Retalhos de cetim escrita por Jeniffer


Capítulo 1
Daniela


Notas iniciais do capítulo

História inspirada na música "Retalhos de cetim", do Benito Di Paula. (https://www.youtube.com/watch?v=cTMvO5y9BXI)



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Conheci Daniela em uma noite de quinta-feira. Típica noite de verão, onde o Rio de Janeiro ferve até tarde, mas a cerveja continua gelada. Cheguei no bar, que ficava logo no final da rua, quando o sol começava a se pôr e as ruas se enchiam de funcionários cansados, mulheres sorridentes e homens despretensiosos. Levei meu pandeiro debaixo do braço, o cigarro entre os dedos da mão direita e um chapéu na cabeça. Cumprimentei o dono do bar, meu amigo de longa data, e recebi uma cerveja. Juntei-me aos meus amigos que já me esperavam em uma das mesas na calçada, com alguns instrumentos musicais. Logo, começamos a tocar sambas famosos, cantando com alegria.

A noite, encantada com o ritmo, sambou pelo Rio de Janeiro e trouxe mais pessoas, um frescor e uma alegria contagiante. Vestidos rodopiavam, sapatos se exibiam, enquanto as pessoas dançavam ao som de nossa música, eventualmente deixando alguns trocados no meu chapéu, que eu deixara no chão. O bar começou a encher, mais pessoas cansadas em busca de diversão, sendo atraídas pelo samba descontraído. Não percebi Daniela chegando, mas quando a notei, ela já havia tomado conta do lugar.

Daniela dançava como se seus pés não estivessem tocando o chão, flutuando como a brisa do mar, brilhando como o céu noturno. Seus cabelos negros, com cachos perfeitos que causavam inveja em qualquer um, dançavam também, emoldurando seu sorriso deslumbrante e divertido. Seus olhos consumiriam parágrafos infinitos e injustos que nunca seriam capazes de descrever a sua beleza complexa, mesmo se eternizados pelo mais bondoso poeta. Eu não sou poeta, então não me atrevo a criar nada mais do que um samba modesto, um conjunto de notas e umas palavras de alegria. Mas Daniela não era mulher de ser contida por páginas de uma partitura, muito menos amarrada por cordas de um cavaco. Aquela cabrocha corria pelas suas veias, fazia saltar seu coração e agitava seu corpo, criando música com seus quadris e tocando notas com seus lábios. Daniela era a canção mais cativante que alguém poderia cantar.

Daniela era o tipo de mulher que era bonita e sabia disso, evidenciando tal conhecimento em cada movimento sutil das mãos para afastar o cabelo do rosto ou em cada sorriso de canto para os olhares dos admiradores. Ela dançava e eu me encantava, certo de que poderia continuar tocando aquela samba noite adentro, se isso continuasse fazendo-a tão feliz. Depois de um tempo, o dono do bar nos serviu uma rodada de cerveja. Interrompemos o samba por um momento, deixando com que a música que vinha de um velho CD preenchesse o vazio.

Fui até o balcão e pedi mais uma cerveja, já procurando a cabrocha que se afastara quando a música findou. O dono do bar me lançou seu típico olhar de quem já vivera o suficiente para entender o brilho em meus olhos sem nem mesmo perguntar nada. Hoje, eu ainda penso no sorriso dele, com uma expressão compadecida, e me questiono o porquê eu não prestara atenção. Agradeci aos elogios que recebi pelo caminho e fingi anotar mentalmente os pedidos de músicas que vinham acompanhados de memórias alheias.

Daniela estava afastada do bar, atendendo uma ligação em seu celular. Seus dedos se entrelaçavam distraidamente por seus cachos, enquanto ria baixinho e ouvia alguma coisa que não me dizia respeito. Eu continuei ali, uma cerveja em cada mão, pensando em como seria entrelaçar meus dedos em seu cabelo. Quando ela se despediu de quem a manteve ocupada ao telefone, me aproximei como se estivesse caminhando até ali por acaso.

— Você quer uma cerveja? – perguntei, quando ela se virou para voltar ao bar.

