Aquela parte da família escrita por Lilian Smith


Capítulo 1
Capítulo 1


Notas iniciais do capítulo

Olá! Espero que você goste dessa one! Conversamos melhor lá nas notas finais, ok?



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A ventania gélida e arrebatadora era comum na região onde o avô de Bianca morava. Era um dos motivos para ela amar passar as férias de verão no lugar, porque sempre tinha a sensação de estar no inverno só que sem a neve para fazer cair e espirrar e impedir que ela e o irmão mais novo brincassem juntos no jardim da frente. Ela também gostava da comida quente e da voz de sua Nonna chamando os dois para entrar quando a noite já se aproximava. Amava sentar aos pés do avô depois do jantar e ouvir junto de suas tias e alguns primos as histórias dele. Muitas de contos de fadas, várias de fantasias e poucas porém intensas, histórias de guerra.

Ele quase nunca falava sobre a guerra, esse assunto era um tabu dentro da casa dos Di Ângelo. Bianca sabia que o seu país guerreava contra os ingleses por algo que era cruel e errado, mas tinha total consciência de que jamais poderia proferir essa opinião em voz alta. Uma semana atrás os soldados bateram na porta da casa de seu avô e fizeram um longo discurso sobre o dever do povo italiano. Eles disseram a Bianca, Nico e as outras crianças da casa como eles poderiam ajudar os soldados e que isso era a honra deles. Todos na casa sorriram. Quando eles foram embora, o alivio estava estampado na expressão de cada membro da família. De jeito nenhum eles falariam da guerra, ou sobre como ela era má e como ela levou a mãe de Bianca para o outro lado do Atlântico.

Existiam assuntos mais acessíveis e agradáveis. Naquela noite, a história era sobre gloriosos deuses gregos e seus filhos, os semideuses, com suas aventuras épicas e feitos inacreditáveis. Apesar de a cultura romana ser mais próxima da realidade deles, o avô dos dois preferia sempre falar “Zeus” no lugar de “Júpiter” e “Poseidon” no lugar de “Netuno”. Ela nunca entendeu muito bem o porquê – afinal todos em sua escola diziam os nomes romanos – mas por algum motivo também preferia assim. Enquanto acompanhava fascinada a narrativa sobre uma deusa chamada Macária, a menina percebeu que o seu irmão remexia de maneira inquieta e cabisbaixa ao seu lado, o que era potencialmente preocupante, pois se tinha uma coisa que o irmão não era essa coisa era “cabisbaixo”. Nico era uma das pessoas mais animadas e hiperativas que ela conhecia, fazer ele calar a boca era um sacrifício em dias comuns. Por que ele está assim afinal?

— E dessa história vocês podem tirar a lição de... – ele nunca dizia o que. Aquela era a deixa para alguém falar alguma coisa, e geralmente Nico seria o primeiro a fazer isso, mas a falta de animação dele afetou ela também, de modo que Bianca não entendeu absolutamente nada da história da deusa.

— Que... As pessoas que menos esperamos podem ter missões surpreendentemente boas? – Giovanna, a prima mais velha dos dois, pronunciou-se.

— Mais ou menos, minha querida. – o Avô explicou sorrindo carinhosamente para ela. Outra coisa que a menina gostava muito dali. O sorriso dele. Era tranquilizador e dava uma sensação calorosa. Ela sempre se sentia a neta mais amada do mundo quando o avô sorria. – Macária era filha de Hades, e todos a odiavam por isso. Mas só porque você tem uma família com um histórico ruim, não significa que é ruim também. Os filhos não podem ser condenados pelo pecado dos pais e Macária foi julgada por todos os deuses. Mas ela fazia algo tão bom e tão puro, que mesmo sendo forçada a jamais ser vista por um mortal, a jamais ter seu trabalho reconhecido, ela persistia nele. Ela conduzia as pessoas a uma morte tranquila e feliz, sem dor e sem sofrimento. Isso é tudo o que podemos pedir ao deixar este mundo. Macária era uma deusa inesperada para uma missão tão honrosa. Quero que entendam isso. Não importa de onde você veio, só importa o que e para onde você vai depois e ela escolheu seu próprio caminho.

Escolham o caminho de vocês também, independente do que digam sobre você.

Bianca sentiu uma grande onda de arrependimento por não ter prestada atenção a história. Pediria para ele repetir ela amanhã, a menina tinha a sensação de que ia gostar dela. Olha o que você fez irmãozinho!

