The Librarian escrita por Carcata


Capítulo 1
Capítulo único


Notas iniciais do capítulo

Abri mão da minha alma poética (?) e quis compartilhar as minhas metáforas e obsessões literárias com vocês. Não é muita coisa, não consigo colocar em 1900 palavras todo o meu talento de escrever fanfics que adquiri durante esses anos.
Enfim, essa daqui vai pra todos os escritores de fics.



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 — Você nunca fez isso antes, não é? — Você elevou uma sobrancelha. O adolescente engoliu em seco.

 — Olha, tia, cê sabe porquê eu tô aqui. Só quero pegar o que me pediram e sair. — O garoto ajeitou os botões da camisa. Uma mania nervosa.

 Você soprou fumaça do seu cigarro e colocou alguns livros pesados na mesa, e o outro quase pulou. É claro. Todos tinham medo de livros. Exceto você.

 — Ok. Eu tenho a mercadoria aqui. J.K. Rowling, George R.R. Martin... Nada de muito luxo.

 — Meu chefe quer os raros. — Ele nem hesitou. Era o dia de inverno mais frio do ano e suor corria em sua testa.

 — As armas pesadas? Huh, — Você pigarreou, surpresa. — Eu tenho Aristóteles, Platão, a Bíblia... os clássicos.

 Ele arrepiou dos pés à cabeça. Pobre garoto.

 — A Bíblia. Antigo Testamento.

 — Cê ta achando que aqui é um mercado negro de 5 estrelas? Só tenho o Novo Testamento.

 O menino suspirou e fitou os livros na mesa como se fossem armas nucleares. Bem, eles na verdade eram, se parasse para pensar.

 Poder é conhecimento, e conhecimento não era algo que uma garota podia esconder debaixo da cama esses dias. O governo não permitia. Era assim desde a Segunda Guerra Fria, séculos atrás.

 Conhecimento estava nos livros. Bibliotecários eram considerados os maiores traficantes de conhecimento do mundo.

 Você era a melhor Bibliotecária do estado de São Paulo.

 — Fechado. Quanto é?

 

—-

— A sociedade de hoje era o fantoche favorito do governo, e o assunto sobre livros era muito extremo. “Livros são o problema do século. Problemas devem ser erradicados”. Felizmente, Bibliotecários conseguiam ler entre as linhas.

 Você sempre foi fã de ler e de não ser um idiota ignorante e sem cultura. Seu grupo era procurado até pela polícia secreta dos Estados Unidos e sua mercadoria era de uma qualidade tão boa que alcançava os cantos mais estreitos do Vaticano.

 — Ouvi dizer que ela tem os livros da Biblioteca de Alexandria. — Você ouviu um dia alguém sussurrar sobre você depois de fazer negócios com o ditador da Coreia do Norte. Você escutou seu nome e de repente ficou preocupada, mas aparentemente eram só dois idiotas cochichando na escuridão de um beco perto da avenida.

 É claro que você não tinha nenhum livro da maldita Biblioteca de Alexandria, mas era bom ter sua reputação elevada, você pensou.

 — Sério? Acha que ela tem algum J.R. Tolkien? Adoraria ler a trilogia um dia desses.

 Você tinha 35 livros de Tolkien em seu quarto só para uso próprio. Eram seus favoritos.

 — Fala mais baixo, idiota, — O outro interrompeu. — Cê ta querendo ter um encontro com os policiais daqui, maluco? Cuzão.

 Você rolou os olhos. Eles não pareciam nem poder comprar um dos mais curtos poemas do Paulo Coelho de você. Livros eram caros, especialmente os seus, e você não discutia com Leitores pobres.

 Entrou no metrô no caminho de casa. Cerca de cinco pessoas estavam lendo o jornal, um dos únicos artigos legíveis legais. As pessoas tinham permissão para ler, é claro. Existiam revistas, propagandas, manuais, e muitos outros. Mas a maioria só se importava em ser capaz de escrever o próprio nome e nada mais.

 — Hey, você tem um cigarro? — Um homem velho ao seu lado perguntou. Você elevou as sobrancelhas.

 — Hã, tenho sim, mas eu acho que fumar aqui é proibido.

 Os olhos do homem brilharam.

 — E desde quando alguma lei do governo foi obedecida por você?

 Você congelou.

 Merda. Ele sabia. Ele sabia que você era uma Bibliotecária e ia prender você. Porra.