— Quero. – ela respondeu, depois de absorver o susto e hesitar alguns segundos. Ah, os sambas que eu poderia escrever sobre a voz daquela cabrocha. – Eu já estava indo pegar uma.

— Imaginei que estivesse mesmo com sede. – sentei-me no pequeno muro que havia ali, um canteiro de flores que decorava a rua. – Depois deste show de samba que você deu.

Peguei meu maço de cigarros no bolso, ajeitei o chapéu em minha cabeça e esperei. Deixei o convite silencioso pairar no ar, um lugar ao meu lado caso ela quisesse se sentar, algumas cadeiras vazias caso ela quisesse voltar para o bar. Ela se sentou ao meu lado, com um riso de quem não acredita no que acabou de ver. Daniela não era mulher de joguinhos.

— Você também deu um show. – ela disse, bebendo sua cerveja. Eu traguei o cigarro, esperando que isso disfarçasse o meu sorriso. Ela me notara também. Algum tempo depois, eu acabaria descobrindo que Daniela é o tipo de mulher consciente sobre cada detalhe ao seu redor.

Aquela primeira conversa com Daniela foi diferente de todas as outras conversas que já tive neste breve e agitada vida. Não me perguntou se eu era mesmo carioca ou apenas um turista enfeitiçado pela magia da cidade. Nem se preocupou em perguntar do que eu gostava ou desgostava. Começou perguntando se eu era feliz.

— Um bom samba alegra qualquer coração. – respondi, provocando sorrisos que me alegraram muito mais do que qualquer samba.

Quando nossas cervejas acabaram, Daniela decidiu que já me conhecia o suficiente, enquanto se mantinha envolta em uma aura de mistério. Voltamos para o bar e ela não deixou que eu encostasse no pandeiro. Pegou-me pela mão e me levou para junto dos demais clientes, que dançavam alegremente, agora que meus amigos voltaram a assumir o controle da música. Dançamos com uma familiaridade construída com rapidez, quase como se já estivesse ali antes. Se me perguntar qual é minha principal memória daquela noite, eu diria que é o olhar de Daniela. Enquanto dançávamos, ela não mais dispensou seus olhares meigos aos admiradores ao seu redor. Olhava apenas para o admirador modesto à sua frente.

No final da noite, Daniela ficou feliz ao saber que eu morava naquela mesma rua. Caminhamos pela calçada ainda movimentada, que continuava a ecoar um samba fraco e risos de amigos embriagados de alegria. Pandeiro debaixo do braço, cigarro na mão direita e Daniela em minha mão esquerda, ela usava meu chapéu com divertimento, já que ele não era capaz de conter o volume de seus cachos. Abri a porta, mas não me movi. Deixei que mais um convite silencioso pairasse entre nós, o caminho livre caso ela quisesse entrar e um sorriso disfarçado caso ela quisesse partir. Daniela novamente riu como se não acreditasse e me beijou, lentamente, devolvendo-me o chapéu. A sensação de entrelaçar meus dedos em seus cabelos foi ainda melhor do que eu imaginara, mas não se comparava à sensação de seus lábios nos meus, de minhas mãos em seus quadris, ou de suas mãos em meu pescoço.

Afastou-se de mim com um sorriso tranquilo, pegou-me pela mão e me guiou para dentro da casa. Ela se movimentava como se conhecesse cada parte do caminho e minha expressão boba parece diverti-la.

Como eu disse, Daniela não era mulher de joguinhos.

Daniela entrou na minha vida como se já pertencesse. Era normal e, de um jeito estranho, até natural encontrar seu casaco no armário, um par extra de sapatos perto da porta ou uma escova de dente no banheiro. Depois do trabalho, sempre que podia, ela aparecia no bar, sambava até se exorcizar suas preocupações e desgostos do dia. Depois dançava seu caminho até minha cama e me envolvia em sua graça.

Em uma manhã de sábado, Daniela me encontrou sentado à janela, meu cigarro nos lábios e um copo de uísque ao meu lado, enquanto eu escrevia em um caderno velho. Eram apenas palavras cruas, pensamentos bêbados e rimas cadenciadas. Ela gingou para fora da cama, envolveu-me em seus braços, alcançando o copo de uísque e lendo algumas palavras no papel amassado.

