou fundo. Pensava e repensava, com ansiedade em seu coração. Lembrou-se da primeira aula do dia, e procurou aproveitar a ocasião para ser mais sociável em seu grupo.

 — The Fear falou sobre cobras e sapos venenosos hoje. — sua voz esteve trêmula por metade da frase. Sentiu vontade de afundar o rosto no prato.

 “Idiota.” Adam pensou de si mesmo, e buscou reprimir a timidez. Voltou a comer silenciosamente.

 — Tivemos estas aulas com ele quando estávamos completando o fundamental. — John sorriu. — A cobra que comi não era venenosa.

 — Cobras tem gosto bom? — Adam o olhou, erguendo uma sobrancelha. Agradeceu mentalmente por John ter dado alguma atenção a suas palavras falhas.

 — Sim, elas têm. A textura da carne você pode não gostar no início, mas você se acostuma com o tempo. Provavelmente terá chance de provar algum dia.

 — Seria legal. — exibiu um pequeno sorriso, não sabendo exatamente algo melhor a se dizer em resposta.

 John o correspondeu. Seu sorriso era bem mais intenso, e Adam não pôde compreendê-lo. O americano desviou seu olhar, e prosseguiu com a medida desesperada de esvaziar rapidamente seu prato. O russo decidiu por fazer o mesmo.

 Não havia demorado até todos os pratos sobre a mesa terem seus fundos visíveis. Com os rapazes devidamente alimentados e satisfeitos, um clima embargado em tensão pairou entre os presentes. Todos observavam cada movimento das mãos de Adam ao abrir a caixa, o fazendo ficar levemente constrangido.

 Quando enfim a caixa estava livre de sua tampa, Adam foi obrigado a demonstrar, por meio de seu rosto, a surpresa que o acometia. Um bolo redondo, coberto por chantilly alvo feito neve e bem decorado com o mesmo. Algumas pequenas frutas, vermelhas e azuis, contribuíam para uma aparência viva. As azuis, Adam pôde distinguir como sendo os blueberrys do qual havia apreciado com os cereais.

 Para facilitar o consumo em grupo, o bolo estava cortado em oito pedaços de igual tamanho. Num desses pedaços, existia um par de pequenas velas. A vela que possuía formato de um número um era de cor azul, repleta de estrelas brancas; a de número quatro era listrada nas cores branca e vermelha. Um bolo lindíssimo, inspirado na bandeira americana.

 — Jamais pensei que diria isso um dia... — John aproximou-se para ver o bolo melhor. — Mas estou com dó de comer.

 — Vocês... — o mais jovem não era capaz de deixar de olhar para as velas. — Bem... Também recebem um bolo como este em aniversários?

 — Nos nossos aniversários, ganhamos um muffin especial como comemoração.  — Hal deu início a uma resposta. — Em todos os anos. Mas jamais um bolo igual ao seu.

 — O muffin de aniversário daqui tem o dobro do tamanho do muffin que comemos hoje, com chocolate extra no recheio e uma única vela no topo. — Kaz salivava ao lembrar-se do sabor. — É uma das melhores coisas que vai comer na vida.

 — Você não sabe o dia de seu aniversário. — David refletiu em voz alta. — Nunca teve como e com quem comemorar, ainda que fosse simbólico, sem um bolo ou presentes.

 — Boss quis fazer algo mais que memorável para o seu primeiro. — John pegou uma das frutas vermelhas da decoração. — Ela olha para você como olhava para David, Eli e eu. Há algo em você que é especial para ela, Adam.

 Joy, de fato, o olhava de uma maneira diferente. Desde sua chegada, e em todos os seguintes momentos. Olhares protetores, ternos. Adam fazia de tudo para encontrar razões para tal, e não as encontrava. Só era capaz de lamentar por não saber demonstrar o quanto por tudo era grato. Nenhuma palavra ou gesto demonstraria suficientemente.

 The Joy era como uma mãe.

 Adam sentia quentes e pesadas gotas, sem seu controle, escapando de seus olhos e rolando por sua face. Em seus lábios, sentia o sabor sutilmente salgado das próprias lágrimas. Seu pequeno e trêmulo sorriso poderia tornar confuso o seu aspecto para os amigos se algo não pudesse ser inquestionável: eram lágrimas de pura felicidade.

