Enigma escrita por Kriss Chan Dattebayo


Capítulo 1
Only


Notas iniciais do capítulo

Olá pessoal. Vim com uma One-Shot original que tive ideia de escrever depois que vi uma foto no grupo do Nyah Fanfiction Escritores e Leitores do Facebook.

Espero que gostem. Boa leitura.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/717491/chapter/1

                Encarei o livro sobre meu colo. O vento frio chocava-se contra meu rosto, indicando que o outono estava no fim e, sem nenhuma sutileza, o inverno vinha empurrando-o para longe. O calor do chocolate quente era a única coisa que esquentava minhas mãos. Encarei a rua quase deserta. Um ônibus escolar parou alguns metros mais adiante. Dele, um garoto alto, magro e ruivo, desceu correndo na direção contrária pela qual o ônibus viera. Aquilo foi o suficiente para que um sorriso triste surgisse em meus lábios. Coloquei a xícara de chocolate quente sobre a pequena mesa ao lado da cadeira. As lembranças distantes voltaram como um flash.

                No ensino fundamental, havia um garoto. Ele era alto, tinha cabelos negros e medianos. Os olhos eram em de um tom verde profundo. E se ele sorria, era uma raridade. Ele pegava o mesmo ônibus que eu e sempre descia uma parada antes da minha. Quando ele descia, sempre corria o mais rápido possível para sua casa, tropeçando nos próprios pés. Nós sempre ríamos dele, todos os dias. Mas não sabíamos que ele corria porque queria ter a certeza de que sua irmã caçula não havia se suicidado enquanto ele estava na escola.

                Seu nome era Lucas. Estudávamos na mesma turma desde o primeiro ano do fundamental, mas nunca sequer chegamos a conversar realmente. Primeiro, não tínhamos amigos em comum. Nós éramos de grupos opostos na escola. Enquanto eu caminhava sempre junto das garotas, ele permanecia sozinho no canto da sala, com fones de ouvido e a capa do moletom sobre a cabeça. Eram poucos aqueles que teimavam em aproximar dele. Em sua grande maioria, acabavam desistindo depois do primeiro passo.

                Segundo, eu tinha um motivo a mais para não me aproximar. Para dizer a verdade, eu tinha uma pequena “paixonite” por ele. Sim, eu tinha. Ele com aquele jeito rude, silencioso e passivo. Talvez eu não conseguisse me aproximar por vergonha, medo ou até mesmo timidez. Talvez por não saber como me expressar sem gaguejar ou acabar vomitando na sua frente.

                Quando estávamos no ônibus, eu sempre aproveitava a oportunidade para encará-lo. De um modo ou de outro, eu estava sempre observando-o. O trajeto da escola até a parada em que ele descia era sempre o mesmo. Ele sempre parecia ansioso, sempre torcendo para que o ônibus chegasse logo em seu destino. E eu não conseguia entender o motivo para tal ansiedade. Quando o ônibus parava, ele era o primeiro a descer. Mal descia e já corria para longe, em direção a sua casa. Meus amigos riam, jogavam piadinhas, faziam gracinhas. Ninguém entendia o porquê da correria. Até que um dia entendemos.

                A chuva corria pelo vidro do ônibus quando ele alcançou a parada. Eu já ergui meu rosto para a porta, a fim de vê-lo entrar, mas o motorista apenas fechou-a depois que duas garotas entraram, completamente encharcadas. Lembro-me que meu peito se fechou. Minhas mãos tremeram e senti o ar faltar em meus pulmões. Respirei fundo, dizendo a mim mesma que ele provavelmente havia ido para a escola de outro modo. Era até mesmo questionável esse pensamento, mas eu tratei de me agarrar nele.

                O medo retornara quando eu entrei na sala e ele não estava lá. A cadeira no final da última fila estava vazia. Não havia ninguém debruçado sobre o tampo da mesa ouvindo música. Não havia ninguém rabiscando a velha madeira surrada das carteiras, praticamente ignorando toda a atmosfera a seu redor. Suspirei enquanto sentava-me em minha cadeira de costume. Forcei-me a pensar que havia acontecido algum imprevisto e que, graças a isso, ele não pode ir. Forcei-me a pensar que ele provavelmente aproveitara a chuva da manhã para dormir até tarde. Forcei-me a imaginá-lo entrar atrasado, junto ao professor. Mas qualquer um destes pensamentos voou para longe quando o professor de matemática entrou na sala, fechando a porta atrás de si.

− Ei. – murmurou uma garota que sentava no banco a minha frente. Eu a conhecia de relance. Seu nome era Bárbara e ela estudava na sala ao lado da minha. – Eu estava na diretoria hoje de manhã quando o telefone tocou. – ela resmungava a fofoca para a amiga ao seu lado, cujo nome não me fugia a memória, era Talita. Virei meu rosto em direção a janela, certa que aquela fofoca não me interessaria. – Aquele garoto estranho, que vai embora correndo da parada, você lembra dele? – a descrição fez com que meus ouvidos voltassem para a conversa. Mesmo que eu odiasse fofocas, eu precisava ouvir aquilo. – Ligaram para a escola dizendo que ele faltaria alguns dias.

− Sério? – perguntou Talita de volta. – Mas o que houve?

− Não sei. – disse ela rapidamente. – Não me deixaram ficar muito tempo lá. A diretora me mandou embora antes da secretária lhe dizer o motivo.

                Sem que eu pudesse evitar, minha mão se apertou contra a mochila. O pressentimento ruim que eu tivera assim que não o vira na parada, retornou a meu peito. Havia algo acontecido. Algo de ruim havia acontecido. Suspirei lentamente colocando uma mecha de meu cabelo castanho para trás da orelha. Desci do ônibus duas paradas antes da minha. A chuva havia diminuído a ponto de se tornar uma reles garoa. O céu estava nublado e a chance de que um temporal começasse antes que eu alcançasse a calçada de minha casa era grande. Apressei os passos e quando notei, estava correndo.