 Seus ombros encolheram. Calma, ele não parecia um policial. Muito velho, cachecol sujo e um terno desbotado que parecia ter tido dias melhores. Talvez ele fosse um Leitor? Um cliente?

 — O que você quer dizer? — Bancou a inocente, mas você nunca foi uma atriz decente. Então decidiu sorrir gentilmente.

 — Eu sei quem você é. Mais ou menos, — Vocês estavam agora conversando entre sussurros no ar da tensão. — E eu gostaria de pedir ajuda, se puder me ouvir.

 — “Quem eu sou”? Ora, isso é meio abrangente da sua parte, não acha? — Você tentou não levantar a voz, mas sua ansiedade estava destruindo suas barreiras de confiança.

 O outro abriu um sorriso que iluminou seu rosto.

 — Eu sou um autor.

 Você ficou de boca aberta.

 O quê.

 — O quê? — Mas que merda. — Pera, você acabou de falar—

 — Autor. Sim.

 — Quer dizer um autor de jornal? — Fazia sentido.

 — Não. Um autor de livros. — Ele te olhou curiosamente.

 Aquele homem era doido.

 As portas do metrô se abriram e você saiu mais rápido que filhote de lagartixa, mesmo que aquele não era o seu ponto de saída. Falando em voz alta que era um autor de livro? Aquele velho era insano. Ele era fugitivo do hospício, ou um alcoólatra. Ele...

 Ele estava te seguindo.

 — Por favor, pare de me seguir. — Seu coração batia mais rápido que beija-flor assustado. Não, sem metáforas. Idiota. Agora não era a hora. Você aumentou seus passos.

 — Ah, sinto muito, senhorita, mas você é minha única esperança, — Ele disse. — Bem, a minha neta tentou publicar minhas estórias, mas ninguém nem leu, então eu pensei que talvez—

 — É claro que ninguém quis ler, — Você parou e virou-se para ele. — É ilegal.

 — Bem, todo mundo quer comprar os seus livros, então há uma chance do meu livro vender bem.

 Você suspirou e ignorou a vontade de acender um cigarro. Nem acreditava que estava tendo essa conversa no vazio frio do metrô.

 — Olha, senhor. Desculpe pisar nas suas esperanças, mas eu vendo coisas boas, tá ligado? Autores famosos, histórias de sucesso para então as pessoas quererem comprar. Só da melhor qualidade, mesmo, então eu apreciaria se o senhor pudesse—

 Ele empurrou um punhado de folhas em seu peito e você gaguejou.

 — Por favor, só dê uma olhadinha, sinhá?

 Os olhos dele dançavam ao encontrarem os seus. Você conhecia aquele olhar, a vulnerabilidade e a esperança nua e crua à sua frente e com sonhos maiores que seu coração. Você tinha aqueles olhos uma ou duas eternidades atrás, até que a realidade as tirou de você.

 Aquele homem deveria ter mais de oito décadas e ainda tinha aqueles olhos.

 — Tá bom — Você pegou as folhas e estufou o peito para fingir ter mais confiança do que aparentava. — Se cê entrar no mundo ilegal e ser preso e torturado depois de uma semana, a culpa não é minha, ok?

 Ele sorriu.

 Ambos estavam escondidos debaixo de uma cafeteria que estava em uma ponte no Bairro da Liberdade. Vários Bibliotecários se encontravam lá de vez em quando. Você prometeu dar uma olhada no trabalho do homem. Só uma breve e superficial olhada nas folhas.

 Você leu 3 parágrafos.

 — Bem, — Você declarou. — Isso aqui tá uma merda.

 O homem tropeçou no chão da calçada. Não havia nada para tropeçar.

 — T-Tá tão ruim assim?

 Você o encarou inocentemente.

 — Você mudou de 1° pessoa para 3° pessoa duas vezes. Misturou passado e presente, história clichê e superficial e alguns verbos estão conjugados errado, — Você entregou as folhas para ele. — E você escreveu “cidade” com “s”.

 Ele pegou as páginas com delicadeza, como se fossem preciosos recém-nascidos.

 — Ah, — disse, simplesmente. — Então eu vou consertar e te entregar de novo.

 Você parou.

 — Não, — Seus olhos arregalaram-se — Não, não, não. Eu vou sair desse lugar imundo com cheiro de merda, fumar um maço de cigarros inteiro e ir pra casa e dormir por pelo menos 12 horas, — Ele te olhou curiosamente outra vez. — Quando acordar, eu vou fazer o meu trabalho como eu faço todos os dias, e quando eu entrar no metrô eu não vou te encontrar de novo. Eu não vou ler sua história de novo porque eu não sou obrigada.