Todos ao redor da menina começaram a se erguer e ela seguiu o exemplo. Depois da narrativa ser relatada, o avô gostava de ficar sozinho na sala da lareira, e todo mundo respeitava esse momento. Uma vez a Nonna de Bianca falara que era nessa hora do dia que ele revivia os pesadelos da guerra das trincheiras e eles eram tão intensos que se alguém se aproximasse dele na hora, seria capaz de vê-los. Nico perguntou o porquê de a avó ir ficar com ele então. Geralmente a nonna ia depois de alguns minutos, sentava na cadeira ao lado do avô dos dois, e não dizia nada. Sandra sorria gentilmente para eles. Sou a única que pode ver os pesadelos, porque sou a única que segurar seu avô pela mão e erguer cada um junto dele. Vocês não entenderiam crianças. Faço isso a anos e anos. É o que os adultos chamam de amor.

Os dois não questionaram mais nada depois que ela disse isso. Não tinham entendido, mas achavam que era algo que não era para se entender de qualquer forma.

Nico ainda não havia dito nenhuma palavra desde o cair da noite. Aquela pessoa tão quieta não podia ser o seu irmão de jeito nenhum. Quando os irmãos já estavam no pé da escada, ouviram a voz do seu avô chamando-os na sala novamente. Eles se entreolharam confusos e retornaram, parando na soleira da porta. O avô deles era totalmente o oposto dos dois. Toda a família era na verdade. Loiros, com os olhos azuis brilhantes e algumas vezes castanhos cor de mel. A própria mãe dos meninos era uma mulher alta, linda, uma boneca de porcelana com os fios dourados caindo pelas costas, os olhos tão azuis quanto o céu. Bianca e Nico eram errados. Ambos com cabelos pretos, pele branca demais e os olhos extremamente escuros. Não se encaixavam ali, não fisicamente. Mas o modo como a família os tratava fazia com que esquecessem sua aparência divergente da deles.

— Sentem aqui crianças. – o avô apontou para o sofá ao lado de sua cadeira. – Quero fazer umas observações a mais para vocês dois.

Ah, não. Bianca pensou, levemente assustada. Ele quer falar sobre a história, mas eu não ouvi nada sobre ele porque Nico estava me preocupando.

— Claro, vô Pietro. – os dois responderam em uníssono e sentaram-se no local indicado, olhando para o velho com expectativa.

— Sabem porque nunca falamos no pai de vocês? – Aquilo os surpreendeu. Nunca o pai dos dois irmãos era mencionado. Era tão raro que muitas vezes a menina esquecia que ele deveria existir, mesmo que a muito tempo atrás. – Pela mesma razão que Macária não gostava de revelar de quem era filha. A notícia não agradava a todos.

Bianca podia não ter ouvido a história, mas entendeu a lição dada pelo avô após a conclusão dela, e ficou retesiou o corpo subitamente.

— O meu pai é uma pessoa má? – ela questionou, nervosa. Mas se ele é mau, mamãe não deveria ter conhecido ele.

— Eu não disse isso criança. – O velho explicou. – Eu só disse que saber quem ele é, para muitas pessoas mundo afora, pode ser ruim. Não digo que ele é bom ou mau, digo que tem inimigos, que vão tentar fazer vocês pensarem que são inferiores por serem filhos de quem são.

— Mas por que? – Nico perguntou, confuso e.... assustado?

— Não sou a pessoa certa para explicar. Só quero que entendam uma coisa está bem, bambinis? – ele reforçou, sua voz ficando mais séria e pesada. – Não importa o que digam para vocês, vocês não são piores ou melhores que ninguém. Nunca deixe que eles os menosprezem por serem quem são. Jamais.

Aquilo soou sério demais na cabeça da menina. Por que aquilo era tão necessário? Ela se sentiu sobrecarregada de repente e o avô pareceu perceber aquilo.

— Agora vão dormir. Já está tarde e uma longa jornada os espera. – ele inclinou-se para frente e pegou na mão dos dois. – E mais uma coisa. Quando souberem quem o pai de vocês é, jamais deixe que os outros digam o que ele é para vocês. Criem vocês mesmos suas opiniões sobre ele. Talvez o pai de vocês seja bom e mal ao mesmo tempo, e precise de um pouco de compreensão, estamos acertados?

Os irmãos concordaram com um entorpecimento latente em seus corpos. Quando ergueram-se do sofá e caminharam até a porta, Bianca se sentia muito mais velha do que o que deveria. Ela tinha certeza de que alguma coisa a mais estava escondida na fala do avô mas não conseguia entender. Era uma criança afinal, e jogaram para ela, algo complicado demais. Ela subiu com o irmão para o quarto que os dois dividiam, o antigo quarto de sua mãe, e tentou dar atenção para o Nico entristecido que se deitava na cama ao lado.

— Porque essa atitude tão monótona? Não combina com você!

O irmão olhou para ela, os olhos dele são mais escuros, ela reparou. Quase preto. Mas eram brilhantes ao mesmo tempo, diferente dos dela que eram opacos e mais cinzas como grafite. Ela não havia se sentido bem com as palavras esquisitas do avô, e percebeu que não queria que Nico sentisse o mesmo. Ele era seu irmãozinho e era dever dela proteger ele dessas coisas.

