Uma vez, eu participei de um curso de “Comunicação de Más Notícias”. Acabou que eu fiz o papel da médica e um veterano meu, o papel do paciente. De alguma forma, tinha que lhe contar sobre um osteossarcoma na tíbia, extremamente dolorido, que provavelmente o levaria à amputação do membro inferior. Ele era um “atleta jovem e promissor” (as palavras ainda ecoam na minha mente, não importando se era apenas uma intepretação). Meu veterano atuou perfeitamente. Desequilibrou-me.

Eu que havia escolhido a notícia que queria dar. A mais difícil para mim. Uma amputação... Quantas partes de você são necessárias para tornar você... você? Qual pedaço é mais importante? Até que ponto podem arrancar-lhe flocos sem que você se desfaça? Até quanto tempo depois você pode continuar chamando aquelas partes arrancadas de “suas”?

Tudo isso passou pela minha mente. E tudo isso retornou agora... Agora sou a médica e o paciente ao mesmo tempo. Tenho ciência plena de tudo que está acontecendo. Noção de que impus isso a mim mesma em busca da melhor forma de encarar a realidade.

Preciso arrancar você de mim.

Não sei bem onde você está. Talvez só em meu coração, ou em minha mente. Em meus olhos, difuso. Por sobre minha pele. Não sei. Pode estar em qualquer lugar, mas está, o lugar não importa. Por mais que eu saiba que eu sou eu, e lute a favor da minha identidade, eu já aceitei o fato de que incorporei você a minha existência. Lembro que a primeira vontade que tive quando comecei a o conhecer foi dividir-me com você. Pois ocorreu o exato oposto, e agora carrego um pedacinho seu dentro de mim, para onde for, com quem for.

E não importa quem tente arrancá-lo, já tentaram vários... E todos têm o mesmo nome, o mesmo cheiro, o mesmo gosto, a mesma voz, e eu tento torná-los você, e você grita mais forte que não quer ser mais ninguém a não ser você, e eu quero dizer que já somos o mesmo em mim...

Preciso eu então dar-me a notícia. (Ou melhor, a notícia já foi dada.) Por bem ou por mal, você vai sair de mim. Nem que para isso eu sangre todo meu amor. Talvez que até meu coração pare por uma ou duas vezes, mas que não pare para sempre, que não pare por você. Acho que ainda nem tenho essa capacidade de fazer uma cirurgia tão complicada, ainda mais em mim mesma. Será que vai doer para sempre? Será que existe prótese? Isso tudo se eu resistir à cirurgia...

Ah, amado meu, parasitário, doentio, minha felicidade extremista, só por favor, sorria uma última vez... Daquele seu sorriso claro e maravilhoso, tão cheio de paz, sacana, divertido, aquele sorriso que traz olhos tão meus... Por favor, sorria e me gaste mais uma vez, me tire de novo das ilusões que crio ao meu redor, armadilhas inevitáveis, e então diga, como quem não se importa muito:

“Você não sabe que depois de metastasear não há muito o que fazer?”