 Ele hesitou, e depois falou com uma voz quieta e gentil:

 — Cê não deveria fumar tanto cigarro assim, minha filha. Faz mal pra saúde.

 Você jogou suas mãos no alto em frustração.

 

—-

 Você o encontrou no metrô no dia seguinte.

E depois, e no dia depois desse, e na semana seguinte também. Ele te mostrava a história todos os dias a caminho do seu trabalho, e você notava uma pequena melhoria a cada manhã.

 Ele tinha 83 anos e seu nome era António — com um acento agudo no “o”, e não acento circunflexo, dizia ele —, ele gostava de ler qualquer coisa que tinha palavras impressas e colecionava artigos e jornais.

 Em uma tarde de quarta-feira, você observava as pessoas saindo apressadas da Praça da Sé com um sentido inútil à lugar nenhum e começou a pensar sobre a história simples e humilde de António e a comparou com as complicadas e bonitas de J.R.Tolkien.

 Eram bem diferentes, é claro, mas se alguém soubesse onde procurar veria que também podiam ser parecidas. Como o pôr do sol e o amanhecer. Opostos e confundidos se não fossem analisados com cuidado.

 Ambas valorizavam as coisas simples da vida, e os rumos das histórias tinham algo em comum. Mas as estruturas dos dois contos eram bem diferentes. António vivia uma vida comum e sem parnasianismo, assim como Tolkien. Entretanto, viveram realidades distintas. Areias do tempo e sociedades separadas.

 E foi assim que você notou. Anos e anos tendo todo o conhecimento que precisava, e só agora você percebeu que não possuía as coisas mais simples da vida. Passou sua juventude inteira vendo o governo manipular as mais brilhantes mentes, a desvalorização das obras de Clarice Lispector, e enxergando só a escuridão debaixo da cafeteria do Bairro da Liberdade, que não prestou atenção na sua própria história.

 António viveu em um país onde tudo o que podia ler eram as propagandas da Jequiti no SBT, porém ainda assim ele tentou escrever um livro. Porque ele gostava, porque ele tinha o brilho nos olhos.

 — Corrigi todos os erros de conotação que você me pediu. — António entregou seu trabalho para você na quinta-feira de manhã. As folhas agora estavam cuidadosamente coladas em um caderno de capa vermelha.

 — Ótimo, agora vamos para os erros de gramática. — Você disse e sorriu. Dois pares de olhos brilharam.

 

—-

 — Disseram que você tem mercadoria nova... — O fiel comerciante da Rainha Elizabeth III disse cautelosamente. Você assentiu e respondeu em inglês com um sotaque enferrujado:

 — Sim. Uma das mais novas no mercado. E até que não é cara.

 Você terminou seu cigarro e o jogou no chão. Em seguida, colocou na mesa um livro de capa cor de vinho. Em letras douradas, estava escrito o título:

 — “História”...? — O jovem leu, desconfiado, e cruzou os braços. — Esse nome não é tão criativo, huh? E não sei se Vossa Alteza gostaria se eu gastasse dinheiro em lixo que não vale à pena.

 Você torceu o nariz e o encarou ferozmente.

 — Olha, meu amigo. Esse livro foi lançado poucas semanas atrás e nunca foi vendido por um Leitor. Sua adorada Vossa Alteza seria a primeira a lê-lo. Além do mais, esse aqui é diferente, — Você sorriu. — Foi escrito em um país pobre, numa cidade pobre e numa sociedade pobre, mas lhe garanto: As rimas são ricas, as metáforas são ouro e a história é imensurável.

 Era verdade. Qualquer autor com brilho nos olhos faria nada menos do que perfeição. Você tinha brilho nos olhos agora também, quem sabe não seria hora de começar a escrever? Não seria nenhum Drummond de Andrade, mas não era necessário se comparar com sucessos históricos. Era hora de escrever com a tinta da caneta de agora, sem olhar para trás.

 António era o primeiro de muitos.

 — Fechado. Quanto é?


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Notas finais do capítulo

Quis dedicar essa historinha aos novatos escritores do mundo das fanfics. Porque mesmo que você sinta que sua história não é boa, e daí se você errou na conotação, se seu enredo é clichê, se você escreveu "cidade" com "s"? Por mais simples que ela seja, ela é BOA. Ela é ÚNICA e você não deveria desistir de fazer o que gosta.
O mundo precisa de mais Antónios. Seja um António.



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