— Eu ando tendo pesadelos esquisitos. – ele explicou, a voz fina e rouca ao mesmo tempo. Nico tinha nove anos, e era ingênuo demais. É claro que um pesadelo o abalaria totalmente. Ela sorriu carinhosamente para ele e sentou na ponta da cama do irmão. Desde que a mãe foi para Deus sabe onde, Bianca decidiu que jamais colocaria os cuidados dele nas mãos dela de novo. Não a parte emocional. Daquela parte ela cuidaria.

— Todo mundo tem pesadelos, soldatino. — ela explicou. – Não precisa ficar tão entristecido por isso. Eles sempre passam.

— Mas esse é o problema. – o irmão resmungou. – Eu já tive pesadelos antes, mas esse... Eu nunca senti tanto medo. Era real demais.

— E o que era? Quer me contar?

Ele pareceu desconfiado por um momento, mas cedeu a vontade de partilhar o peso daquela sensação.

— Tinha corvos, e um raios por todos os lugares. Havia sangue também e um homem muito alto segurando a gente. – Ele suspirou naquela parte, sem ter certeza de como falar o que queria dizer a seguir. – Eu acho... Que era o nosso pai.

Bianca franziu as sobrancelhas.

— Mas a parte mais cruel foi que... Eu vi a nossa casa sabe? E a mamãe estava aqui com a gente. Só que...

Nico travou por alguns segundos, com um nó na garganta.

— Ela estava morta, Bianca. Morta.

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Pietro e Sandra estavam sentados em suas velhas cadeiras, partilhando de seus momentos de reflexão, os dois olhando a janela que dava para o quintal, quando alguém bateu na porta da casa. Sandra ergueu as sobrancelhas, confusa. Nenhum cachorro latiu para avisar que da chegada de ume estranho. Então quem seria?

— Fique aqui. Vou ver quem é.

Pietro manteve-se onde estava enquanto a mulher seguia para a porta. Não eram fascista, isso ele sabia. Os animais teriam avisado. Era alguém conhecido.

Sandra atravessou os cômodos da casa, passando pela estante de porta-retratos e pinturas, onde sorriu para algumas, e então pegou as chaves e foi para a entrada da casa. As janelas já estavam fechadas e as cortinas impediam a visão do outro lado. Sandra sentiu uma apreensão no peito ao girar a chave, e demorou segundos para reconhecer quem estava na soleira da entrada.

Com um vestido carmesim, um casaco de veludo e um chapéu bege elegante, Maria Di Ângelo olhava para a mãe com os olhos azuis intensos e determinados. Havia algo diferente na menina. Algo que Sandra não soube identificar.

— Olá, madre. — ela murmurou, tímida e direta. – Posso entrar?

Num mundo comum, uma filha jamais deveria perguntar para a mãe se pode ou não entrar na sua casa de infância e criação. Mas Maria não vivia num mundo comum e Sandra já havia passado noite em claro para poder compreender isso. Ela deixou que a realidade caísse sobre ela depois que a filha largou as duas crianças na casa deles e sumiu sem dizer porque ou para que. Se ela soubesse o quão complicado foi explicar para Bianca e Nico a razão para estarem ali sem aviso ou data para verem a mãe de novo...

Isso foi a uns dois anos. E ali estava Maria novamente. Tão linda quanto sempre havia sido. Não era correto uma mãe decidir qual filha era sua favorita, a mais inteligente ou a mais bonita. Mas não era segredo que o título de mais linda era de Maria. “O anjo dourado”, era o que os vizinhos diziam.

— Claro que pode. – Sandra respondeu, depois de um momento constrangedor para ambas. Maria pisou na casa com cuidado, movendo-se lentamente e olhando para todos os cantos da casa. Procurando as crianças? Bom, elas já dormiram faz tempo. E cresceram também caso queira saber.

As duas seguiram pelo corretor e percorreram o caminho para a sala da lareira. Foi um acordo silencioso aquele, de ir para onde Pietro estava. Ao olhar para o marido, e ver a reação dele ao pôr os olhos em Maria, Sandra soube que algo havia ocorrido.

— A benção, padre. — A menina sussurrou, curvando-se para beijar a mão do pai que a observava sem expressar nada além de curiosidade. Ao erguer a cabeça e ficar de pé, Maria deixou bem claro o teor de sua volta. – Vim buscar Nico e Bianca. Vou leva-los embora.


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Notas finais do capítulo

Eu sei que essa não é a verdadeira história da infância deles dois, mas quando imaginei eles crianças só consegui pensar em algo parecido com essa visão.
Escrevi esse conto há muito tempo... Não sei porquê não tinha colocado aqui antes. Enfim, adoraria saber a opinião de você que leu! Agradeço pela atenção dedicada!



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