 

 

 

[...]

 

 

 

                Uma semana havia se passado. Joguei minhas coisas sobre o banco do ônibus antes que eu me sentasse. Uma chuva fina escorria enquanto eu encarava a paisagem correndo através do vidro. O ônibus freou bruscamente e meu pescoço deu uma guinada para frente. Meus olhos se arregalaram quando ele entrou. Mas ele estava diferente. O olhar era frio e congelante. As roupas negras contrastando com sua pele mais pálida que o normal. Meu coração falhou uma batida quando ele se sentou duas cadeiras a minha frente. Havia acontecido alguma coisa, eu sabia.

                Durante o almoço, Lucas permaneceu na sala. Ele rabiscava alguma coisa na madeira da mesa. Os olhos verdes fixos naquela tarefa. Encarei-o da porta enquanto terminava de arrumar minhas coisas dentro da mochila.

− Sarah, vamos. – murmurou Gabriela, minha melhor amiga. Ela segurava o lanche na mão direita enquanto acenava alucinadamente com a mão esquerda. Deixei meu olhar cair sobre ela e depois peguei o dinheiro dentro da mochila. – Puxa, você está meio desligada hoje. O que houve?

− Nada. – tentei forçar um sorriso para ela. – Vamos?

 

 

[...]

 

 

                Os alunos cantarolavam uma música de Legião Urbana no fundo do ônibus durante o caminho de volta. Lucas estava sentado duas cadeiras a minha frente, logo ao lado da porta. Os fones estavam caídos sobre o seu pescoço. Os olhos estavam fixos na janela e ele, aparentemente, não parecia mais tão ansioso pelo ponto de ônibus. O motorista parou o ônibus e encarei o rapaz. Lucas levantou da cadeira e desceu. Ele colocou as mãos dentro do bolso do moletom e começou a caminhar vagarosamente em direção a sua casa. Aparentemente, eu não era a única que havia notado a mudança repentina no rapaz que provocava nossos risos durante as viagens para casa. Encarei o motorista que soltou um suspiro pesaroso.

                Quando o último aluno desceu, uma parada antes da minha, caminhei até o banco mais próximo a porta. Encarei Rodolfo, o motorista do ônibus. Os cabelos ruivos e encaracolados estavam presos abaixo de um boné. A barriga protuberante decorrente do consumo exagerado de cerveja durante seus poucos 50 anos, grudava contra o volante do ônibus. Os olhos castanhos estavam fixos na estrada, através da armação fundo de garrafa de seus óculos. Encarei-o, jogando minha bolsa sobre minhas pernas.

− Rodolfo. – chamei seu nome. Ele ergueu uma sobrancelha como se respondesse que estava ouvindo. Eu conhecia Rodolfo desde que eu nasci, afinal, ele era o melhor amigo de meu pai e sempre costumava me deixar na porta de casa em dias de chuva. – O que houve com o Lucas?

                O sinal ficou vermelho e Rodolfo parou o ônibus. Como se assimilasse o nome a figura da pessoa, ele me lançou um olhar vago. Segundos depois o sinal abriu e ele voltou a colocar o ônibus nas ruas.

− O menino Lucas teve uma grande perda. – comentou Rodolfo enquanto fazia uma curva fechada. – Eu sei que vocês ficam brincando com ele durante as viagens de volta para casa, menina Sarah. – encarei a janela para que ele não percebesse o olhar de culpa em meu rosto. – Ele sempre corria todos os dias, mas tinha um motivo. A irmã caçula dele, Sophia, tinha depressão.

                O comentário de Rodolfo caiu como uma bomba sobre minha cabeça. Rodolfo era o tipo de motorista que sabia das notícias antes mesmo delas serem liberadas ao restante do público, além de obviamente, possuir amizade com os pais de grande parte do alunado daquela escola fundamental.

− Tinha? – questionei-o deixando claro que havia notado a conjugação do verbo Ter no passado. Ele me encarou de canto enquanto estacionava o ônibus na frente da minha casa. Eu consegui definir a figura de Rogério, meu irmão mais velho, jogando videogame através das sombras da persiana de seu quarto. – O que houve?

− O Lucas é um garoto forte. – ele murmurou brevemente. O som da chuva chocando-se no metal do ônibus fazia-se presente. – Ele vive em uma família não tão perfeita. O pai morreu quando ele tinha quatro anos. A mãe tem um histórico de drogas e passa mais tempo nas clínicas de reabilitação do que em casa. A irmã sofre de depressão. E você sabe o porquê dele correr todo dia depois que descia desse ônibus? – perguntou para mim e eu apenas neguei com um breve aceno. Eu até fazia uma certa ideia, mas não queria admiti-la para mim mesma. – Ele queria ter certeza que a irmã não havia se suicidado enquanto ele estava na escola.

                Passei as mãos sobre meus cabelos, prendendo-os com um elástico. Algo felpudo passou por entre minhas pernas e eu encarei o chão. Félix, meu gato, se esfregava contra meus tornozelos. Sorri minimamente enquanto o pegava nos braços e fazia um breve cafuné entre suas orelhas. Encarei o garoto que corria para então voltar meus olhos para o céu. As nuvens finas cobriam os raios de sol, tornando o dia mais escuro do que ele deveria ser. Fechei meus olhos, rezando silenciosamente para que a história do garotinho não acabasse sendo a mesma que a de Lucas, um garoto que surgiu em minha e partiu dela tão rápido que não tive a chance de dizer sequer um “oi”.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Gostaram? Espero opiniões. Obrigada por lerem.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Enigma" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.