 John o abraçou protetoramente ao notar seu choro, causando em Adam uma fria sensação no estômago. Manteve o rosto voltado para baixo, tentando livrar-se com as mãos das lágrimas insistentes. Sentiu-se também abraçado por David em seguida, e por Kaz, e por Hal, coletivamente, após os mesmos levantarem-se de seus assentos. Recebia alguns tapas leves, afáveis e motivacionais em suas costas, sem saber de quem, enquanto completamente envolvido por calor humano.

 Adam não gostaria, jamais, de voltar atrás para tornar diferente sua vida anterior. Toda a dor havia sido recompensada. E, ainda que as razões não pudesse associar, dentre todos os abraços, o de John fazia-o sentir-se seguro.

 

 

* * *

 

 

 Embora, mesmo com o passar dos anos, os céus alaranjados do fim da tarde fossem permanecer eternamente como os mais belos para Adamska, o céu ainda azul que prevalecia ao fim das aulas do dia passou a ter algo a mais para ele. Marcavam o inicio da vida de um Adam de 14 anos de idade.

 O frio, típico das noites, surgia sutilmente, gerando o clima ideal e quase contrariando a ideia pré-concebida de intenso calor do verão americano. Enquanto alunos se iam para os chuveiros, Adam decidiu por aguardar e desfrutar por certo tempo de um momento próprio. Caminhava sozinho pela parte a céu aberto do instituto, sem destino específico, inspirando o ar fresco e sentindo-se circundado e acolhido pelo mundo.

 A caixa de seu presente ainda possuía três generosas fatias de bolo. Reservaria uma delas para Ahab quando o reencontrasse; afinal, se não fosse por ele, não teria jamais conhecido seus amigos naquela fila de refeitório. Gratidão era o que Adam mais sentia, seguida da sensação de plenitude.

 Não sentia fome para o lanche da tarde, que viria em pouco menos de duas horas. A fatia de bolo que havia consumido após o almoço o havia satisfeito suficientemente até o jantar – e que bolo excelente aquele era. Poderia passar brevemente pelo grande galpão, ao fim do intervalo para a refeição da tarde, apenas para pegar sua porção de cookies e guardar para depois.

 Professores que não dormiam no instituto iam embora pelo grande portão principal. Os que não possuíam veículo próprio eram levados confortavelmente para casa, com copos de café em mãos, em caminhonetes militares cobertas por uma espécie de toldo. Adam desejava descobrir como era andar numa delas. Parecia incrivelmente divertido e aspirava liberdade.

 Após vagar por certo tempo, Adam viu alguns colegas de sua classe. Avistou a pequena Paz caminhando lado a lado com um amigo, aparentemente mais velho que ela por pouco mais de três anos, de cabelos negros, bem ajeitados e lisos. Passou por perto de muitas outras pessoas nada relevantes, sem qualquer sinal de seus conhecidos.

 Então, avistou John, de costas para ele a certa distância. Deu alguns passos na direção do americano, sorrindo em sua empolgação. E, ao notar que John estava acompanhado, o russo petrificou-se no lugar, acometido e tomado novamente por timidez.

 Uma garota acompanhava-o, desta vez não pequena e inocente como Paz. Seus cabelos medianos, loiros, eram postos bem presos num rabo de cavalo alto. Usava uma quantidade sutil de gloss nos lábios e possuía um estranho comportamento: fazia poses graciosas a cada palavra que dizia e era habilidosa em enviar olhares sedutores, em nada vulgares, diretamente para os olhos de John. De corpo bem formado, digno de uma jovem de 16 anos, e dona de feições tanto atraentes quanto doces, era irrefutavelmente linda.

 E, aparentemente, sabia como conversar. Sabia como se portar e como aprisionar para si a atenção de um rapaz. Logo que John assentiu com a cabeça, sem qualquer expressão no rosto, após um diálogo não compreensível da distância que Adam mantinha, o americano se permitiu por ela ser abraçado por cima dos ombros e beijado no rosto com doçura.

 O corpo de Adam tornou-se inteiramente gélido. Sentia como se tivesse sido socado no rosto e como se seu coração fosse esmagado dentro de seu peito. Era uma dor verdadeira, dilacerante, sem mesmo ter sido por alguém tocado.