— Desde quando você é escritor? – perguntou, bebendo o que sobrara no copo.

— Desde que as palavras se tornaram grandes demais para viverem dentro de mim e começaram a escorrer pelos meus dedos. – soprei a fumaça para fora da janela.

— Faz sentido. – Daniela inclinou-se em minha direção e insinuou um beijo, mas apenas tirou o cigarro da minha boca e o apagou dentro do copo vazio. – Você é um homem de poucas palavras. Quem pouco fala, muito pensa.

— Você também não fala muito. – retruquei, correndo meus dedos pelo cabelo de Daniela.

— Eu extravaso no samba. – ela disse, pegando o caderno e lendo uma frase no canto da página. – “Minha cabrocha”?

— Você é minha cabrocha. – falei, como se fosse óbvio.

— Eu não sou sua. – disse, devolvendo o caderno e partindo para a cozinha. Eu apenas ri para mim mesmo. Daniela não era de ninguém, a não ser dela mesma. – E o que você faz com todas essas palavras?

— Tudo. Às vezes, nada. São só palavras.

— Mas o que você escreve?

— No ano passado, eu escrevi o samba da escola. – falei, buscando a garrafa de uísque na mesa.

— É sério? Eu me lembro do desfile do ano passado. – ela disse, enquanto procurava o café. – Foi muito bonito.

— Antes eu só ajudava a fazer as fantasias. – eu dei de ombros.

— Você é escritor e ainda costura fantasias? – Daniela parou tudo o que estava fazendo para olhar para mim.

— Eu sou parte da escola desde que nasci. Gosto de me envolver em tudo o que fazem. – sorri para ela. – O carnaval está no meu sangue.

— Um homem de tantos talentos. – ela tirou o copo de uísque da minha mão e colocou na pia. – Uma pena que um dos seus talentos não seja fazer café.

Eu não discutia com Daniela. Deixava que fizesse café e o tomaria de bom grado, se isso a fizesse feliz. Mesmo que o sabor amargo não ajudasse meus pensamentos, era mais um momento dividido com ela, e isso me bastava. Voltei a encarar o caderno, no qual há tanto tempo eu não escrevia nada. Levei um ano para escrever aquele samba e depois nunca mais encostei em uma caneta. Gastei todas as minhas palavras na avenida. Olhei para Daniela, a cabrocha que trouxera tantas novas palavras para minha vida que foram suficientes para preencher mais páginas do que um dia julguei ser possível.

— Você deveria desfilar pra mim. – falei, tão simplesmente quanto se a convidasse para jantar, ou se perguntasse se ela queria assistir a um filme.

— Como é? – ela perguntou, incerta sobre o que compreendera.

— Você deveria desfilar para a nossa escola. – falei, me aproximando dela e aproveitando o olhar de surpresa em seu rosto. Daniela não era pega de surpresa. – Eu até posso fazer a sua fantasia.

— Você está maluco. – envolveu-me em seus braços como se o seu toque conseguisse amenizar a minha insanidade. Mal sabia ela que realmente conseguia.

— Estou falando sério. Você ficaria linda sambando pela avenida.

— Eu nunca desfilei pra nenhuma escola. – disse, ao perceber que eu falava sério.

— Mais um motivo para fazer isso. A avenida é um palco muito mais adequado pra você do que um bar.

— Ok, vamos fazer um acordo. – ela disse, com seriedade. – Eu desfilo, se você escrever o samba.

— Combinado. – concordei. Se colocar algumas palavras juntas era o preço a pagar para ver Daniela desfilando para a escola, eu pagaria sorrindo.

— Ótimo. Agora venha aqui. – ela disse, puxando-me para mais perto. – Eu vou lhe ensinar a fazer um café decente.

Eu passava o dia trabalhando no bar, ajudando no que podia, servindo cervejas que eu gostaria de estar bebendo. Não era nada que me despertasse qualquer tipo de alegria, mas pagava o aluguel.