 Gostaria que ela não estivesse daquela forma, tão próxima... Isso causava sensações importunas. Ruins. Mesmo quando ela afastou-se e seguiu seu caminho, o sentimento nele permanecia.

 Assim que a garota se foi, John notou sua presença. Sorrindo, convidou Adam a juntar-se a ele com um amigável gesto de mão. O jovem russo permaneceu imóvel, enquanto o americano o fitava sem nada compreender. Tudo parecia vago ao seu redor, como se estivesse cercado por uma redoma de vidro tão fosco quanto o capacete de Fury. Receoso e hesitante, caminhou de encontro ao mais velho, não capaz de sentir seu corpo por completo. Sentia-se pesado.

 Desejava, apenas, que o sentimento passasse. Era agonizante. Desconhecido. Corrosivo. Incômodo.

 — Você está bem, cowboy? — John perguntou, analisando as feições de Adam.

 — Estou... — respondeu o mais calmamente possível. — Acho que estou.

 — Ficou inseguro em se aproximar com a Tatyana por perto? — sorriu com franqueza para o mais novo. — Não se preocupe, ela não morde.

 A aflição que Adam sentia dissipou-se, permitindo-o sentir novamente o sangue que corria por suas veias. Poderia, de fato, ter sido somente sua timidez para com desconhecidos.

 O familiar nome de Tatyana o fez pensar por um momento. Buscou, em sua memória, onde e em que ocasião o havia escutado.

 — Venha. Vou mostrar onde consegui aquele charuto. — John tornou a caminhar.

 — “Conseguiu”? — Adam passou a segui-lo, lado a lado.

 — Detalhes, Adam... Detalhes. Apenas aja naturalmente.

 — E quanto à regra de nunca roubar objetos? — parou no lugar por um instante, levando John a imitá-lo, e cruzou os braços para demonstrar indignação. — A esqueceu nas ruas?

 — Não há nada de errado em roubar algo que ninguém vai usar. — disse por fim, convencido.

 — Acabou de admitir que o que está fazendo é roubo? — mostrou-lhe um sorriso zombeteiro.

 John torceu os lábios, sentindo-se estúpido e sem argumentos.

 — Estou segurando uma vontade imensa de te dar um soco. — tentou forçar em sua face uma seriedade sombria.

 Adam riu, absolutamente desavergonhado. Considerou que perturbá-lo era, de alguma maneira, divertido. John sorriu discretamente, incapaz de fazer mais que uma péssima e cômica tentativa de cara emburrada.

 — Muito engraçado, cowboy. — o empurrou fracamente pelo ombro. — Agora, vamos.

 

 

 

* * *

 

 

 John fechava as grandes portas de entrada do prédio utilitário, tão lentamente quanto as tinha aberto ao entrarem. Toda cautela era pouca; até mesmo um mínimo ranger das dobradiças poderia comprometê-los. O extenso corredor da ala da enfermaria, com o mesmo aroma de limpeza, encontrava-se ocupado somente pelos assentos de espera e por uma placa amarela no centro, alertando o estado escorregadio do piso.

 — Venha. — John sussurrou. Agachou-se e pôs-se a andar desta maneira, muito lentamente, mantendo a mão esquerda arrastando-se pela parede. — Faça o mesmo.

 — Pra quê isso? — Adam sussurrou de volta, incrédulo, e o imitou.

 — Fazemos menos barulho quando andamos dessa forma. Fique quieto.

 — “Faça o mesmo”, “Fique quieto”... Você precisa mesmo ser um irmão mais velho chato?

 John conteve uma risada, numa espécie de grunhido interno.

 — Fico feliz que você se sinta mais à vontade para falar. — o olhou brevemente. — E não saio do sério tão fácil, nem tente ser um irmão mais novo irritante.

 Em absoluto silêncio, alcançaram a ampla escadaria ao fim do corredor. Adam seguia cada passo do americano, buscando um ideal de discrição, tornando silenciosa a subida para o primeiro andar. Estava fazendo algo que não devia, praticando métodos furtivos, e sentia-se ótimo.

 Então, ao alcançar o último degrau, lembrou-se de Joy. Foi tomado por um terrível sentimento de culpa. John prosseguia seu rumo, enquanto Adam ficava para trás, imóvel, sem saber o que devia dizer nesta circunstância. Em questão de segundos, John voltou-se para o jovem russo, notando não mais estar sendo acompanhado.

 — Adam? — chamou-o em preocupação, não compreendendo sua anormal palidez, mais intensa do que normalmente seria.

 — Precisamos voltar... — transpareceu remorso em seu rosto e voz. — Joy não gostaria que fizéssemos isso.

 — Adam — deu alguns passos em sua direção e pôs uma mão no compartimento lateral da bolsa. — Veja.

 Do compartimento, tirou uma chave antiga, de aparência pesada e feita em cobre desbotado.

 — Foi Boss quem me entregou esta cópia. Há quase dois anos. — mostrou o objeto para Adam, em repouso na palma de sua mão. — Ela me deu permissão de visitar o depósito de vez em quando. Às vezes, surgem coisas interessantes por lá que jamais serão usadas.

 O loiro pôs uma mão sobre o peito, suspirando em seu alívio.

 — Então Joy sabe que você pega os charutos?

 Silêncio absoluto, envolvido em pesar.

 — Não acho que ela precise saber disso. — desviou sua atenção para um lugar qualquer, fugindo dos olhos de Adam. As mãos nos bolsos da jaqueta camuflada.

 — Por que não? — indagou em confusão.

 — Charutos não são feitos para menores de idade, cowboy. — sorriu, melancólico. — Esqueci que faz pouco tempo que você conhece o mundo.

 — Então... Por que você fuma? Quando começou a ter esse hábito?

 Ouviram o abrir de uma porta na ala abaixo e congelaram, esquecendo-se da conversa por completo. Em seguida, ouviram um suave som de derrapagem, seguido da voz de Dra. Clark queixando-se do piso escorregadiço.

 — Não podemos demorar muito tempo por aqui. Vamos. — puxou o mais novo pelo pulso, com força moderada.

 Adam tornou a acompanhá-lo, sem qualquer protesto. Mesmo a mão de John estando coberta por luva, Adam podia sentir seu calor e a textura densa dos dedos nus. Foi conduzido até uma das quatro largas portas daquele andar, cuja placa no topo indicava a entrada para o depósito. Fazendo uso da chave, agilmente entraram e viram-se numa sala completamente escura. John certificou-se de fechar bem a porta e tateou por uma das paredes, buscando pelo interruptor.

 Os olhos sensíveis do russo apertaram-se com a nova e intensa presença de luz. Assim como a biblioteca, as enormes estantes de ferro do depósito criavam corredores. Era um local vasto com duas pequenas janelas, ocupado por caixas e mais caixas de vários tamanhos, devidamente organizadas e catalogadas. Havia também grandes sacolas em cantos isolados e, ao fundo, um pórtico que ligava o depósito à sala vizinha. Adam prosseguia no encalço de John bobamente, olhando para todas as coisas que os rodeavam.

 Pararam frente a uma parede ao fundo, onde prateleiras guardavam caixas menores. John passou um dedo sobre uma caixa retangular mediana ali reservada, muito semelhante a uma maleta executiva, feita de madeira avermelhada e brilhante. Soprou a tampa por completo, assistindo alguns grãos de poeira planarem para fora. Palavras grifadas em dourado sobre a tampa indicavam a marca cubana do produto contido.

 Com a tampa erguida enfim, o aroma inconfundível do tabaco curado e fermentado impregnou as narinas de ambos. Adam notou que alguns espaços onde deviam estar charutos encontravam-se vagos. John já havia tido hábito de roubá-los há muito e muito tempo.

 — Não apenas se fuma um charuto. — John pegou um deles e o passou sob o nariz lentamente, apreciando o aroma com maior intensidade. — Fumar um charuto é como uma arte. Essa é uma das poucas frases do meu pai em seus raros momentos sóbrio... E a única importante, também.

 — Então é por isso? — Adam pegou-se admirando a qualidade artesanal que possuía o charuto nas mãos do americano. — Seu pai fumava e você escolheu fazer o mesmo?