Às vezes, Daniela desaparecia. Quando estava prestes a me acostumar com sua presença, seu cheiro em meu travesseiro e seu riso pela manhã, ela escapava por entre meus dedos. Não aparecia e muito menos ligava. Fazia eu me sentir só novamente. Fazia com que eu pensasse algo que eu gostaria de conversar com ela a respeito, apenas para encontrar o vazio de sua ausência.

Quando Daniela não aparecia, eu desenhava seu corpo em cetim, costurava cada pedaço com linha e saudade, colocava na costura o que não conseguia transcrever em palavras. Eu criava a fantasia que ela iria usar, exatamente como na minha fantasia que guiava minhas madrugadas. Rabisquei suas medidas, aquelas que eu já conhecia de cor, e as transformei em sonho. Costurava até o sono e o uísque me fazerem confundir o tecido com meus dedos e o meu sangue com o rubro tecido das alças. Então, eu me permitia adormecer onde encontrasse alento, ou naquele travesseiro que ainda trazia a lembrança de seu cheiro.

Quando Daniela desaparecia, eu dormia em retalhos de cetim. Então, quando eu decidia que era hora de revirar o Rio de Janeiro em busca da minha cabrocha, Daniela aparecia dançando, sorrindo como se sempre estivesse estado ali. Eu abria as portas e fechava as janelas, na esperança de que seu perfume entrasse e decidisse ficar por mais tempo do que ela. Nestas noites, depois de sambar pelas curvas da minha cabrocha, eu me sentava à janela e escrevia, deixando que o samba em meus dedos se movimentasse no ritmo do samba nos pés de Daniela. Escolhia as palavras que iriam eternizá-la no papel e na mente de quem a visse desfilando.

Cada nova estrofe exigia uma nova dose, e eu me via cada vez mais envolto naquele enredo.

Um dia, Daniela saiu de fininho, depois de me amar o suficiente para me fazer acreditar no paraíso, e me deixou sozinho com um maço de folhas amassadas e até parcialmente queimadas pelo cigarro. Fiz café, de um jeito que a deixaria orgulhosa, e sentei-me à mesa para transcrever, em folhas imaculadas, o meu samba apaixonado. Quando o mestre da escola leu minhas palavras em uma caligrafia capenga, segurou as folhas como quem segura um tesouro, e sorrindo, disse:

— Isso é verdadeiro. Seja lá quem for esta cabrocha, que Deus a abençoe.

Naquele dia, levei Daniela para o santuário da escola, onde reunimos todos para que eu cantasse o meu samba. Minha cabrocha deu vida a cada palavra e eu soube que aquelas rimas seriam vazias sem ela. Quando a música chegou ao fim e os gritos de comemoração tomaram conta do ar, eu envolvi minha cabrocha em meus braços.

— Promete que vai desfilar com a gente?

— Você fez o samba, não fez?

Daniela não era mulher de promessas.

Entre cafés e uísques, presença e ausência, o Carnaval se aproximou devagar, tal qual samba de cavaquinho e tomou conta das ruas do Rio de Janeiro como uma onda de cores, sons e alegria. Na noite antes do desfile, não consegui dormir. Daniela não apareceu, não ligou e nem deixou recado. Deixou-me na janela durante a madrugada, procurando seus cachos em cada uma que desfilava pela calçada.

Quando o sol nasceu, caminhei pela rua com seu vestido perfeitamente embrulhado em meus braços. Envolvi-me na festividade contagiante da escola e ajudei com os últimos detalhes. No canto, o vestido da minha cabrocha a esperava, vazio e sem vida. Eu também esperei por ela, quase tão vazio e sem vida quanto aquele cetim. Procurei-a em cada rua que emitisse um samba, mas não a encontrei.

Daniela não era mulher de deixar rastros.

Fiquei ali, assistindo o desfile com o fantasma de cetim preso em um cabide improvisado. Minha escola estava tão bonita, é isso era tudo oque eu queria ver. Depois de um ano inteiro dormindo em retalhos de cetim, ensaiando meu samba escrito com amor e uísque, aquela era uma boa recompensa.

Samba e saudade. Festa e ausência.

E, mesmo não querendo, pensei em Daniela.

Eu chorei.

Na avenida, eu chorei.

Não pensei que mentia a cabrocha que eu tanto amei.


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