 — Não exatamente. Quando ele morreu, eu e meus irmãos fumamos todos os charutos que ele escondia sob a cama como comemoração, por mais terrível que isso soe. Eli odiou e não conseguiu terminar um sequer. David gostou, mas preferiu os cigarros... — franziu o cenho, sacudindo a cabeça sutilmente em desaprovação. — Às vezes, David pede para que eu pegue cigarros para ele. Isso não vai acontecer.

 — Johnny Mason também odiava cigarros. — o mais jovem sorriu, lembrando-se de um trecho. — Dizia que destruía a alma e a saúde de um homem, enquanto os charutos a revigoravam.

 — Então, esse Johnny Mason é um sábio. — pôs dois charutos na bolsa transversal, bem escondidos. — Cigarros realmente fazem um estrago muito maior. Se David quiser um charuto, eu darei, mas cigarros ele pode esquecer.

 — Leia Red Western um dia. Você e Mason seriam grandes amigos se ele existisse.

 — Confesso que não costumo ler livros. — demonstrou um sorriso envergonhado. — Gosto mais de quadrinhos. Você sabe... Tem figuras e tudo mais.

 Adam bufou, revirando os olhos e arrancando de John uma risada breve. Seu olhar parou involuntariamente numa das imensas sacolas de lixo que foram deixadas abertas num canto próximo ao pórtico. Na sacola para qual olhava, havia um brilho dourado e desconhecido, qual despertou em Adam algum interesse. Foi em direção a ele com curiosidade, deixando para trás um John em confusão.

 Vasculhava entre objetos gastos e empoeirados, até encontrar a origem de seu fascínio: um único pé de uma bota de couro. Envelhecida pelo tempo, de bico pungente e cheia de detalhes em sua costura, com uma afiada e dourada espora de pequenos dentes na área do calcanhar. 

 Os olhos de Adamska cintilavam com o objeto. O couro descascava, frágil e esquecido, causando um sentimento de perda no fã de western.

 — Eu disse que sempre há coisas interessantes por aqui. — John aproximou-se para olhar também. — Me pergunto onde encontraram isto. É uma pena que precisem jogar fora coisas assim.

 — Não posso levar comigo? — em desolação, Adam acariciou o calçado, sentindo a poeira acumular-se em sua luva.

 — Você pode.

 Pôs uma mão sobre o ombro do mais baixo, captando a atenção de seus olhos claros.

— Apenas não deixe que ninguém mais encontre. Esconda num lugar seguro.

 — Certo — pôs-se alegremente a guardar o espólio em sua bolsa. — Não conte a ninguém.

 — Eu não faria isso. — exibiu um meio sorriso.

 Adam sentiu um fervor se formar em suas bochechas, incapaz de olhá-lo.

 — Você sabe que roubo coisas. Não sou estúpido de te dar um motivo para espalhar um segredo meu por aí. — John disse, simplesmente.

 — Que gentil. — o russo rolou com os olhos pela segunda vez. A timidez o havia abandonado.

 John deixou dois fortes tapas nas costas do loiro, dele tirando uma pequena reclamação de dor. Com os dedos, apertou uma das bochechas de Adam por pouco mais de dois segundos, dentro das limitações de seu jeito bruto. Entretanto, Adam notou o carinho que havia em seu gesto, e sorriu.

 — Venha. Acabo de lembrar de algo que você deve gostar. — passou pelo arco de madeira do pórtico, a caminho do outro setor. — Ou, talvez, odiar.

 Adam deu uma última e discreta olhada nas grandes sacolas enquanto John afastava-se. Poderia ter a sorte de encontrar outro sinal brilhante e, consequentemente, completar o par de botas de cowboy. A encontrada era grande demais para que fosse capaz de calçar com perfeição e estava num deplorável estado de desgaste e abandono, mas gostaria de ter o par como uma lembrança. Talvez pudesse calçar as botas apenas por diversão às vezes, mesmo não possuindo o tamanho ideal, somente para ouvir o tilintar das esporas ao caminhar.

 No chão áspero, sem qualquer intenção, Adam avistou uma pequena embalagem de cor amarela, retangular e feita em papel firme. Não resistindo a seus instintos bisbilhoteiros, pegou a caixa diminuta e sentiu o peso, analisando o que nela estava impresso. No verso, havia informações nutricionais em letras vermelhas e, na frente, muitas palavras pouco importantes. Em letras maiores, havia o nome do produto no cabeçalho como sendo Calorie Mate. A guloseima parecia ter sido ali esquecida recentemente.

 O lacre da caixa já estava rompido. Dentro, Adam pôde ver uma embalagem menor, semelhante a papel laminado. Deveria haver dois pacotinhos como aquele no conteúdo, e um deles havia sido consumido. O aroma hipnótico de chocolate no interior contribuiu para que o jovem russo não hesitasse em guardá-la em sua bolsa.

 Se John não considerava tão grave o roubo de alimentos, Adam poderia surpreendê-lo mais tarde com este achado. Atravessou o arco, agindo com naturalidade, como se nada houvesse visto ou pego.

 A familiaridade no cheiro do local novo o impactava. Via-se no arsenal, e notava a ausência de janelas e a área semelhante ao depósito que possuía. Diversificados tipos de armas de fogo postas nas paredes, de vários tamanhos diferentes, exibidas na horizontal feito decorações. Outras eram exibidas em mostruários de vidro, bem distribuídos no centro do aposento, e postas dentro deles sobre finas almofadas verdes, com elegância. Em partes de paredes dedicadas a fuzis e rifles de precisão, havia espaços vazios de onde soldados vigilantes da instituição retiraram seus armamentos.

 Adam sentia-se naquela fábrica novamente. Sentia-se repetindo os mesmos movimentos na montagem de revólveres por horas e horas. Recordava-se com perfeição da sensação cortante do toque frio de cada peça em suas mãos calejadas pelo fogo. O frio russo não era absolutamente nada comparado com o frio da América.

 Distraidamente, John pegava num armário de metal com várias gavetas uma diminuta bala dourada. A guardou rapidamente no bolso da jaqueta.

 — Eu vi isso. — Adam captou sua atenção, enquanto andava na direção onde se encontrava o americano.

 — E eu te vi chegando. — sorriu suavemente. — Procurou por outra bota?

 — Sim... Infelizmente não encontrei. — suspirou em decepção. — Por que pegou uma bala?

 — Para dar sorte. Veja — modificou rapidamente o curso da conversa, andando até grandes caixas deixadas no chão. — Trouxeram isto há alguns dias. Vêm de uma indústria russa. Então, provavelmente...

 — São. — Adam prostrou-se diante de uma das caixas que reconhecera, analisando-a de cima. — Me ajude a abrir esta.

 Por breve momento, na busca de qualquer objeto cortante, John percorreu os olhos por todo o recinto. Dirigiu-se a um mostruário próximo, repleto de facas de caça, e escolheu uma de ponta afiada e levemente recurva, tendo a empunhadura anatomicamente envolvida por finas cordas negras e possuindo uma pequena serra no dorso.

 John pegou-se estático, analisando o objeto por alguns segundos.

 — Esta, sim, é uma boa faca. — virou-a em suas mãos para melhor analisá-la. Sua voz esclarecia a admiração sentida. — Revestida com pintura especial para torná-la opaca e evitar reflexos. Leve suficiente para realizar cortes rápidos. Largura da lâmina estrategicamente feita para alcançar pontos vitais. A serra nesta parte é meramente decorativa, mas não é algo que atrapalhe. Acho que sou obrigado a ficar com esta.

 — John — Adam repreendeu.

 — Será útil novamente um dia. Você verá — com o instrumento cortante, pôs-se a desfazer o invólucro de fitas crepe na tampa da caixa. — Não conte a ninguém.

 — Eu não faria isso. — sorriu minimamente. — Não posso fazer isso, não é?

 — Exatamente, cowboy. — rapidamente, libertou a tampa por completo. Afastou-se em dois passos para que Adam pudesse ver.

 — Na verdade... Acho que eu não faria isso se pudesse. — confessou, dando de ombros.

 Novamente, um meio sorriso incompreensível, franco e intenso surgia na face de John. Suas pálpebras inferiores encontravam-se levemente flexionadas para cima, como se houvessem sorrisos também em seus olhos.

 Chamas apossaram-se vigorosamente das bochechas de Adam, juntamente com rubor, quando John tocou-lhe a lateral do pescoço. Deixava os dedos nus roçarem pela pele sensível de sua nuca. Ergueu sutilmente a boina que Adam usava, e deixou um demorado e brando beijo em sua testa. O jovem russo fechou parcial e instintivamente os olhos com a sensação, permitindo que calor o dominasse.

 Sentia arrepios o percorrerem por completo e seu corpo tornando-se fraco. Desejava que John acariciasse onde os dedos estavam.

 — Você deve ser o irmão caçula mais legal que existe. — o mais velho afastou-se subitamente e deixou de tocá-lo. — David, Eli e eu estaríamos chantageando uns aos outros num momento como esse.

 O russo forçou uma risada breve, buscando controlar as descompassadas batidas de seu coração. John havia se afastado mais rapidamente do que gostaria. Desejava que a vermelhidão abandonasse sua face.

 Por razões que desconhecia, um triste sentimento o inquietava. John o intitulava como um irmão, afinal. Foi um gesto protetor, vindo de um irmão mais velho, assim como todos os gestos anteriores.

 Adam concentrou-se em erguer a tampa, num silêncio apenas para ele constrangedor. Confirmou suas impressões ao encontrar, no interior da caixa, revólveres de cano longo organizados e delimitados por uma espécie de isopor isolante escuro, repletos de gravuras diretamente no aço fundido. Pegou um deles cuidadosamente, sentindo a frieza e o peso familiares.

 Ainda que pudesse diferenciar o peso de um revólver carregado ou não, moveu o tambor, com capacidade de seis balas, verificando se de fato estava vazio. Pegou-se admirando os detalhes, que muito bem conhecia.

 — Você montou estes? — John perguntou, impressionado. — Parece saber como usá-los.

 — Sim. — pegou outro revólver, sem pensar duas vezes. Com um em cada mão, perfeitamente posicionados, apontou-os para uma direção qualquer. Sentia-se incrível. — Acho que sou obrigado a ficar com estes.

 Apenas com os dedos indicadores, segurou os revólveres a partir do espaço dos gatilhos e os rodopiou rapidamente em sincronia. A adrenalina do ato o divertia. As luvas que usava contribuíam para que os revólveres ficassem firmes e para que os dedos não fossem feridos. John olhava fixamente para o girar das armas, quase hipnotizado.

 O revólver da mão esquerda caiu acidentalmente e sem previsões quando Adam perdeu o domínio sobre ele.

 — Droga. — recolheu a arma do chão, aborrecido. John riu.

 — Johnny Mason também faz isso? — cruzou os braços, entretido.

 — Não. — sorriu, praticando o rodopio outra vez. — Eu fazia isso às vezes enquanto os montava, por distração. Fazer a mesma coisa o dia inteiro entedia.

 John estendeu as mãos, pedindo pelos revólveres em silêncio. Confuso, Adam parou de girá-los e os entregou relutante. Foram pelo mais velho guardados devidamente no lugar onde estavam na caixa; em seguida, John pegou outro num mostruário e o entregou ao jovem russo. Feito em aço escuro, simples e sem qualquer gravura.

 — Gosto mais do outro. — Adam torceu o nariz.

 — Os que você montou são muito bonitos, realmente. — o segurou pelo ombro. — Mas decoração não torna uma arma melhor. E, no caso daqueles revólveres, todos esses detalhes só servem para atrapalhar o uso. Percebeu que este é mais leve?

 — Sim, mas...

 — Esses que montou são como peças decorativas. Talvez por isso não tenham sido tirados da caixa. — olhou-o afavelmente, para esclarecer que desejava somente instruir. — Preze sempre pela utilidade de uma arma.

 Adam suspirou. No fundo, sentia-se derrotado, mas compreendia o ensinamento.

 — Certo. — sorriu em aceitação. Com o polegar, fez girar o tambor do revólver para ouvir o som que fazia. — Não vou pegar nenhum. Posso usar um desses nas aulas de tiro aos sábados. Vai ser suficiente.

 — Muito bom. — sorriu em resposta, orgulhoso. Respirou fundo, incomodado com a ausência de janelas. — Preciso de um pouco de ar.

 — Posso te acompanhar? — guardou a arma que empunhava, após um breve rodopio.

 — Como posso negar algo assim?

 Envolveu os ombros de Adam com um dos braços. Juntos e discretos, saíram do depósito.

 

 

 

* * *

 

 

 


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